sábado, 25 de janeiro de 2020

Premium: O laboratório militar já produz 50 medicamentos que salvam vidas mas que não interessam à indústria

Fabricam medicamentos para três pessoas como para 20 mil. O laboratório militar produz cada vez mais fármacos que não compensam financeiramente à indústria. Dá resposta à rutura de stocks e é responsável pela reserva nacional de medicamentos.

No laboratório militar, todos os lotes de medicamentos são testados nas
matérias-primas, durante a produção e no final. ©Leonardo Negrão/Global Imagens

Há três crianças, em Portugal, diagnosticadas com a doença neurológica de Menkes. Uma síndrome genética muito rara, que fragiliza os músculos e o cérebro, impedindo um desenvolvimento normal. A cura não existe, mas há uma forma de ganhar tempo: um medicamento que prolonga a vida para lá do prognóstico fatal do primeiro ano. Chama-se histidina de cobre e só o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos o produz e leva até aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O fármaco não tem mais-valia comercial e, por isso, não compensa a nenhuma farmacêutica empenhar-se em dar mais tempo de vida às três crianças que têm esta doença. É um dos cerca de 50 medicamentos abandonados pela indústria que o laboratório garante. No final de 2018, eram 44 fármacos nestas circunstâncias, segundo informações prestadas à Associação de Oficiais das Forças Armadas.

Produzem analgésicos, anti-inflamatórios, expetorantes, que não se encontrem comercializados ou autorizados em Portugal, mas que são imprescindíveis na rede hospitalar do SNS."Vamos tentando manter alguma independência, através do Exército, no acesso aos mediamentos", diz o tenente-coronel João Carmo, subdiretor do laboratório. "O nosso foco é o que não existe no mercado nacional. Colmatamos as falhas de medicamentos que não são de todo produzidos para as doenças raras e as ruturas de fornecimento no mercado. Personalizamos muito a nossa medicação, consoante a necessidade do doente", explica a major Inês Martins, chefe do departamento de controlo de produção do laboratório. Todos os lotes de fármacos têm uma quantidade diferente, ditada pela necessidade. Se dão forma à receita prescrita para um só doente também respondem com vinte mil saquetas de metadona (o narcótico usado no tratamento da toxicodependência) para o programa do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). O laboratório é o único produtor e distribuidor de metadona em Portugal, por apresentar condições de segurança especiais durante o processo de produção. No ano passado, foram produzidas cerca de três milhões de saquetas para 14 mil tratamentos.

Outro caso paradigmático é o dos medicamentos para a tuberculose, cuja produção de alguns fármacos foi descontinuada ou tem como prioridade outros mercados que não o português, por compensar menos monetariamente. No laboratório, o ritmo de produção varia ainda de acordo com a exigência da atualidade. Têm de estar preparados para intervir em casos de emergência nacional ou internacional, como aconteceu, em 2009, durante a epidemia de gripe A, quando tiveram de fornecer rapidamente a preparação oseltamivir. Todos estes medicamentos são produzidos num mesmo edifício na Avenida Dr. Alfredo Bensaúde, nos Olivais (Lisboa), onde as marcas do tempo vão sendo mascaradas com obras. Tudo acontece aqui, desde os testes às matérias-primas e à produção, ou do controlo de qualidade à distribuição. E até à venda, no rés-do-chão, onde está uma das sete farmácias militares do país.

Atrás do balcão está Carla Alves, 46 anos. Recebe uma professora já reformada, mulher de um militar, que veio procurar uma pomada para aplicar na perna, à venda em qualquer farmácia civil, mas aqui há uma pequena tolerância no preço para o casal. Carla ouve, atenciosa, a história da perna dorida e procura a melhor solução nas prateleiras atrás de si. Este é o seu trabalho há 25 anos. "A oportunidade surgiu em 1994, quando o laboratório estava a passar uma fase catastrófica. Falava-se em encerrar, tal como há dois anos. A maior parte dos funcionários tinha ido para a reforma ou pré-reforma e a ideia era fechar. Entrei na fase KO", relembra. Nada lhe dizia que iria ficar tanto tempo, mesmo assim quis fazer parte da equipa. "Eu gosto de desafios e nada é definitivo."



Nenhum comentário:

Postar um comentário