sábado, 27 de fevereiro de 2016

Estrangeiros muitas vezes expulsos sem acesso a advogado “em tempo útil”

Autoridades cabo-verdianas denunciaram ao PÚBLICO caso de um sem-abrigo com “perturbação psíquica” que vivia em Portugal desde criança e que foi recambiado "com a roupa do corpo". Lei de estrangeiros de 2012 passou a permitir a expulsão mesmo quando as pessoas nasceram cá ou têm cá filhos.
Nascido em Setúbal e com duas filhas menores, o recluso Daniel Varela viu-lhe ser aberto um processo de afastamento coercivo RUI GAUDÊNCIO
Muitos estrangeiros detidos que aguardam expulsão administrativa de Portugal não conseguem ter, “em tempo útil”, acesso a um advogado que os ajude a contestar a decisão, refere o jurista do Serviço Jesuíta aos Refugiados, João Lima, com base na experiência de um centro do Porto onde são detidas pessoas que aguardam "afastamento coercivo" do país. Desde 2012 passou a poder ser expulso de Portugal mesmo quem cá tenha nascido, quem aqui viva desde idade inferior a dez anos ou quem cá tenha filhos menores, desde que ponha em causa “a segurança nacional ou a ordem pública.”
Está previsto que a resposta ao pedido de apoio judiciário – nomeação de um advogado pelo Estado quando a pessoa não tem meios económicos para pagar a um  leve 30 dias, explica o jurista. Mas as respostas da Segurança Social chegam a demorar 60, diz. “Demoram muito tempo e às vezes não chegam”, nota o jurista. Muitas pessoas são, entretanto, expulsas do país.
O Serviço Jesuíta aos Refugiados começou, no início do ano passado, a fazer “um diagnóstico à legalidade dos afastamentos coercivos e às condições das detenções” na chamada Unidade Habitacional de Santo António, centro de detenção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) onde esta instituição presta apoio. Ainda não tem resultados. Também existem centros de detenção nos aeroportos internacionais de Lisboa, Porto e Faro. Pode ser expulso do país o estrangeiro que se encontre em situação irregular ou que tenha cometido crimes.
O Serviço Jesuíta de Refugiados já tinha alertado para o problema das falhas no apoio jurídico num parecer enviado ao anterior Governo, a propósito da alteração da lei de estrangeiros de 2012. Aí se referia que o prazo máximo de detenção administrativa previsto na lei é de 60 dias, mas que a média da detenção rondará os 20 dias, e que “durante o período de detenção o apoio por parte de advogados oficiosos é muito escasso ou até mesmo inexistente”. Uma afirmação que continua actual, reforça o jurista.
A presidente da Associação Luso-Caboverdiana de Sintra, Rosa Moniz, tinha já dito ao PÚBLICO, num artigo sobre este assunto que “a fragilidade [das pessoas que estão para ser expulsas] está em não terem capacidade para responderem ao SEF. Às vezes, as situações podiam reverter-se se tivessem advogado. O advogado oficioso não faz nada”, notando que "a lei actual veio facilitar muito as expulsões”.
A associação Solidariedade Imigrante chegou mesmo a propor “a criação de um gabinete sem encargos financeiros para o imigrante na zona internacional dos aeroportos, tutelado pela Ordem dos Advogados em parceria com organizações da sociedade civil.”
Numa reportagem do PÚBLICO em Cabo Verde, publicada no domingo, representantes das autoridades cabo-verdianas revelaram que o país tem recebido alguns casos de cidadãos expulsos de Portugal que viviam em Portugal desde crianças, e mesmo de “pessoas [expulsas] que nunca estiveram [em Cabo Verde]. Responsáveis do Ministério das Comunidades denunciaram "situações desumanas" na forma como Portugal faz as deportações.
A ministra das Comunidades, Fernanda Fernandes, contou o caso de um sem-abrigo encontrado nas ruas do Estoril pelo SEF que foi deportado ainda com a pulseira do departamento de Psiquiatra do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde esteve internado um mês antes de ser enviado para Cabo Verde “só com a roupa do corpo”. O seu relatório médico dizia que tinha sofrido “episódio depressivo severo com sintomas psicóticos”, adiantou Nádia Marçal, responsável, naquele ministério, pelo dossier do “Retorno Involuntário” no arquipélago africano. Tinha nascido em São Tomé e Príncipe e ido para Lisboa em criança. Quando chegou à Praia, depois de ter sido expulso de Portugal, não conseguiu identificar quaisquer familiares em Cabo Verde.
O PÚBLICO contou também a história de Daniel Sousa Varela, um recluso de 27 anos que está no Estabelecimento Prisional de Setúbal, condenado por furto. Nasceu em Setúbal e tem na cidade duas filhas portuguesas menores, uma de três e outra de oito anos. Foi-lhe aberto um processo de afastamento coercivo, ainda sem decisão de expulsão. Daniel chegou a ter bilhete de identidade português. Nunca esteve em Cabo Verde.

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