sábado, 4 de fevereiro de 2017

Esposa, mãe, católica e marqueteira

Péricles Capanema
Kellyanne Conway discursando durante a March For Life no dia 27 último
Kellyanne Conway discursando durante a March For Life no dia 27 último
Kellyanne Conway foi lançada em 2016 no centro da política norte-americana. Nascida em 1967, católica com títulos universitários prestigiosos, é casada com conhecido advogado e mãe de quatro filhos. Na vida profissional é marqueteira consagrada.
Seu (até agora) grande feito foi ser a primeira mulher a chefiar uma campanha presidencial nos Estados Unidos. A partir de 17 de agosto último, diante de perspectivas nada alentadoras, assumiu o bastão e mudou o rumo delas, conseguindo para Donald Trump consagradora vitória no Colégio Eleitoral. Atualmente é conselheira presidencial, posição de topo. Tem mais: vem sendo apelidada jocosamente de whisperer, para indicar que tem os ouvidos de Donald Trump. Logo estará na lista das mulheres mais poderosas dos Estados Unidos.
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Em Washington, no dia 27 de janeiro último, foi realizada a 44ª Marcha pela Vida, em protesto pela aprovação do aborto em 1973 pela Suprema Corte (caso Roe versus Wade). A manifestação recebeu estímulo público de Trump: “A Marcha pela Vida é muito importante. Para todos os que estão se manifestando, meu inteiro apoio”. Nela discursou o vice-presidente Mike Pence, que “em nome do Presidente” deu as boas-vindas aos participantes. Também discursou Kellyanne Conway, começando assim: “Sou uma esposa, uma mãe, uma católica, conselheira do presidente dos Estados Unidos”[foto acima, durante o evento].
Tais palavras estilhaçam o politicamente correto (entre nós, não entre eles). Não custa lembrar que meses atrás a revista VEJA (18-4-16), em reportagem sobre a atual primeira-dama Marcela Temer, pôs no título: “Bela, recatada e do lar”. Foi um deus nos acuda. Ironias, deboches, ataques, insultos encheram as páginas da imprensa tradicional e das redes sociais. O que respigo abaixo é apenas pequeno exemplo das centenas de milhares de manifestações. Diana Corso, psicanalista e escritora: “Acho que a pobre Marcela acabou carregando o ônus da onda de retrocesso. A existência dessa mulher nos coloca frente àquilo que temos lutado para não mais ter que ser”. Cláudia Tajes, escritora: “Não haveria nada de errado com a descrição se ela estivesse nas páginas de uma revista no início do século passado. Um mundo que só fala de empoderamento feminino e seus derivados só pode debochar ao ver uma guria de 30 anos ser retratada desse jeito. Coitada dela”. Nana Soares, jornalista: “Esta manchete parou no século 19. Estamos no século 21”. E vai por aí afora.
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Nos Estados Unidos, comentários desse naipe são anacrônicos. Kellyanne Conway, ao destacar como características que especialmente preza seu papel de esposa e mãe e sua condição de católica, lembrando só a seguir que ocupa um dos mais poderosos cargos na Terra, tem inteira consciência que tal enumeração a faz simpática no país inteiro e a fortalece na Casa Branca.
Por quê? Existiu nos Estados Unidos, décadas a fio, um enorme setor a bem dizer invisível. Oculto, um verdadeiro país conservador, vivendo em torno da família e do trabalho. A imagem dos Estados Unidos era outra, projetada pelos holofotes de Hollywood e pela fanfarronice emproada dos setores liberals (o que lá significa ter pelo menos propensões esquerdistas e libertárias), que gostam de monopolizar microfones. Impostura gigantesca que mandava e desmandava. Até que em certa hora o país majoritário se cansou do cabresto e da asfixia. Organizou-se, buscou participação nas universidades, presença nos meios de comunicação, influência na política. Enfrentou obstáculos sem nome, mas também obteve êxitos retumbantes, um dos quais foi o período Reagan de oito anos. As refregas continuam, polarizam a nação. Em suma, movimentos conservadores fizeram com que o país invisível tomasse consciência de si, opinasse e finalmente se afirmasse como parte influente, com direito a vez, voz e voto.
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Kellyanne Conway discursando durante a March For Life no dia 27 último
O acontecimento faz lembrar a lenda bretã da “cathédrale engloutie” (catedral submersa, engolida pelas águas), nas costas da ilha de Ys. Em certas ocasiões, os habitantes da região escutam badalar de sinos e ouvem cantos sagrados. Quando a água está muito transparente, lhe veem os contornos. A ação lúcida de lideranças responsáveis fez emergir das águas a catedral do país conservador nos Estados Unidos.

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Temos também entre nós há um Brasil invisível, desprezado, para cuja voz poucos atentam, mas que tem consciência de que pode ditar rumos, caso aflore. É uma catedral cujos sinos bimbalham, clamando por vir à tona. O Brasil foi colocado entre os países emergentes (com Rússia, Índia, China, África do Sul, o grupo BRICS). Antes, temos emergência mais urgente para fazer. Conscientizar, empoderar (já empregando o neologismo) grandes multidões, falar, libertar setores agora sufocados. Quando o Brasil, abaixo da linha da água, hoje invisível, se afirmar na proporção correta, será completamente normal uma mulher de grande expressão, no meio de aplausos, proclamar-se ufana esposa, mãe e católica. Como acontece nos Estados Unidos.

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