terça-feira, 27 de julho de 2021

Reabilitação de padre guerrilheiro?

Camilo Torres (círculo) já guerrilheiro do ELN, em cujas fileiras morreu participando de uma emboscada a forças do exército colombiano poucos meses depois

Camilo Torres, modelo e inspiração do MST, dos dominicanos envolvidos na guerrilha urbana, e da luta armada em nome do Evangelho

  • Gustavo Solimeo

Há rumores de iminente reabilitação (e beatificação?) do padre colombiano Camilo Torres, morto em 1966, lutando com armas na mão nas fileiras do movimento guerrilheiro marxista Exército de Libertação Nacional (ELN).[i]

Na base desses indícios estaria a admiração do Papa Francisco em relação a bispos e padres revolucionários: ele perdoou e readmitiu ao sacerdócio os revolucionários nicaraguenses Miguel d’Escoto e Ernesto Cardenal; anunciou sua intenção de beatificar D. Hélder Câmara; na sua viagem à Bolívia em 2015, elogiou o Padre Luis Espinal Camps, autor do crucifixo com a foice e o martelo, presenteado por Evo Morales ao Papa Francisco.[ii]

À vista disso, “muitos na Colômbia esperam que Torres também seja totalmente reabilitado o mais rapidamente possível”.[iii] O site de esquerda Rebelión considera isso possível, com “a abertura de novos espaços realizada pelo papa Francisco”.[iv]

Afinal, quem foi Camilo Torres? Vejamos resumidamente a trajetória revolucionária desse desventurado sacerdote que trocou a cruz pelo fuzil.

Atração pelo catolicismo social progressista

Jorge Camilo Torres Restrepo nasceu em Bogotá em 1929, de família rica, liberal e agnóstica. Influenciado pelas ideias de dois padres dominicanos franceses, abandonou seus estudos de direito e ingressou no seminário. Sua decisão foi inspirada menos por razões religiosas, no sentido tradicional, do que por sua atração pelo catolicismo social progressista.[v]

Tal tendência, renascida na Europa do pós-guerra, é continuação do modernismo social do movimento Le Sillon, condenado por São Pio X.[vi] Ela ganharia novo ímpeto com as reformas do Concílio Vaticano II; e em 1968, com o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano) em Medellín, culminaria no movimento “Teologia da Libertação”.

Precursor do Concílio Vaticano II

Cartaz afixado na faculdade de Ciencias Sociais da Universidade Nacional de Bogotá.

Ordenado sacerdote em 1954, Camilo Torres foi estudar sociologia na Bélgica, tendo ocasião de visitar vários países europeus e estabelecer contatos com a Democracia Cristã, o movimento sindical cristão e grupos revolucionários argelinos em Paris.[vii] Eram os anos anteriores ao Vaticano II, quando estava em voga o diálogo cristão-marxista.

Retornando ao seu país em 1959, o Pe. Camilo Torres foi nomeado capelão auxiliar da Universidade Nacional. Nessa condição, antecipou na Colômbia muitas das inovações litúrgicas que mais tarde fariam parte das reformas que se seguiram ao Concílio Vaticano II.[viii]

Colaboração com os marxistas

No início dos anos 1960 ele desenvolveu atividades sociais em bairros populares de Bogotá e trabalhou com a agência de reforma agrária da Colômbia. “Em sua discussão sobre a reforma agrária, ele aceita a visão marxista de uma luta de classes como uma realidade sociológica”.[ix]

Como muitos intelectuais latino-americanos dos anos 60, Camilo foi influenciado pela Revolução Cubana. Aproximou-se da Juventude Comunista e do movimento estudantil, participando de protestos com eles, o que lhe valeu pena de prisão e o levou a atritos com a hierarquia católica.[x]

Em 1962, o Arcebispo de Bogotá, Cardeal Luis Concha Córdoba, removeu-o de seu cargo de capelão na Universidade e de outras funções acadêmicas, transferindo-o para uma paróquia como coadjutor.[xi]

O sacerdote não se adaptava ao trabalho paroquial nem aceitava limitação de movimentos. Renunciou à paróquia em 1964 e voltou ao ativismo sociopolítico, do qual nunca havia realmente se afastado.

Em setembro daquele ano, apresentou no Segundo Congresso Internacional do Pro Mundi Vita, na Bélgica, o documento “Revolução: Um imperativo cristão”, no qual propunha uma “colaboração para obter uma solução marxista para sanar os males sociais do país”.[xii]

Abandono do sacerdócio e ativismo político

O envolvimento de Camilo Torres na agitação marxista urbana e rural levou as autoridades eclesiásticas a dar-lhe um ultimato: ele deveria escolher entre os deveres sacerdotais e o ativismo político-social. Em resposta, Camilo Torres abandonou o sacerdócio em 1965. Sentindo-se livre para se lançar de corpo inteiro no trabalho revolucionário, articulou a criação da Frente Popular Unida, coalizão de todas as correntes de esquerda e de oposição ao governo (incluindo o Partido Comunista), em torno da Plataforma da Frente Unida, para a mudança da estrutura político-social da Colômbia.

Essa plataforma continha princípios abertamente socialistas: “A plataforma reivindicava a nacionalização dos serviços públicos e dava aos camponeses as terras em que trabalhavam, e aos inquilinos urbanos as casas em que moravam, sem indenização a seus proprietários legais. O plano também exigia uma tributação alta dos ricos, um plano nacional de seguro de saúde e igualdade de direitos para as mulheres”.[xiii] Ao apresentar a plataforma na Universidade de Bogotá, Camilo Torres exortou os estudantes a se organizarem para lutar “com armas iguais” contra as forças da ordem.[xiv]

Clandestinidade e incorporação à luta armada

À medida que seu envolvimento na agitação político-social aumentava, o ex-sacerdote foi-se radicalizando cada vez mais. Passou em outubro de 1965 para a clandestinidade, com um grupo de estudantes; e em novembro incorporou-se à guerrilha, não como um simples mentor ou conselheiro, mas como um combatente do ELN, organização guerrilheira inspirada no M-26 cubano.[xv]

Na ocasião ele lançou um manifesto inflamado, a “Proclamação aos colombianos”, anunciando sua decisão:

“Eu me juntei à luta armada. Da serra colombiana pretendo continuar a luta de armas em punho, até a conquista do poder pelo povo.

‒ Pela unidade da classe popular até a morte!

‒ Pela organização da classe popular até a morte!

‒ Pela tomada do poder pela classe popular até a morte! […]

– Nem um passo atrás! Libertação ou morte!”.[xvi]

Morte no primeiro combate

Durou apenas cerca de três meses essa militância armada. Após intenso treinamento militar, recebeu o codinome Argemiro, juntamente com uma pistola. Foi morto em sua primeira missão, em 15 de fevereiro de 1966, numa emboscada malograda contra as tropas do governo, ao tentar apoderar-se da arma de um soldado morto. Ele acabava de completar 37 anos.

“Um ano antes de sua morte, no texto ‘A Revolução, um imperativo cristão’ (1965), Camilo Torres escrevera que os cristãos não só podem, como cristãos, participar da revolução, mas ‘têm a obrigação moral de fazê-lo’”.[xvii]

O seu mito ultrapassou as fronteiras colombianas, espalhando-se pela Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Nicarágua. Outro padre-guerrilheiro — o nicaraguense Ernesto Cardenal [foto abaixo], já reabilitado pelo Papa Francisco —, ao juntar-se à guerrilha sandinista, citou Camilo Torres como seu modelo.[xviii]

Elogios de Dorothy Day, modelo de Biden

Entre os que veneram esses novos “santos” do “martirológio revolucionário” e se inspiram no seu exemplo, encontram-se não apenas jovens latino-americanos, mas muitos cristãos de esquerda de todo o mundo, incluindo os Estados Unidos. Típico é o caso de Dorothy Day (1897-1980), “uma ativista radical pelos direitos sociais, anarquista e pioneira do feminismo, mais tarde militante católica”.[xix] Ela foi agora tomada como modelo e fonte de inspiração pelo governo do “católico” Joe Biden, e declarada Venerável (primeiro passo para a beatificação) pelo Papa Francisco. No prefácio da edição inglesa dos escritos de Camilo Torres, em 1968, ela escreveu:

“Camilo Torres uniu-se aos guerrilheiros, à sua vida nas montanhas e na selva; uniu-se à peregrinação do povo, os ‘campesinos’. Partiu o pão com eles e se tornou verdadeiramente um ‘compañero’, aquele que parte o pão.

“Posso imaginar Camilo Torres com seus companheiros soldados, sentado ao redor de uma fogueira à noite, sendo caçado pelo Exército e levando o Evangelho da esperança aos pobres. Camilo Torres, rogai por nós, para que tenhamos sua coragem em oferecer nossas vidas por nossos irmãos!”.[xx]

“Dominicanos das Perdizes”, envolvidos na guerrilha urbana

Não longe de nós, os “dominicanos das Perdizes” — frades e noviços envolvidos na guerrilha urbana comunista, nos anos 1960 — tomaram Camilo Torres como inspiração para sua militância revolucionária ao lado de Marighela, criador da Ação Libertadora Nacional. O ex-frade João Caldas Valença relata: “Nessa época líamos Althusser e todos os que fizeram releituras marxistas. Tínhamos acesso, em língua francesa, a todos os teóricos, de Mao Tse-tung a Camilo Torres, Che Guevara, Ho Chi Minh etc”.[xxi]

Outro deles, Magno Vilela, que cursava História na USP, também atesta que as trajetórias do padre Camilo Torres e de Guevara marcaram muito a todos no grupo: “Confesso que a obra, a vida e a morte de Camilo Torres e Che Guevara me marcaram muito. No meu espírito, esses dois exemplos, ambos morrendo quase da mesma forma e de armas nas mãos, nos levavam à seguinte associação: a forma latino-americana do marxismo é a guerrilha!”.[xxii] É preciso não esquecer que entre eles estava Frei Beto, amigo de Fidel Castro, mentor de Lula e estrategista do PT.

Fidel Castro proclamou sobre Camilo Torres: “Tornou-se um símbolo da unidade revolucionária do povo da América Latina”.[xxiii] E Garret Keizer, escritor americano de esquerda e pastor episcopaliano, comenta: “No martirológio revolucionário da Igreja Latino-americana do século XX, Torres é frequentemente listado como ‘um dos primeiros’”.[xxiv]

“O Reino dos Céus na terra… será socialista”

A figura de Camilo Torres continua a motivar ainda hoje os ativistas do MST, que pretendem instalar um “paraíso” socialista no Brasil.

página do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra na Internet publicou no dia 17-2-21 extensa matéria assinada pelo colombiano Ángel García, cujo título fala por si: “Camilo Torres: 55 anos após sua queda em combate ‒ Retornando aos caminhos da Fé e da Revolução de Camilo Torres”. Escreve esse ativista do MST:

“55 anos atrás em 15-2-66, Camilo Torres caiu em combate. Sacerdote colombiano, católico, sociólogo, líder de massas e guerrilheiro. […] Foi um precursor da Teologia da Libertação […] e um pioneiro na construção de uma ponte estratégica entre cristãos e marxistas, uma ponte que os revolucionários de hoje são obrigados a reconstruir”.

E mais adiante: “Na práxis de Camilo Torres, encontramos muitas das chaves que nos abrem o caminho de volta ao caminho da fé e da revolução”.

Transcrevendo Camilo: “Com os comunistas […] estou pronto para lutar com eles por objetivos comuns: contra a oligarquia e a dominação dos EUA, pela tomada do poder pela classe popular”.

Conclui o articulista: “Com Camilo, a fé, a ciência e a revolucionária luta de massas andaram de mãos dadas. É lá que se encontram as chaves para a possibilidade de avançar em direção à libertação definitiva de nossos povos. […] O Reino dos Céus existirá na terra […] e será socialista”.[xxv]

Este era o programa de Camilo Torres. Este é o programa do MST, da CPT, do CIMI, da CNBB. Para conduzir o Brasil à situação de caos e violência da Colômbia, para a miséria da Venezuela, para a opressão de Cuba — e assim instalar, não o Reino dos Céus, mas o Inferno na Terra. Este, sim, será socialista!

*   *   *

Realizar-se-ão os rumores da iminente reabilitação de Camilo Torres? Já existe o precedente do perdão e readmissão ao sacerdócio dos revolucionários nicaraguenses Miguel d’Escoto e Ernesto Cardenal pelo Papa Francisco. Não seria, portanto, de surpreender se fizesse o mesmo em relação ao padre-guerrilheiro colombiano, sobretudo depois da recente reabilitação de Judas Iscariotis pelo L’Osservatore Romano (Ver Catolicismo Nº 846, Junho/2021, “Reabilitar Judas Iscariotis, mais uma obra da autodemolição”).

ABIM


[i] Americo Mascarucci. “Quell’inquietante tentativo di riabilitare padre Torres”. 29 Aprile 2021 Pubblicato da Marco Tosatti. https://www.marcotosatti.com/2021/04/29/mascarucci-linquietante-tentativo-di-riabilitare-padre-torres/

4/29/2021 3:10 PM

[ii] Ver Luiz Sérgio Solimeo. “O crucifixo comunista: socialismo e catolicismo deixaram de ser ‘termos contraditórios’?”. – 27 de agosto de 2015

https://ipco.org.br/o-crucifixo-comunista-socialismo-e-catolicismo-deixaram-de-ser-termos-contraditorios/

[iii] Americo Mascarucci, art. cit.

[iv] Rebelión. “Camilo Torres recordado en vísperas del cincuenta aniversario de su muerte”.

14/11/2015. https://rebelion.org/camilo-torres-recordado-en-visperas-del-cincuenta-aniversario-de-su-muerte/ 06/05/2021 18:31

[v] Cf. Richard B. McCarthy, O.S.B. The Colombian Catholic Church, 1948-1970: reactionary Church in a revolutionary continent. The University of Arizona. 1977, pp. 158-9. http://hdl.handle.net/10150/348247 (pdf) 13/05/2021 19:50:41. “Isabel Restrepo Gaviria: fotos y última entrevista”. https://lanzasyletras.com/isabel-restrepo-gaviria-fotos-y-ultima-entrevista/ 11/05/2021 16:13.

[vi] Ver Luiz Sérgio Solimeo. “A KGB inventou a Teologia da Libertação? Simples demais…” – 22 de maio de 2015. https://ipco.org.br/a-kgb-inventou-a-teologia-da-libertacao-simples-demais/.

[vii] Edgar Camilo Rueda Navarro. “Biografía Política de Camilo Torres”.

https://www.marxists.org/espanol/camilo/biografia.htm 5/10/2021 5:17 PM

[viii] CEME – Centro de Estudios Miguel Enríquez. “Biografía Camilo Torres Restrepo”. Archivo Chile.pdf; Navarro. “Biografía Política…”

[ix] McCarthy, op. cit., p. 161.

[x] Ángel García. “Camilo Torres: 55 anos após sua queda em combate”. Página do MST.

13/05/2021 10:52.

[xi] “Camilo Torres Restrepo 1929-1966”. https://www.filosofia.org/ave/001/a230.htm. 29/04/2021 15:35

[xii] McCarthy, op. cit., p. 163.

[xiii] McCarthy, op. cit., p. 164. Ver também J. de Azeredo Santos. “F. Houttart, Cônego, Professor de Louvain e Companheiro do Padre Camilo Torres”. Catolicismo n° 195, março de 1967.

[xiv] “Camilo Torres Restrepo 1929-1966”. https://www.filosofia.org/ave/001/a230.htm. 29/04/2021 15:35

[xv] Navarro. Art. cit.; “Camilo Torres Restrepo 1929-1966”.

[xvi] Proclama a los colombianos. https://web.archive.org/web/20090921011424/http://www.elortiba.org/camilo.html

09/05/2021 18:31

[xvii] Francesco Ingravalle. Recensioni. Liberazione o Morte – Il Ritorno di Padre Camilo Torres”. Pubblicato di KULTURAEUROPA il 01/02/2021. https://www.kulturaeuropa.eu/2021/02/01/il-ritorno-di-padre-camilo-torres/ 07/05/2021 17:10

[xviii] Garret Keizer.No Smoke for Camilo”. Laphams Quarterlyhttps://www.laphamsquarterly.org/revolutions/no-smoke-camilo 4/29/2021 5:17 PM

[xix] Julio Loredo, “Is Dorothy Day Another of Joe Biden’s Heroes?”. February 19, 2021. https://www.tfp.org/is-dorothy-day-another-of-joe-bidens-heroes/

[xx] Apud Loredo, loc.cit.

[xxi] Sara Carolina Duarte Feijó, Memória da resistência à ditadura: Uma análise do filme Batismo de Sangue (Versão corrigida). São Paulo 2011, p. 25. 2011_SaraCarolinaDuarteFeijo.pdf.

[xxii] Feijó. Op. Cit. p. 46.

[xxiii] Citado por Keizer,art. cit.

[xxiv] Keizer, art. cit.

[xxv] Ángel García. “Camilo Torres: 55 anos após sua queda em combate”. Página do MST.

https://mst.org.br/2021/02/17/camilo-torres-55-anos-apos-sua-queda-em-combate/ 13/05/2021 10:52

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