domingo, 13 de novembro de 2016

Enterrar os mortos: obra de misericórdia

Plínio Maria Solimeo
PRC_Porto Catacumba Igreja de Sao Francisco
            Tivemos há pouco a comemoração de Finados. É o dia em que somos mais solicitados a pensar na única coisa certa nesta vida — a morte —, e naqueles que ela já abraçou, os quais são logo esquecidos. Dizem os franceses: “Les morts vont vite”…
Tem-se hoje horror à morte. Falar dela tornou-se um tabu. Como consequência, muitos têm verdadeira dificuldade de ir, ou mesmo passar diante de um cemitério, que se tornou um local aonde se vai meio forçado para acompanhar um enterro; e quando muito no Dia de Finados, para despertar um pouco a consciência em relação a nossos parentes ou amigos falecidos.
No fundo, tal atitude é fruto da falta de certeza na ressurreição final daqueles que nos precederam“marcados com o sinal da fé” (cfr. Jo 6, 27). Pois, como diz São Paulo, todos nós ressuscitaremos de corpo e alma no dia do Juízo Final: “Quando este corpo corruptível estiver revestido da incorruptibilidade, e este corpo mortal revestido da imortalidade, cumprir-se-á então a palavra da Escritura: ‘A morte foi tragada pela vitória’ (Is 25,8). ‘Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão’ (Os 13,14)?” I Cr 15, 54-55).
Assim, a Igreja sempre cercou de muito respeito e veneração seus mortos. Isso começou já desde o tempo das catacumbas, na Igreja primitiva: “Submetidos a uma contínua e implacável perseguição por parte dos imperadores romanos, os cristãos buscaram refúgio subterrâneo nas pedreiras e areais dos arredores de Roma, a fim de praticar ali livremente seus cultos e enterrar dignamente seus mortos[i].
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Irmão Coveiros da Misericórdia

A preocupação de encontrar um modo sistemático e cuidadoso de enterrar os mortos nas catacumbas [foto acima] fez surgir uma instituição formada por leigos, que se incumbiam dessa verdadeira obra de misericórdia. Seus membros passaram a ser conhecidos como “fossários”, de “fossa” (túmulo), em português “coveiros”.
Com o fim das perseguições e, sobretudo, com os cemitérios à luz do dia patrocinados pela Igreja Católica, essa instituição foi morrendo.
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Mas sua lembrança não desapareceu de todo, tendo ressuscitado de certo modo no século XX, na Espanha. Com efeito, no ano de 1952, preocupado com o modo muito materialista com que se tratava dos mortos, um antigo ermitão, Frei Hilarião, fundou em Guádix, na província de Granada, a Pia Unión de los Hermanos Fossores de la Misericordia[foto ao lado], uma das mais originais instituições da Igreja, dedicada exclusivamente à sétima obra de misericórdia corporal (enterrar os mortos) e à sétima espiritual (rezar pelos vivos e pelos mortos).

Como muitas obras da Igreja, ela começou humildemente. Após ter recebido a autorização correspondente do bispo local, Frei Hilarião — que em sua nova obra adotou o nome de José Maria de Jesus Crucificado — estabeleceu-se com outro ermitão, Frei Bernardo da Cruz, numa velha casa situada junto ao cemitério de Guádix, onde eles começaram a receber aos poucos vocações. Por fim, no dia 16 de julho de 1958, sua instituição foi erigida por decreto episcopal como uma Pia União, sob o patrocínio de Nossa Senhora de Lourdes.
Para realizar trabalho tão árduo são necessários uma vocação especial e o socorro da Santa Igreja. Por isso essa Pia União tem, ao lado da vida ativa, uma contemplativa. Esta é alimentada pela assistência diária à Santa Missa, recitação da Liturgia das Horas, do Santo Rosário, oração mental e uma vida estritamente comunitária. Seus membros não são sacerdotes, embora tal Pia União possa recebê-los.
Naquela época ainda de fervor, anterior ao Concílio Vaticano II, “a nova instituição religiosa foi acolhida com grande interesse pelo povo de Guádix, devido à sua originalidade e impacto social. A notícia não tardou em divulgar-se por outras regiões da Espanha. Logo chegaram petições de distintos municípios e, à medida que foram surgindo vocações e seus novos membros recebiam formação, essas petições foram sendo atendidas de forma pausada e razoável. Assim, ao longo de dezesseis anos (1953-1969), fundaram-se sete comunidades de Irmãos Coveiros em outras tantas localidades. [...] Cada fundação supunha uma longa cadeia de gestões, tanto com a autoridade municipal quanto com a eclesiástica, até se chegar a um convênio aceitável para ambas as partes”[ii].
“Em cada fundação passaram diversos Irmãos, capelães, conselheiros e benfeitores, que contribuíram generosamente para seu desenvolvimento e sustento na ordem material e espiritual. E em cada comunidade se viveram os contratempos próprios a todo grupo humano, se bem que, neste caso, estivesse animado pela força do Espírito e estruturado pelos elementos da vida religiosa”[iii].
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         Entretanto, com a crise que abala atualmente a Igreja, as vocações foram escasseando. E, por isso, a missão à qual se dedicam os Irmãos Coveiros tornou-se ainda mais estafante e árida, pois eles passam praticamente todo o dia nos cemitérios, enterrando os mortos, consolando os parentes abalados com a morte de um de seus membros, cuidando da limpeza e da boa ordem, e recebendo apenas uma módica ajuda da prefeitura local.
A vocação desses Irmãos, como eles próprios dizem, consiste em ser “testemunhas da ressurreição e da vida futura”. Isso porque, “quando muitas pessoas chegam ao cemitério, agem como se tudo tivesse terminado com a morte; mas não é assim”. Por isso eles procuram levá-las a considerar que “aqui, no cemitério, é onde tudo começa, porque fomos criados para a outra vida, e não para esta”. E acrescentam: “Com o passar dos anos, as pessoas foram perdendo o sentimento de espiritualidade que as levava a compreender melhor o que eles (irmãos coveiros), fazem. Agora há muita apatia e poucas pessoas se perguntam por que estamos aqui”, lamentam eles. Isto porque estão circunscritos apenas a dois cemitérios: o de Guádix, com seis irmãos, e o de Logroño, com quatro.
Afirma o superior dos Irmãos de Logroño, haver falta de vocações, “como acontece com todas as Congregações”, para o que “não há nada que fazer”. Limitam-se então a “ajudar quem deseja entrar aqui, para que compreenda como é dura esta vida em que estamos ao serviço dos demais”. Além disso, “as vocações estão nas mãos de Deus e dependem d’Ele. [...] Há mais gente interessada em conhecer nosso modo de vida. Mas quando a experimentam, acham-na muito dura e vão embora”.
Ele está consciente de que, devido à avançada idade dos Irmãos e à escassez das vocações, sua instituição seguirá “até que Deus os chame”. “Quando isso suceder, que o último apague a luz…”.
Infelizmente, hoje em dia na Espanha há muito mais cremações do que enterros tradicionais. Para os que têm pouca fé e menos familiarizados com o costume da Igreja, cremar é um modo mais rápido e menos cerimonioso de despachar os falecidos. Entretanto, “continua havendo um grande desconhecimento do que fazer com as cinzas; e, por isso, ocorrem barbaridades, como atirá-las no campo”.
Apesar de todas as condições adversas neste mundo ateizado, “a Pia União dos Irmãos Coveiros continua desenvolvendo seu trabalho com entusiasmo e cheia de esperança. Aos nove membros professos se unem atualmente um noviço e um aspirante, ambos jovens, que são a promessa e o sinal de um futuro melhor, a serviço da Igreja e da sociedade”[iv].

Um “fosseiro” em país em que os católicos são menos de 0,3%

Num país muito pobre e de população majoritariamente muçulmana, a Providência divina suscitou um católico verdadeiro que também se preocupa com o cuidado dos mortos, praticando assim a obra de misericórdia de enterrá-los.
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Shibu Gomes [foto ao lado], 55 anos, agricultor semi-analfabeto e pai de três filhos, cujo sobrenome denota sua proveniência de família católica, enterra voluntariamente há 40 anos os católicos da igreja de Bonpara, em Natore, Bangladesh. Sua contribuição é vital para a comunidade e os paroquianos confiam em sua ajuda.

Shibu declarou a “AsiaNews”: “Ao longo de minha vida, cavei tumbas para ao menos 95 pessoas. Faço tudo de forma gratuita, e estão muito contentes com meu trabalho voluntário”. E acrescenta: “Um dia também vou morrer, e por isso me preocupo em não ser desonesto, prepotente, e não causar dor nos demais. O conselho que posso dar a todos é que vivam honestamente porque, quando morrermos, não poderemos levar nada conosco senão as boas obras, e vamos deixar todo o resto na Terra.”
Esse trabalho de cavar tumbas é esgotador. Diz ele: “Não é fácil cavar uma fossa. Para cada túmulo, deve-se extrair quase uma tonelada de terra. Muitas vezes encontro ossos de mortos no cemitério, mas não tenho medo. Só necessito de uma pessoa que me ajude enquanto cavo, pois se a terra cair em cima de mim, corro o risco de ser enterrado vivo.”
É preciso dizer que a República Popular de Bangladesh está localizada na Baía de Bengala, ao lado da Índia. Com uma população de 170 milhões de habitantes, 88% dos quais muçulmanos, é o terceiro país majoritariamente islâmico do mundo. O Cristianismo representa apenas 0,3% da população total[v].
Por isso, constata-se quão adversas são as condições, e quão meritório o trabalho de Shibu Gomes.
Ele afirma que ajuda os paroquianos de sua igreja desde muito moço. “Sempre que ouvi que alguém necessitava de ajuda, nunca me afastei. Esta tem sido minha vocação. Espero que um dia o Senhor recompense meu trabalho. Nunca estive interessado no êxito, mas tratei de ser fiel a Deus com minha ações”[vi].

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