quinta-feira, 2 de março de 2017

ACABOU A GREVE DA HISTÓRIA

Vivemos um tempo em que nos querem fazer esquecer o passado e abolir o futuro, a favor de um presente eterno em que dominariam sempre os mesmos. É preciso perceber que a vida que temos não é imutável, pode sempre piorar se não fizermos nada para a mudar para melhor

Nuno Ramos de Almeida – jornal i, opinião

Dizia um amigo meu, citando alguém que não recordo, que a arquitetura é o mijo dos príncipes. Os poderosos pretendem deixar em pedra, que julgam eterna, os marcos do seu poder. Nada dura para sempre, nem a pedra.

“Não construam monumentos que não possam derrubar”, era o aviso de Wilhelm Reich. Mas a arquitetura e o urbanismo são muito mais do que psichés de políticos, eles cristalizam outras relações de força: os bairros pobres são privados de acessos, infraestruturas e serviços públicos; neles, o urbanismo ganha uma feição policial em que as estradas, com uma só entrada e saída, permitem cercos fáceis em operações de detenção e busca. Para além disso, a História parece ter uma enorme predileção por muros: quando o de Berlim caiu, rapidamente se decretou o fim da História. Sem perceber que as fundações do muro derrubado estavam em todos os muros que continuavam por esse mundo fora, quase todos eles a subirem de altura e de extensão.

O momento da queda do socialismo real apareceu como falência da possibilidade de derrube do capitalismo e o estabelecimento de um presente total, feérico, acelerado, que liquidava de uma penada a memória de um passado de lutas, revoluções e ruturas e da existência de um futuro diferente. O fim da União Soviética, que se deve tanto aos seus erros como aos seus inimigos, sepultava a ideia de rutura, mudança e revolução. Fazia-o não porque a revolta dos humilhados e ofendidos deixasse de ter razões, mas porque deixava de ser pensável. A política tornava-se a arte do possível. Os horizontes eram presos numa caixa de ferro. E esse possível era sempre ditado por quem pretendia mandar para sempre. Por isso, o grande problema desta época, citando Fredric Jameson, é que “ninguém considera seriamente possíveis as alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões do futuro ‘colapso da natureza’, da eliminação da vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o ‘fim do mundo’ que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o ‘real’ que de alguma forma sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global [...] Assim, pode-se afirmar categoricamente a existência de uma ideologia como matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação”.


Mas se, na realidade, as desigualdades cresceram nestas décadas a níveis iguais à Grande Depressão dos anos 30, que só foi resolvida numa guerra mundial, por que razão se mantinha o consenso de que a História tinha acabado? Não deviam mandar mais os factos que as imposições ideológicas? Ao contrário do que pensamos, na nossa vida, as ilusões têm força material, muitas vezes mesmo quando sabemos que elas são ilusões. Basta que as aceitemos como algo que nos permite viver sem permanentemente termos o fardo da morte e da derrota sobre nós. A história que se segue ilustra na perfeição a função cínica das ilusões que muitas vezes governam a nossa impotência e que, neste caso, ditavam a não aceitação de uma realidade.

Estávamos a 1 de janeiro de 1946, o imperador japonês Hirohito anunciou que chegara o momento de “suportar o insuportável”, e depois de ter declarado a rendição do Japão quatro meses antes, confessou que, ao contrário do que os japoneses pensavam, ele não era nenhuma divindade. Nessa mesma altura nascia em São Paulo a organização secreta japonesa Shindo Remnei (Liga do Caminho dos Súbditos). Para os seus seguidores, e para 80% dos japoneses que viviam no Brasil, a rendição do Japão era uma fraude orquestrada pela propaganda aliada. Tal como os japoneses perdidos no meio das ilhas do Pacífico, eles não aceitavam a derrota. A diferença é que os ilhéus estavam privados de informação, enquanto os japoneses do Brasil tinham acesso a ela.

De janeiro de 1946 a fevereiro de 1947, os batalhões de assassinos da organização Shindo Remnei declaram guerra aos japoneses “traidores” que acreditam que o Japão perdeu a guerra. Matam 23 imigrantes e ferem mais de 150. A polícia brasileira, para desarticular a organização, é obrigada a prender mais de 30 mil imigrantes japoneses, condena 386 e deporta 80. A força política da organização é tal que nalgumas câmaras brasileiras são aprovadas moções a saudar a vitória do Império do Sol Nascente na guerra. A Shindo Remnei chegou a distribuir edições falsas da revista “Life” em que as fotos da rendição do Japão aparecem como se fossem da rendição dos Estados Unidos da América. Esta situação, descrita pelo grande jornalista brasileiro Fernando Morais no seu livro “Corações Sujos”, inscreve-se profundamente na lógica do pensamento zizekiano sobre a subjetividade e a ideologia. Os homens do Shindo Remnei não podiam desconhecer os factos da rendição do Japão; no entanto, não podiam acreditar neles. Esta distância cínica é parte daquilo que permite que qualquer sociedade funcione em termos de dominação.

Mas até o mais cínico dos cínicos pode atingir os seus limites. A crise económica mundial de 2008 fez rebentar o verniz de democracia que cobria muitos países do mundo, devido a décadas de domínio absoluto do capitalismo financeiro e seus parceiros políticos, que esboroaram os frágeis instrumentos de promoção de uma menor desigualdade social promovidos por um Estado social, criado para manter um mínimo de paz social.

Esta ganância do capital é inerente ao próprio capitalismo. O estabelecimento da sua forma neoliberal, com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, é do final dos anos 70. Aqui se traçaram as linhas políticas, inscritas no chamado consenso de Washington, que nos levaram aos dias de hoje: a retirada de barreiras ao capital, a destruição do Estado social, a privatização dos serviços públicos, a diminuição do fator trabalho nos rendimentos e o crescimento exponencial dos lucros do capital especulativo.

A multiplicação dos paraísos fiscais foi o aríete desta política de destruição do Estado social. Foram utilizados sistematicamente, pela primeira vez, após a i Guerra Mundial, por as nações europeias terem elevado os seus impostos para pagarem dívidas e financiarem as pensões de veteranos. Como resposta, os ricos fizeram os seus capitais fugir para a Suíça, onde as práticas bancárias permitiam receber dinheiro e não fazer perguntas. Entre 1920 e 1929, os ativos estrangeiros na Suíça cresceram 14% ao ano.

Nos dias de hoje, como nos relembra Gabriel Zucman, professor na London School of Economics e na Universidade da Califórnia em Berkeley, a desregulamentação financeira tem permitido ao capital financeiro lucros muito acima do seu contributo económico e a existência de offshores e paraísos fiscais é em grande parte responsável pela crise em que nos encontramos. No seu livro “A Riqueza Oculta das Nações”, Gabriel Zucman faz uma curta história das offshores, a forma como operam, a dimensão que atingem na economia mundial e as suas consequências. O autor é daqueles que acreditam nas virtualidades do capitalismo e acham que ele pode ser regulamentado para se tornar mais justo. A sua proposta é que, a exemplo da Revolução Francesa, que fez um inventário da riqueza, o FMI faça um inventário dos ativos financeiros, recenseando assim a totalidade do dinheiro estacionado em contas offshore, contribuindo para o combate ao crime, tráfico de drogas e evasão fiscal. “Uma das propostas centrais formuladas nesta obra é criar um registo mundial dos títulos financeiros que indique nominalmente quem possui cada ação e cada obrigação. Trata-se de uma condição indispensável para poder taxar as fortunas do século xxi”, defende o autor. Segundo outro autor, James Henry, em 2012 estariam em contas offshore entre 21 milhões de milhões (biliões) de dólares e 32 milhões de milhões (biliões) de dólares.

Os Paulos Núncios desta vida não são gente incompetente que se esquece de fazer estatísticas, mas gente bem mandada e eficiente para quem o capital deve ser o menos taxado possível e “livre” de procurar os paraísos que lhe apeteça. Mais do que o esquecimento estatístico e das listas VIP, há uma permanente iniciativa para que os grandes grupos possam safar-se de incomodativos impostos. Arranjaram-se engenhosos expedientes para que os grupos não pagassem os devidos impostos. Nessa ação fez-se letra morta dos pareceres da Inspeção-Geral de Finanças e de outros. Não se trata de incompetência, mas de uma política de classe que defende os mais ricos.

O crescimento das desigualdades tornou gritante a insatisfação da maioria da população. A globalização económica fez separar os espaços de decisão democrática, a nível do Estado-nação, da realidade das decisões económicas. Decidia quem tinha mais ações e mais dinheiro; votava, para nada, a população. Aos povos apenas se dava a escolher entre governos que aliviavam os ricos e governos que tendiam a aliviar os ricos.

O ar de fim de ciclo em que vivemos, com o aparecimento de sombras negras e a proliferação de partidos xenófobos e racistas, vem-nos lembrar que a História liga pouco aos decretos que fazem sobre ela. Podem-na dar como acabada mas, enquanto houver humanos no planeta, a vida não para. O nosso mais conhecido poeta garantia que “todo o mundo é composto de mudança”, “Continuamente vemos novidades/ Diferentes em tudo da esperança/ Do mal ficam as mágoas na lembrança/ E do bem, se algum houve, as saudades”. Ficava por esclarecer que, se as coisas podem melhorar, também podem sempre piorar.

A vitória de criaturas como Donald Trump prova, por más soluções, que a greve da História acabou. O mundo acelerou ainda mais. A única forma de parar uma caminhada para o precipício é a ação. Durante muitos anos, os ideólogos dos mercados impuseram-nos a canga ideológica que defende uma política de carneiros segundo a qual toda a ação contra o “livre” curso dos mercados e do capital só terá como resultado as catástrofes e os gulags.

Esse discurso ideológico escamoteia os milhões de mortos por pobreza, as centenas de milhões de vidas desperdiçadas sob o manto do natural funcionamento da economia. Não há nada de natural numa imposição de um poder de poucos sobre muitos. Não há nada de natural num planeta que produz o suficiente para todos e só poucos ficam com quase tudo.

O crescimento dos autoritarismos a que assistimos e a crise ecológica total a que este caminho da economia dos mercados nos leva exigem, se queremos viver, uma outra resposta e um outro caminho. É verdade que a História acordou, mas que esse despertar seja em pesadelo ou não só depende de nós.

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