quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

TEM UMA PEDRA NO CAMINHO

Péricles Capanema
Tem uma pedra no meio do caminho. Drummond — que aliás qualificou o verso famoso de “texto insignificante, um jogo monótono” — na verdade escreveu “tinha uma pedra no meio do caminho”. Podia ser que já não mais lá estivesse. Eu, por meu lado, não estou tratando do passado, refiro-me a presente candente, agora tem uma pedra grande no meio do caminho. Trata-se de tirá-la da frente.
Vamos aos fatos. O Dr. Salim Mattar, secretário-especial de Desestatização e Desinvestimento, em 14 de janeiro afirmou, ao longo de 2020 o governo pretende arrecadar com privatizações, vendendo uns 300 ativos, em torno de R$150 bilhões. Aplausos, o caminho para a prosperidade passa pela desestatização; de outro modo, pela privatização.
Informou a mais o dirigente, a Caixa, o Banco do Brasil e a Petrobrás não serão tocados. Os Correios ficaram para fins de 2021. Anunciou ainda, a maior parte do dinheiro arrecadado virá de desinvestimento (vendas) no sistema Eletrobrás. Em suma, enorme programa de privatização em curso; para torná-lo mais ágil serão encaminhados projetos de lei à Câmara dos Deputados, asseverou o Dr. Salim.
Repito o que escrevi, para mim, em princípio, quanto mais ampla a privatização, melhor. O particular tem mais eficácia que o burocrata quando o assunto é contratar, comprar, vender e produzir. No fim, com a economia na mão de particulares e não do Estado, teremos produtividade maior; enfim, mais emprego e renda, o que favorece o bem comum. E que o Estado execute bem o que lhe é próprio, regulações, defesa, segurança, proteção da moeda, atenção especial aos mais carentes, alguma coisa mais, tem valioso e insubstituível papel. É a aplicação do princípio da subsidiariedade nas relações entre a sociedade e o Estado, entre o particular e o estatal. Paro, e até peço desculpas, estou me sentido um pouco o conselheiro Acácio.
Agora, com licença do Eça, dou as costas ao conselheiro, e trato de assuntos que não são (ou não parecem) óbvios, ênfase em matéria constitucional.
Ao longo de 2020, aposta minha, o leitor escutará até o fastio as seguintes expressões: empresários chineses, empresas chinesas, investimentos chineses, investidores chineses. Não acredite. É mentira deslavada. Melhor, fraude escandalosa para esconder a realidade (conhecida, aliás, do Brasil inteiro, mas misteriosamente silenciada). Vou explicar.
Dizia Talleyrand, “boutade” dele, uma a mais, a palavra nos foi dada para dissimular o pensamento (há variadas versões do que ele teria de fato afirmado, todas em torno da ideia de que a palavra mais serviu para disfarçar do que para exprimi-lo). É o nosso caso, a dissimulação. Mais no ponto, dissimular para ocultar a verdade inteira.
Volto ao que dizia e explico. À vera, as empresas chinesas que investem no Brasil são na maioria esmagadora dos casos, para ser prudente, estatais chinesas — dirigidas dos pés à cabeça, por dentro e por fora — pelo governo chinês, o qual, por sua vez, não nos esqueçamos temos lá governo de partido único, é dirigido pelo Partido Comunista Chinês (PCC). Os empresários chineses que transitam no Brasil (conto da carochinha) são na verdade burocratas, membros bem vistos e bem vestidos do PCC, com cargos de direção nas estatais. Os tais investidores chineses que aplicam no Brasil, outro recurso ardiloso, na verdade não existem; é dinheiro posto aqui pelo governo chinês, dono das estatais.
Então, a bem da transparência, fica aqui a errata. Quando você ler empresas chinesas, leia empresas estatais chinesas. Quando ler, empresários chineses, leia burocratas chineses. Quando ler investidores chineses, leia aplicações do governo comunista chinês via estatais. Quando ler investimentos chineses, leia aplicações do governo chinês, dirigido pelo PCC. Não vai errar em, por baixo, 99,9% dos casos.
O que estou bradando em cima dos tetos — proclamai-o do alto dos telhados, obrigação evangélica (Mt 10, 27) — é proibido divulgar desse jeito (mas todo mundo sabe que é assim). Todo mundo vai continuar a falar de empresários chineses, de investidores chineses, de capitais chineses, de empresas chinesas. Você, minha dica, aplique a errata, pois na prática está proibido mudar tal linguagem. De onde vem a proibição, que apunhala a realidade? Não sei. Mais, pedaço grande do programa de privatização brasileiro corre o risco de cair nas mãos de estatais chinesas (parte já caiu). Um exemplo entre dezenas, a imprensa nos últimos dias noticiou que a SABESP, 28 milhões de clientes, onde o governo tem 50,3% do capital votante, poderá ser vendida. A quem? Repito o que li: a empresários chineses, a empresas chinesas, a grupos chineses. Dissimulação. Qual a empresa interessada num negócio que pode chegar a R$40 bilhões ou mais? Só um nome, China Railway Construction Corporation, estatal chinesa. Privatização à brasileira.
Não sou constitucionalista e, por isso, solicito auxílio deles. Mas me surpreenderia se não estivéssemos diante da maior agressão à Constituição da história brasileira — monstruosa, aberrante, silenciada e silenciosa.
Adiante, escrevendo preto sobre o branco. Comanda o artigo 173 da Constituição:
“Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
A exploração direta da atividade econômica pelo Estado se dá por meio de empresas públicas e empresas de economia mista (estatais). O Estado brasileiro está proibido de agir diretamente na esfera econômica salvo nos dois casos acima. Logo, seria aberrantemente ilegal que o Banco do Brasil, a Caixa, a Petrobrás, entre outros agentes econômicos, via de regra (sempre se pode pensar em pequenas exceções), participassem do processo de privatização. Seriam atos inconstitucionais, nulos.
Se ao Estado brasileiro é vedado participar do processo de privatização no Brasil, a fortiori os Estados estrangeiros estão impedidos de fazê-lo por meio de suas estatais. É absurdo, de fato, entre nós, muitas vezes, para privatizar, a propriedade sai das mãos do Estado brasileiro e vai para as mãos de Estado estrangeiro. Na prática, contudo, estamos tendo a presença gigantesca de estatais de outros países no processo de privatização do Brasil. E não só de estatais chinesas. Tais atos não foram nulos por inconstitucionais?
Quando você ler fundo soberano de tal país, entenda estatal de tal país, outra expressão para a errata. Vários fundos soberanos (estatais) estão ativos no Brasil, tentando aproveitar as oportunidades do processo de privatização. Um exemplo, poucos dias arás, foi feita a concessão (uma forma de entrega à iniciativa privada) do trecho Piracicaba-Panorama. O consórcio vencedor, Consórcio Infraestrutura Brasil, é formado pelo fundo Pátria e pelo fundo soberano GIC (fundo soberano de Singapura). Foi a maior concessão até hoje feita. O GIC é uma estatal de Singapura. Vedado ao Estado brasileiro, mas permitido a Singapura, um Estado soberano? Pode?
Aqui está, tudo o indica, o argumento falacioso por trás dos investimentos de governos estrangeiros no Brasil: todas essas aplicações de capitais estão sendo abrigadas, por desídia e velhacaria (é impostura, e ela continua intacta) no artigo 172 da Constituição:
“A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos”.
Capital estrangeiro, o ponto. Mas não estamos diante apenas de capital estrangeiro, não estamos tratando apenas de investimentos estrangeiros. É falsidade ululante parar por aí. Vamos colar nos fatos. Estamos diante de capital estrangeiro estatal, óbvio ululante, para uma vez mais lembrar Nelson Rodrigues. São governos os seus proprietários. E nesse caso, vale o artigo 173: se há vedação constitucional para o Estado brasileiro estar presente, muito menos poderá o Estado estrangeiro investir por meio de empresas públicas, sociedades de economia mista ou fundos soberanos. Claro como água de pote.
Se assim não fosse, o Estado brasileiro na obediência ao artigo 172 não poderia ser proprietário por vedação constitucional, mas, por absurdo, a Constituição estimularia que, nas mesmas circunstâncias, Estados estrangeiros abocanhassem tais propriedades.
Não adianta chiar, estamos diante de problema constitucional grave, nulidade de atos há anos sucedendo no ordenamento jurídico nacional. Martelo, não estamos tratando de investimentos estrangeiros, é falsa a afirmação, estamos falando de investimentos estatais de Estados estrangeiros. Aqui está o problema.
O problema está aqui, mas não está só aqui. Vai mais longe. A atividade econômica no Brasil obedece a princípios, comanda o artigo 172, o primeiro dos quais (inciso I) é que não pode lesar a soberania nacional. Nem real, nem potencialmente. Pergunto, os investimentos maciços de estatais chinesas no Brasil que em nada, só por chacota, poderiam ser “imperativos de nossa segurança nacional” não ameaçam a segurança nacional? A presença crescente deles na infraestrutura tem “relevante interesse coletivo”? Ligarmos nossa economia, que passará a ter um de seus pontos nevrálgicos em Pequim, na sede do PCC, tão íntima e fortemente a um poder mundial imperialista e ditatorial em nada arranha a soberania? Poder que hoje, visto com simpatia pela esquerda interna entreguista, apoia ditaduras como Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba. É nosso futuro, sem dúvida de retrocesso e atraso, adversário dos direitos humanos?
Um último ponto, a Constituição determina, artigo 172, a lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro. Fala em capitais privados, é claro; refere-se também a capitais públicos. É do interesse nacional termos gigantescas presenças na economia de Estados estrangeiros, em especial da China comunista?
Paro por aqui e faço convites cordiais. Os constitucionalistas precisam se pronunciar, também é imprescindível que falem os setores que por missão institucional ou presença na vida pública estão especialmente ligados à preservação e defesa da independência nacional, assim como de nossos interesses estratégicos. Tem uma pedra no meio do caminho. Uma, não; várias, grandes e cortantes.
ABIM

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