quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Só aquilo que sai de nós


Num tempo de grandes desa­fios importam ainda mais as pe­quenas coisas. Os gestos simples, o que dizemos e fazemos, mas acima de tudo a maneira como o fazemos e como o dizemos. O ‘como’ é, e será sempre, uma grande questão ao longo da nossa vida. Os ‘porquês’ ficam muitas vezes sem resposta e os ‘para quê’ nem sempre são claros ou inte­ligíveis. Muitas vezes precisamos de tempo para conseguir ler os acontecimentos da vida, para os podermos processar e integrar. Os ‘para quê’ quase nunca são imediatos, mas se os alcançamos ajudam a fazer caminho por se­rem oportunidades de cresci­mento e superação. Dão pistas e perspetiva, mudam o rumo e dão novos sentidos, mas podem ser extraordinariamente difíceis de encaixar e, por vezes, chegam a ser erosivos. Para quê uma doen­ça, uma morte, uma perda, uma crise, uma rutura, um afasta­mento, um desgosto, um colapso, um desmoronamento? Os ‘para quê’ são difíceis e exigem tempo, muito tempo. E fé. Uma fé que não tem que ser religiosa, note­-se. Pode ser uma crença, uma confiança no amor, na amizade ou na transcendência.

Já o ‘como’ é mais repentista e obriga a elevar a fasquia da exi­gência quotidiana. Está ao nosso alcance tentar perceber como agir e reagir, como comunicar, como acolher, como proteger, como cultivar, como proceder e por aí adiante. Está nas nossas mãos refletir nos ‘como’ da vida: como educar, como ajudar a cres­cer, como escutar, como resgatar, como encher de confiança, como devolver a esperança. E é neste ‘como’ que os pequenos gestos fazem uma grande diferença.

Recordo muitas frases que ouço a padres e pessoas de vida consagrada que me inspiram e orientam a minha vida espiri­tual, e tenho muito presente as longas conversas que mantive com Alberto Brito, padre jesuíta, quando nos sentámos para escre­ver o livro que foi publicado com o título “Ouvir, Falar, Amar”. Foram tempos verdadeiramen­te iluminantes e aprendi muito com ele. Uma das coisas que o Padre Alberto Brito diz com al­guma frequência e toda a razão é que não devemos perder tempo com o que entra em nós, deve­mos focar-nos obsessivamente no que sai de nós.

- “Não vale a pena perder tempo com o que entra em nós porque a toda a hora entram empatias e antipatias, adesões e aversões, pensamentos involun­tários e julgamentos de toda a espécie. Tentar que algumas des­tas coisas entrem em nós é tem­po perdido. Também não vale a pena desperdiçarmo-nos muito a tentar ordenar tudo o que nos habita, porque ao meio dia que­remos uma coisa e ao meio dia e um quarto podemos querer o contrário. Os pensamentos, as inclinações, as tentações, as ne­cessidades e as urgências, assim como os impulsos e as pulsões são difíceis de manter ordenados e cada um no seu sítio. Tudo se mistura cá dentro. O que vale a pena é focarmos obsessivamente no que sai de nós. Isso sim!”

O que sai de nós é que faz toda a diferença. E tratar bem ou menos bem alguém que nos irrita tem impactos muito dis­tintos. Se sinto antipatia ou até aversão, mas mesmo assim sou capaz de ser correto e eticamen­te irrepreensível, estou a tentar construir alguma coisa. Se, pelo contrário, sigo os meus instintos e devolvo o mal com mal, ou tra­to pior a pessoa de quem gosto menos (mas com quem até tenho que colaborar, porque é meu par na empresa ou até porque per­tence à minha família ou círculo alargado de amigos), então estou a destruir.

Posso não destruir completa­mente a pessoa, mas destruo a possibilidade de entendimento e cooperação com ela. E mato a confiança porque facilmente lhe coloco um rótulo ou desisto dela.

Num tempo em que estamos todos convocados a dar o nosso melhor tornou-se imperativo refletir sobre os nossos ‘como’. Como estou a ser capaz de con­versar em casa, como estou em matéria de aceitação dos outros, como estou a amar os meus e como posso fazer para acolher, e até ajudar, os que não são meus? Como estou a ouvir os que tra­balham comigo ou dependem de mim, como vou fazer para chegar aos que estão a afundar, como ando a agir e a reagir?

Cada um sabe de si e dos seus desafios, mas penso que todos nos revemos nesta interpelação do ‘como’. Temos mais capaci­dades do que julgamos e o nos­so impacto nos outros nunca é inócuo. Daí a necessidade de perceber a importância dos pe­quenos gestos e a radicalidade de ficarmos cada vez mais atentos àquilo que sai de nós.

Laurinda Alves é jornalista, escritora, tradutora e professora universitária de Comunicação, Liderança, e Ética.
Foto:Agencia Ecllesia 
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Artigo enviado por José Rui M. Rabaça

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