quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Macroscópio – O delicado equilíbrio de poderes entre políticos e magistrados (a propósito das ideias de Rui Rio)

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
@instagram.com/jmf1957/ 

Gostamos muito de debater o populismo dos outros e o iliberalismo além fronteiras, mas é porventura mais difícil reconhecer os sinais de alarme quando eles tocam perto de nós. Sobretudo se vierem de onde menos se espera, e se o debate estiver em aberto. No entanto é do risco de uma evolução iliberal da nossa democracia que estamos a falar quando falamos do equilíbrio de poderes entre o que pertence à política e que pertence às magistraturas, e é desse equilíbrio que falamos quando debatemos as propostas do PSD de Rui Rio, inicialmente subscritas por responsáveis socialistas, para reformar o Conselho Superior do Magistério Público. Justifica-se por isso que dediquemos um Macroscópio a esta controvérsia – e falo da discussão de fundo, não de saber se Marques Mendes se excedeu ou não nos seus comentários.
 
Primeiro que tudo: o que propõe Rui Rio? Que no Conselho Superior do Magistério Público passe a existir uma maioria de membros nomeados pelo poder político, ou pela sociedade civil, o que acabará por ir dar ao mesmo. A argumentação da direcção do PSD, materializada hoje num artigo de Mónica Quintela no Público, Desconstruindo demagogias… pela coerência de atitudes, é que “Hoje a composição do CSMP não obedece ao princípio democrático da representatividade dos cidadãos. E é o único conselho superior das magistraturas em que tal acontece. A desproporcionalidade existente leva a que não seja possível qualquer tipo de escrutínio (e não controlo!) sobre a atividade do MP, que permanece opaca e indecifrável aos olhos dos cidadãos e do próprio MP, como veremos adiante.”
 
Em concreto a composição exacta deste órgão não está prevista no texto constitucional, que pode ser consultado aqui. Se a nossa Constituição da República dedica um artigo inteiro, o 218º ao Conselho Superior da Magistratura, o CSMP só é referido de passagem no ponto 2 do artigo 220º: “A Procuradoria-Geral da República é presidida pelo Procurador-Geral da República e compreende o Conselho Superior do Ministério Público, que inclui membros eleitos pela Assembleia da República e membros de entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público.”
 
Existem razões para esta diferença de tratamento? Aparentemente existem, como se depreende da natureza diferente da Magistratura Judicial e da Magistratura do Ministério Público, um ponto para que chamou a atenção a anterior ministra da Justiça, e deputada do PSD, Paula Teixeira Pinto, em declarações ao Expresso: “O Ministério Público é uma magistratura hierarquizada, os magistrados obedecem a ordens da hierarquia, ao contrário dos juízes, que não têm uma hierarquia. O CSM não decide como é que um juiz deve julgar determinado caso, mas no Ministério Público a hierarquia pode dizer quais as investigações que são mais ou menos prioritárias. A diferença está aí, e é enorme." Mais adiante acrescenta que é o CSMP que escolhe o vice-procurador-geral da República, os procuradores coordenadores distritais e o diretor do DCIAP, ou seja, que nomeia os dirigentes que controlam o andamento das investigações, sendo que “quem domina a cadeia hierárquica domina a investigação".

 
É este o argumento de quem sustenta que esta alteração altera o equilíbrio de poderes próprio de uma democracia liberal e, a concretizar-se, representaria uma deriva num sentido iliberal, na sua essência (não no seu alcance) não muito diferente daqueles a que assistimos em alguns países do leste da Europa, em que os governos manobraram para controlar as magistraturas. Daí algumas das reações dos últimos dias:
  • Marques Mendes, no seu comentário semanal na SIC, falou em controlo político do Ministério Público: “Em Portugal há dois políticos iguais na vontade de controlar a justiça e a comunicação social: José Sócrates e Rui Rio. Nessa matéria, eles são verdadeiros irmãos siameses. Podem até ser diferentes nas intenções e no carácter, mas nas ideias são iguais. Um e outro gostavam de poder dizer o que se investiga, como se investiga e quando se investiga.”
  • Nuno Garoupa, num debate na Renascença, defendeu que com esta iniciativa “o PSD estende a mão ao aparelho socrático para fazer a reforma que o aparelho socrático sempre pretendeu: que é ter os partidos a mandar no Ministério Público. Isto não cabe na cabeça de ninguém. O PSD perdeu a cabeça.” Mais adiante considerou que “A agenda é claríssima: condicionar o MP na gestão do que é o calvário da classe política actual e que são os inquéritos do Ministério Público.”
  • O sindicato dos magistrados do Ministério Público emitiu um comunicado Por um Sistema de Justiça independente. Contra a corrupção e politização do Ministério Público, onde, além de se anunciar uma greve, se escreve que “O que está em causa neste momento é se a nossa sociedade quer uma investigação criminal autónoma ou pretende um sistema dominado pelo poder político com o retrocesso irremediável do combate ao crime económico, pondo fim à separação de poderes. A proposta viola frontalmente várias recomendações internacionais, designadamente do Conselho da Europa, (...) além de extravasar do compromisso saído do pacto da justiça e atraiçoa todas as negociações tidas ao longo dos últimos 6 anos.

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Para além destas reacções, naturalmente mais breves e directas, há três textos mais estruturados que vale a pena conhecer, dois no Observador e um na Sábado:
  • Por que razão os políticos têm medo da Justiça?, de Luis Rosa (Observador), que recorda o que se passou em Itália: “Certamente inspirado pelo grande exemplo que Silvio Berlusconi representa para qualquer democrata, Rui Rio decidiu imitar uma tentativa pornográfica de reforma judicial que Berlusconi começou a desenhar quando estava acossado por diversos processos judiciais. Um dos pontos dessa pretensa reforma (que nunca foi concretizada) passava por retirar poderes ao Conselho Superior da Magistratura (que, em Itália, serve as duas magistraturas). Dizia Berslusconi que “numa verdadeira democracia, a justiça não pode estar submetida ao poder de uma categoria [os juízes e os procuradores] que não têm legitimidade eleitoral”.
  • Democratura com pezinhos de lã, de José P. Ribeiro de Albuquerque (Observador), Secretário-Geral do SMMP, depois de explicar os mecanismos da separação de poderes, defende que “é inútil ter um juiz independente na jurisdição penal se não existir um órgão também independente que lhe requer a aplicação da lei penal de modo igual para todos. Mas para ser considerado autoridade judiciária independente não basta não basta ao Ministério Público a designação de autónomo. É necessário o concurso de um conjunto de características que assegurem a prerrogativa. Para ser uma magistratura credível no cumprimento das suas atribuições, constitucionais e legais, e para assegurar o acesso imparcial à justiça, tem de recusar qualquer ponto de equilíbrio ou de dependência em relação ao poder executivo (os dois pilares – Governo e Presidente da República) e em relação ao poder legislativo.”
  • O combate à corrupção e a politização do Ministério Público, de António Ventinhas (Sábado), que recorda os avanços recentes em investigações relativas a casos de corrupção e sustenta que “O que está em causa neste momento é se a nossa sociedade quer uma investigação criminal autónoma ou se pretende um sistema dominado pelo poder politico”, considerando que “Quem defenda o sistema de Justiça e o combate à corrupção nunca defenderá uma proposta que subjugue a investigação criminal a interesses políticos. Neste momento decisivo da história da nossa democracia veremos quem pretende erradicar a corrupção e quem tenciona proteger interesses ilícitos que prejudicam toda a sociedade”.
 
A aparente mudança de posição do PS que, depois de ter sinalizado que acompanharia o PSD de Rui Rio nesta iniciativa, veio pela voz a ministra da Justiça, Francisca Van Dunen, considerar o tema uma “não questão”, terá feito desaparecer a maioria necessária a qualquer mudança nesta legislatura, faltando saber o que nos proporão os principais partidos nos seus programas às legislativas 2019. Até lá recordemo-nos que os debates sobre democracia mais ou menos liberal – ou iliberal – podem parecer uma coisa longínqua, mas às vezes estão ao virar da esquina.
 
De resto por hoje é tudo. Tenham bom descanso, e lembrem-se que falta só uma semana para o Natal.

 
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