sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Macroscópio – A reunião com que o Papa Francisco procura unir a Igreja e acabar com os abusos sexuais

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Começou ontem em Roma e decorre até domingo uma reunião, convocada pelo Papa Francisco, onde os presidentes das Conferências Episcopais estão a discutir como reagir de forma mais enérgica aos escândalos sexuais que não cessam de atormentar a Igreja de Roma. Um longo caminho foi percorrido nos últimos anos, o silêncio que antes era a regra foi sendo substituído pela urgência da denúncia e da investigação e, poucos dias antes do início desta reunião, deu-se mesmo um passo importante, radical: Theodore McCarrick, de 88 anos, que fora cardeal e arcebispo da capital dos Estados Unidos, foi demitido do estado clerical, o que significa que também ficou privado de todos os seus benefícios, incluindo a sua pensão. Nunca tal pena tinha sido aplicada a um cardeal, o que mostrou que acabou o tempo da complacência. Neste Macroscópio vamos falar um pouco do que se está a passar em Roma, do se passou em Portugal e do difícil que é quebrar o silêncio. Difícil mas importante. É um Macroscópio onde o Observador estará mais presente do que é habitual, porque também tem tido um papel de relevo no tratamento informativo deste tema – e na investigação jornalística dos casos mais dolorosos.
 
Comecemos porém por estabelecer o ponto de referência, e este é naturalmente aquilo que se pretende da reunião de Roma. Para isso nada melhor do que ouvir Hans Zollner, o jesuíta que o Papa Francisco encarregou de preparar este inédito encontro no Vaticano. Deixo-vos três referências:
 

Continuando no espanhol ABC julgo que o seu editorial de ontem, La ocasión que la Iglesia no debe perder, toca nalguns dos pontos mais importantes, nomeadamente que “La jerarquía católica no ha sabido o querido reaccionar como demandan unos tiempos que están dominados por la desaparición progresiva de tabúes. La secularización de las sociedades ha inoculado el sentido crítico en las relaciones entre los fieles y sus pastores y ya no basta con invocar la condición sacerdotal para acallar una sospecha o una denuncia.”
 

Refira-se que Espanha tem vivido o horror de uma imensa sucessão de revelações, muitas resultado de investigações jornalísticas, em especial as levadas a cabo pelo El Pais. Para se ter uma ideia da dimensão do abalo é essencial consultar o excelente dossier desse mesmo jornal Pederastia em la Iglesia Españolaonde se recordam os “82 casos de abusos a menores destapados en los tribunales y en los médios”. O gráfico que reproduzo acima dá uma ideia do trabalho de investigação dos jornalistas daquele diário de Madrid, que está acessível em Cae el secreto de los abusos en España, onde se expõe como “Cinco meses de investigación de EL PAÍS han sacado a la luz 19 casos con 87 víctimas de la pederastia, casi la mitad de los que se conocían hasta ahora en los últimos 30 años”. Como se pode ver olhando para o gráfico uma parte desses casos pode vir à luz do dia porque o jornal abriu uma linha para acolher denúncias que depois os seus jornalistas investigavam, apurando se tinham ou não veracidade. Assim foi possível quebrar muitos silêncios.
 
A questão do silêncio e de como ajudar a vencê-lo foi precisamente uma das que se colocou à equipa do Observador que, nos últimos meses, também procurou fazer o ponto da situação dos abusos em Portugal. Esse trabalho foi realizado no terreno por dois repórteres, um que trata habitualmente temas de religião, João Francisco Gomes, e uma que acompanha com mais regularidade a área da justiça, Sónia Simões, com o apoio e coordenação da editora de sociedade, Sara Antunes de Oliveira, e dos directores Miguel Pinheiro e Filomena Martins. Nesta página especial, Abusos da Igreja, reunimos as suas reportagens e primeiras conclusões, assim como textos e vídeos onde se explica como todo o trabalho foi realizado.
 
Uma investigação como esta é dolorosa e incomoda. E naturalmente pode levantar polémica, crítica e aplauso. Não a iludimos. Hoje, no Observador, publicámos um texto crítico, de José Maria Seabra Duque, O especial do Observador sobre abusos de menores, conscientes de que não será uma opinião isolada. A sua conclusão é que, lendo a investigação do Observador, “Não há (...) indícios que esta praga seja sistémica em Portugal. Estes casos, sendo cada um uma tragédia e uma vergonha, são, aparentemente, casos isolados. Isto não deve evidentemente eximir a nossa hierarquia da responsabilidade de garantir que casos destes não voltam a acontecer.” Para além das apreciações que faz do comportamento dos bispos portugueses, critica o jornal por “levantar a suspeita de que haverá por aí sacerdotes abusadores que nunca foram denunciados” considerando que isso “é alimentar uma calúnia que os factos revelados pela reportagem não sustentam”. 
 
Também hoje Miguel Pinheiro, consciente das questões levantadas neste texto e do que nas redes sociais e caixas de comentários se escreveu, entendeu útil esclarecer melhor a posição do jornal, o que fez em O Observador e os abusos na Igreja. O texto organiza-se em torno de um conjunto de questões a que vai respondendo:
  • A hierarquia da Igreja denunciou os abusos e colaborou com as autoridades?
  • Os casos de abusos conhecidos são poucos e não fazem com que a Igreja se distinga de outras instituições?
  • As histórias contadas até agora são todas antigas ou conhecidas?
  • Ao criar uma linha de contacto para potenciais vítimas, o Observador está a estimular a calúnia?
  • As reportagens do Observador são o resultado de uma agenda escondida contra a Igreja?
  • O Observador está a insinuar que há mais casos, mesmo que não saiba nada sobre eles?
Destaco uma passagem da sua resposta a este último ponto: “O próprio Papa Francisco lembrou recentemente uma estatística reveladora: apenas 50% dos casos de abusos são denunciados. Isto quer dizer uma de duas coisas: ou Portugal é uma anormalidade estatística, ou, de facto, há uma altíssima probabilidade que existam entre nós casos não conhecidos.” 
 
Houve também quem, sendo católico, assumisse de forma aberta o elogio à investigação do Observador. Dessas tomadas de posição destaco duas: 
  • A pedofilia na Igreja portuguesa? Ficar e limpar, de Henrique Raposo na Rádio Renascença: “O trabalho notável da equipa do "Observador" interpela-nos como católicos e como portugueses. Neste sentido, há que repetir para a realidade portuguesa aquilo que já foi dito para a realidade católica internacional: perante desilusão que é esta face da Igreja, há que resistir e ficar em nome da fé, do evangelho, de Jesus Cristo, que nos avisou que a sua própria igreja seria composta por pecadores (Pedro está quase sempre errado ou desorientado no evangelho). Há que resistir, ficar e ajudar a limpar. Há que ficar e ajudar a mudar esta cultura de secretismo.”
  • Católicos anticlericais precisam-se, de António Pimenta de Brito, co-fundador do site datescatolicos.org, hoje no Observador: “O Pe. Manuel Barbosa, secretário da Conferência Episcopal, reagiu às investigações do Observador desta forma: “foram só” (não sei quantos casos), “Os outros o que estão a fazer?”, “Vai dar ao mesmo”(ir ao encontro ou esperar pelos testemunhos dos abusos). Senhor Pe., não vai dar ao mesmo esperar pelo testemunho ou ir ao encontro. Estas pessoas estão fragilizadas, é preciso ouvir mas tomar a iniciativa, como diz o Papa Francisco.”

 
Posso parecer parte interessada, e sou, mas julgo que estas posições estão muito alinhadas com aquilo que tem saído do encontro do Vaticano. Ainda hoje o cardeal colombiano Rubén Salazar Gómez não poupou nas críticas ao clericalismo, afirmando que "não estivemos à altura da nossa vocação", como se relata em “Os primeiros inimigos estão entre nós, entre os bispos e os padres”. Eis como ele desenvolveu a sua crítica ao clericalismo: “Uma breve análise do que aconteceu mostra-nos que isto não é apenas uma questão relacionada com desvios sexuais ou patologias dos abusadores, mas há também uma raiz mais profunda. É a distorção do significado do ministério, que se converte num meio de impor a força, de violar a consciência e o corpo dos mais fracos. Isto tem um nome: clericalismo”.
 
Por outro lado, há mesmo uma profunda e real necessidade de encontrar formas de quebrar a barreira do silêncio – a nossa motivação na criação de uma linha aberta para denúncias. Nada de muito novo pois também La Diócesis de Salamanca «ruega e invita» a denunciar los abusos sexuales cometidos por sacerdotes. Nada que me parece pode chocar, antes procurar responder ao que P. António Ary, sj chama A ferida maior é o silêncio. Num texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ, e depois reproduzido no Observador, este sacerdote sublinha que “Tomar partido a favor da vítima não significa, naturalmente, assumir-se indiscriminadamente contra o alegado agressor, nem fazer julgamentos apressados. A caridade não dispensa, antes exige, a verdade. Esta exigência supõe que nenhuma denúncia fique sem resposta, que todas as notícias de um potencial abuso sejam investigadas, tal como, aliás, requer o direito canónico e todos os protocolos que têm vindo a ser adotados.”
 
 Deixo-vos ainda mais uma referência a reforçar este ponto, a da crónica de Laurinda Alves também no Observador, Igreja segura, tolerância zero : “A primeira lição que devemos aprender e ensinar é a de não guardar silêncio. Quem cala nunca se protege a si mesmo, só está a proteger o agressor. Nesta lógica, temos que criar mecanismos para ajudar a quebrar o silêncio que muitas vezes se perpetua durante anos.”
 
Dito tudo isto é preciso estar consciente que se muito caminho já foi percorrido, muito caminho há ainda por percorrer, muitos casos haverá ainda por revelar, muitas dores por aliviar, muitos crimes por castigar. O Papa Francisco nem sequer começou por ter a melhor das abordagens a este dossier (recordemos as polémicas da viagem do Chile, por exemplo), mas do encontro destes dias podem sair orientações muito importantes. Há, contudo, que moderar euforias. Daniel Verdú, especialista do El Pais, recorda-nos em Una crisis vaticana en cuatro actos aquilo que muitas vezes esquecemos: é que nem sempre o mediatismo e a popularidade correspondem a reais reformas. Eis o núcleo do seu argumento: “El gran reformador, como lo definió su biógrafo, Austen Ivereigh, sigue sin sacar adelante cuatro de las grandes transformaciones que anunció a su llegada: las finanzas, la reforma de la curia, la comunicación y la lucha contra la pederastia. Ha habido un sinfín de cambios en los dicasterios, pero tras seis años, es difícil encontrar un relato unitario más allá del valioso acercamiento a los pobres y a los migrantes, que le ha convertido en un importante actor político frente a las embestidas del populismo de Donald Trump o Matteo Salvini.”
 
Termino este Macroscópio algo atípico – como referi de entrada, com muito mais Observador do que o habitual – com uma nota de alguma tristeza. Sinto sinceramente que a investigação que realizámos devia ter suscitado um debate mais aberto em Portugal, mesmo que fosse para a criticar. Suspeito que algum desse debate não ultrapassou a surdina. Temo que o natural incómodo tenha levado muitos a preferir o silêncio, quando é o silêncio que se pede para quebrar.
 
Mas tenham um bom fim de semana. O sol parece que vai ajudar.
 
 
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