terça-feira, 6 de março de 2018

OPINIÃO Foi isto um procurador-geral da República

A entrevista a Pinto Monteiro mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.
João Miguel Tavares
A entrevista que Fernando Pinto Monteiro concedeu ao PÚBLICO e à Rádio Renascença na semana passada é a mais reveladora de toda a sua carreira. Ela demonstra, ainda que de forma involuntária, as razões por que Pinto Monteiro assumiu o papel de guarda-costas oficioso de José Sócrates entre 2006 e 2011, e por que se afundaram no Ministério Público todas as investigações que envolveram o então primeiro-ministro.

Sobre as mentiras de Pinto Monteiro nessa entrevista já Luís Rosa escreveu um excelente texto no Observador (O legado de Pinto Monteiro). E sobre tantos aspectos ainda por esclarecer da sua nomeação – como a relação de proximidade de José Sócrates com o seu irmão, o professor de Direito de Coimbra António Pinto Monteiro, ou a possibilidade de ter sido Proença de Carvalho a sugerir o seu nome – já Vítor Rainho escreveu um bom artigo no Sol (Um procurador que gosta de José Sócrates). Eu prefiro chamar a atenção para dois aspectos que esses textos não desenvolvem: os seus tristes comentários sobre o processo Face Oculta; e as barbaridades que disse como se fossem banalidades, tão sintomáticas do seu carácter.

Quanto às famosas destruições das escutas do processo Face Oculta, o ex-Procrador-geral da República admite na entrevista que delas constam a venda da TVI, pelo que se pressupõe que Sócrates foi mesmo apanhado a discutir os seus detalhes. Pinto Monteiro desvaloriza esse facto com o rigor habitual – “a estação de televisão de que está a falar já foi vendida e revendida 30 vezes!” –, e utilizando um argumento decisivo: “Aquilo não tem nada a ver com crime de atentado ao Estado de Direito! Sabe o que é um atentado ao Estado de Direito? Dou-lhe um exemplo: é um Governo acabar com o Tribunal Constitucional.”

Eis um exemplo extraordinário, que entronca numa interpretação que Freitas do Amaral já tinha desenvolvido em 2010 nas páginas da revista Visão. O texto chamava-se Decifrai o Procurador e nele Freitas acusava o procurador-geral da República de ter optado “por uma interpretação muito restritiva do conceito de atentado ao Estado de Direito.” Ou seja, Pinto Monteiro mandou destruir as escutas não porque elas fossem inocentes, mas porque no seu entendimento um atentado ao Estado de Direito envolve a destruição de uma instituição – conspirar sobre a sua venda parece ser insuficiente.

Esta interpretação tão estrita daquilo que constitui uma conduta criminosa, e esta visão tão lata daquilo que é permitido a quem ocupa cargos de poder, está espalhada por toda a entrevista. Pinto Monteiro assume que atendeu chamadas de Rui Rio a queixar-se da justiça (“telefonava-me de vez em quando a protestar contra as fugas”) e que isso não tem mal algum; declara que ir a lançamentos de livros de políticos sobre os quais tomou decisões judiciais é a coisa mais banal do mundo; confessa ter sido “principescamente” tratado quando viajou até Angola para assinar protocolos de cooperação e não lhe passa pela cabeça que ser “principescamente” tratado levante problemas éticos.

Não creio que Pinto Monteiro algum dia tenha sido corrompido por dinheiro. É o próprio a autocorromper-se por vaidade – deslumbrado pelo poder, fascinado por políticos, e, como qualquer bom português, muito amigo dos seus amigos. Embora lamentável a vários títulos, a entrevista a Pinto Monteiro tem esta dupla vantagem: mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.

Fonte: Público
Jornalista

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