segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Macroscópio – A novela que não acaba: a Caixa Geral de Depósitos ou quanto vale a palavra de um político

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Nos últimos tempos o Macroscópio tem andado mais ocupado com os desenvolvimentos da política internacional, dos Estados Unidos de Trump a esta Europa que caminha trôpega para um conjunto de eleições decisivas, mas hoje tenho de regressar a Portugal. Não que existam muitos temas novos, mas porque alguns temas antigos insistem em voltar à tona de água, ou seja, há crises políticas que teimam em não desaparecer. A mais persistente de todas elas é a que envolve a Caixa Geral de Depósitos e as garantias que o ministro das Finanças deu, ou não deu, a António Domingues, o efémero presidente do banco do Estado.
 
Domingo à noite Marques Mendes relançou o debate com a revelação de que o controverso decreto-lei que libertada os gestores da Caixa dos espartilhos do Estatuto do Gestor Público esteve mais de um mês à espera de ser publicado no Diário da República, só o sendo no preciso dia em que a Assembleia da República entrava de férias. Assim, como notou Pedro Santos Guerreiro do Expresso, em Temos marosca, “Estávamos nós no mentiu-não-mentiu-omitiu-ó-tio-ó-tio de Mário Centeno quando ouvimos que o governo “manipulou” a data de alteração da lei para apanhar o Parlamento a entrar de férias e assim tudo passar despercebido.”
 
O dia acabaria com uma conferência de imprensa de Mário Centeno, onde este revelou que disse a Costa que o seu lugar estava à disposição, logo se seguindo um comunicado do primeiro-ministro a reafirmar a confiança e a divulgação da informação que o ministro fora hoje recebido pelo Presidente da República. Com estes três protagonistas cada vez mais comprometidos uns com os outros, e mais dependentes da “verdade” de cada um deles, e mais necessitados de se ampararem, sobretudo quando ainda há documentos (mais mails e a troca de SMS entre Domingues e Centeno) por revelar.
 
As polémicas dos últimos dias foram “incendiadas” pela revelação, parcial, do conteúdo dos mails trocados durante o processo de constituição da administração liderada por António Domingues. Os documentos foram revelados pelo jornal Eco - CGD: Carta secreta de Domingues compromete Centeno e Caixa: a carta secreta de Domingues para Centeno analisada à lupa. – sendo que na carta enviada a Mário Centeno, António Domingues escrevia taxativamente, por exemplo, que a não entrega das declarações de rendimentos do Tribunal Constitucional "foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD e do mandato para convidar os restantes membros dos órgãos sociais, como de resto o Ministério das Finanças publicamente confirmou.” (uma síntese de toda a informação, feita pelo Observador, pode ser lida aqui: E-mails confirmam que houve acordo entre Domingues e Centeno para administradores não declararem rendimentos)
 
António Costa, o director do Eco, não teve dúvidas que, face aos documentos apresentados, estávamos perante A história de uma mentira. Assim, “António Costa [o primeiro-ministro], ontem, no Parlamento, fez uma coisa feia: para proteger Centeno, acusou implicitamente António Domingues de mentir quando escreveu, na carta de dia 15, que tinha um acordo com Centeno. Mas essa afirmação não é suficiente para reescrever esta história.”
 
Esta leitura era naturalmente contrária à de André Macedo, director-adjunto da RTP, que desvalorizara no Diário de Notícias, em As cartas secretas de Centeno, a importância do debate: “Continuemos então a alimentar a discussão à volta da carta secreta - que coisa ridícula e falsa - de Mário Centeno. Vamos longe, vamos.”
 
(Sobre a controvérsia da “mentira de Mário Centeno”, reenvio os leitores para o Fact Check do Observador Fact Check/ Centeno não mentiu sobre acordo com Domingues?, realizado após o debate quinzenal realizado a semana passada na Assembleia da República no qual António Costa saiu em defesa do seu ministro.)
 

As cartas levantaram contudo outros problemas, que vale a pena referir. Por elas se ficou também a saber que um escritório de advogados que trabalhava para António Domingues teve um papel importante na redacção do decreto-lei da polémica. É algo que Paulo Ferreira, escrevendo ainda no Eco, não perdoa em É uma lei, por favor. Mal passada, com molho e sem batatas: “O país que discute as parcerias público-privadas (…) assiste depois tranquilamente à privatização de um processo legislativo documentalmente comprovado e nada acontece. Nem Bloco, nem PCP, nem PSD ou CDS têm nada a dizer sobre isto? Deixem-me ver se entendo. A Carris não pode for concessionada a privados porque é um escândalo. Mas o governo ou o parlamento podem fazer o “outsourcing” da feitura de leis a escritórios de advogados contratados por privados que está tudo bem. É isto?
 
Já no Jornal de Negócios, Armando Esteves Pereira chama a atenção, em A verdade, a mentira e a omissão, para outros detalhes menos normais: “Costuma-se dizer que o diabo está nos detalhes e da divulgação dos e-mails entre António Domingues e a equipa das Finanças há um pormenor que está a passar despercebido. Domingues, gestor do BPI, tratava da mudança da legislação dos gestores da Caixa com o seu escritório privativo de advogados e o mail de contacto era do BPI.”
 
Estávamos nisto quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, entendeu entrar em cena para também ele tomar a defesa do ministro, dizendo que acredita em Centeno “até encontrar alguma coisa assinada”. Ana Sá Lopes, logo do dia seguinte, não lhe perdoou no editorial do jorna i: Há um papel escrito, sr. PR. O resto é pós-verdade. Nesse texto recordou que “O momento em que Mário Centeno não mente é em 25 de outubro passado, quando assume com uma clareza infinita que os gestores da CGD não terão que entregar declarações de rendimentos. Isso está escrito: é um comunicado oficial do Ministério das Finanças enviado a várias redações. Se Marcelo quer um papel escrito a defender uma posição que, a seu ver, seria “inaceitável”, já tem este. Não foi um erro dos assessores. Foi assumido dias depois em voz alta pelo próprio ministro.
 
Já Paulo Baldaia, no Diário de Notícias, entendeu oportuno recuperar uma carta aberta que dirigiu a Marcelo Rebelo de Sousa há três meses e que considerou estar mais do que actual: “A nota do Ministério das Finanças dando conta de que não havia lapso nenhum, as declarações de governantes explicando que o escrutínio seria feito pelo Banco de Portugal e a tentativa do PS para reverter a clarificação feita no Parlamento, em final de novembro, para obrigar a entregar a declaração, não deixam a mínima margem para dúvidas. Não é preciso nenhum papel assinado, senhor Presidente, para nos dizer o que todos sabemos.”, escreveu em A CGD a propósito de uma carta escrita a Marcelo.
 
Eu próprio, aqui no Observador e em “House of Cards” na Caixa Geral de Depósitos, tentei recapitular tudo o que já sabemos sobre este processo, mas considerei especialmente grave a forma como as primeiras figuras do Estado português têm vindo a actuar, sublinhando que “O ponto em que hoje se encontra o debate é lamentável. E quem o fez descer a esse nível mais rasteiro foi o Presidente da República, em concubinato com o Governo. Disse o primeiro, corroborou o segundo: uma mentira só é mentira se houver uma assinatura. O que significa que, para os mais altos representantes do Estado português, a palavra dada não tem valor. Só vale a palavra escrita. Falta saber se, no fim do dia, ainda vão exigir reconhecimento presencial num notário.”
 
(Também hoje, e também no Observador, Alexandre Homem Cristo recorda o comportamento de Marcelo Rebelo de Sousa neste processo para, em Saudades de Cavaco Silva, defender que “A monotonia de Cavaco Silva foi uma virtude, porque traduziu previsibilidade institucional. É assim que se faz nas democracias consolidadas: confia-se nas regras que enquadram a acção política para não se depender da arbitrariedade das pessoas que ocupam o poder. Marcelo, inquieto e omnipresente, quis fazer diferente. Sim, é mais popular do que Cavaco. Mas tudo na sua Presidência é menos transparente, previsível, escrutinável, coerente e imparcial.”)
 
Regressando ao comportamento de Mário Centeno, deixo-vos mais três referências, todas reflectindo uma avaliação negativa do comportamento do ministro:
  • CGD: uma comédia de enganos em cinco actos, de João Miguel Tavares no Público: “Não há forma de Centeno sair bem disto – é evidente que ele mentiu. É evidente que ele tinha consciência das condições impostas por Domingues. E tudo isto é evidente ainda antes de chegarem os mails e os SMS – no início do processo, foi o próprio ministro das Finanças que o admitiu.
  • A defesa, de João Vieira Pereira no Expresso: “É obvio que Mário Centeno sabia e concordou com as exigências de António Domingues. O ex-líder da Caixa jamais teria aceitado o cargo sem a certeza de que esse ponto estaria esclarecido. E jamais o ministro das Finanças deixaria de responder a um e-mail onde Domingues colocas essas exigências se as mesmas não tivessem acordadas.”
  • Marcelo, Costa e a CGD: precisa-se de um pouco mais, de Vítor Costa no Público: “Resumir esta coluna de horrores à existência de um documento assinado por Mário Centeno onde este promete a António Domingues e à sua equipa a exclusão da obrigação de entregar a declaração no Constitucional ou à eventual mentira do ministro no Parlamento é muito pequenino. Marcelo e Costa habituaram-nos a ser pouco formais. A informalidade com que lidaram com o dossier CGD é um bocadinho de mais.”
 
Fecho o Macroscópio com duas análises mais políticas. A primeira, de Ricardo Costa no Expresso é uma reflexão sobre o que leva um ministro a demitir-se, já que nem sempre é o mais óbvio. Em Não é a política que faz cair ministros nota que, “Apesar de ser um terreno de geometria muito variável, é hoje claro que as demissões políticas são muito mais certas em questões fiscais, de dinheiros públicos, de linguagem menos própria ou por gerarem indignação social do que por erros políticos graves, incompetência ou desrespeito das instituições.”
 
A reflexão de João Marques de Almeida no Observador, em As ironias do episódio Caixa, é sobre a forma diferente – paradoxalmente diferente – como governos de direita e de esquerda trataram da Caixa Geral de Depósitos: “O governo PSD e do CDS tratou a Caixa de acordo com as ideias da esquerda, recapitalizando-a inteiramente com dinheiro público e nomeando uma administração de acordo com o estatuto dos gestores públicos. Este governo aceitou recapitalizar a Caixa cumprindo as regras e o famoso teste dos mercados e contratando uma equipa de gestão no sector privado. Se um governo de direita o tivesse feito, as esquerdas protestariam com violência.”
 
E por hoje fico-me por aqui, mesmo estando certo que este folhetim, que agora aguarda desenvolvimentos sob a forma de sms, vai continuar. Aos meus leitores, desejo bom descanso e boas leituras. 

 
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