quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Portugal. O PÃO QUE O DIABO AMASSOU

Miguel Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Como não consta que Nuno Carvalho ponha as mãos na massa do pão que vende aos seus clientes, este texto não se lhe dirige. Não espero que tire as mãos da massa e as coloque na consciência. Após a tentativa de contenção de danos do fundador da "Padaria Portuguesa" ter agravado a natureza das suas declarações iniciais, percebeu-se como evoluiu a sua opinião: firme e seca como pão após umas horas de exposição pública. É uma opinião sua, não é um crime de ninguém. Quem quer saber então de elevar o salário mínimo quando os seus próprios "colaboradores" trabalham em vários sítios ao mesmo tempo? Alguma vez lhe terá ocorrido que talvez isso aconteça porque o salário mínimo que paga a alguns deles não chega? Eis a pequena ou subtil diferença que separa 577 euros salário-mês de 10 milhões de euros lucro-ano.

À selva o que é da selva. O patrão da "Padaria Portuguesa" nada disse de ofensivo no contexto do "novo empreendedorismo" reinante. De resto, se alguma vantagem teve mais um simulacro de indignação, foi o de trazer para fora do abrigo uma enorme quantidade de leões e de ovelhas, prontíssimos para ocupar as suas posições nas trincheiras. Os primeiros, agrupados em alcateia, defendendo com unhas e dentes a flexibilização da contratação e despedimento, as horas extras por decreto, as vantagens relativas do descanso para os trabalhadores, essa cambada de calões que arruínam a produtividade da firma. Os segundos, agrupados em rebanho, apelando ao boicote do consumo de hidratos na casa da Padaria, numa sequela da mais antiga série que se conhece sobre a irritação repentina: só mais uns dias e isso passa até porque hoje-tenho-que-passar-pelo-Pingo-Doce-da-Jerónimo-Martins-antes-de-ir-para-casa. Lamentavelmente, nada disto se resolve erguendo muros ou pichando os que existem.

Uma vez mais, a multidão resolve cortar a árvore no meio de uma floresta densa, como um bálsamo. As afirmações do patrão-padeiro, enroladas em pensamento modernaço-liberal, indiferença e secura gritantes, são bem o espelho da actual concepção do mundo laboral. Uma cartilha bem à mão. Trabalho mal remunerado e precário para os que se sujeitam, horários acumulados para as mulas, distribuição de pequenos prémios como cenouras. O que é verdadeiramente inconcebível é a falta de bom senso que acompanha o dono de tamanha desproporção (não estamos perante um pequeno negócio que não consegue pagar acima do salário mínimo aos seus poucos trabalhadores). Mas não nos iludamos no ódio para podermos imolar por conforto. Este é só mais um caso de pão com sabor a escravidão e miséria, igual a tantos outros sítios onde há alguns patrões a quem ninguém aponta uma câmara.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e advogado

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