quarta-feira, 6 de abril de 2016

Macroscópio – Hoje é um dia diferente

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Hoje é um dia diferente. 6 de Abril. 2016. Mas diferente porquê? Por se completarem hoje cinco anos que Portugal foi obrigado a pedir ajuda à troika? Não, não é por isso que o Macroscópio de hoje entendeu que hoje era diferente. Foi apenas por hoje nos desviarmos do habitual registo monotemático para recomendar antes textos variados que se destacam pela sua qualidade ou originalidade. Uns estão mais ligados à actualidade, outros são mais intemporais. Todos eles merecem um pouco da atenção do leitor. Vamos a isso

A situação em Portugal – sem papas na língua
Steen Jakobsen, economista-chefe do Saxo Bank, é um heterodoxo e aquilo a que poderíamos chamar “um desbocado”. Mas como é assim que se ouvem umas verdades ou, pelo menos, se desafiam as convenções e ficamos a pensar, a entrevista que deu a Edgar Caetano e o Observador hoje publicou é de leitura indispensável: “Portugal teve a pior troca de governo de sempre. Mas pouco importa”. Não é facilmente condensável, pelo que deixo apenas uma breve passagem, não sobre Portugal, mas sobre as resistências à mudança: “ Veja o exemplo da Irlanda. Tinha um crescimento de quase 8% e o governo não conseguiu ganhar as eleições. Isso mostra que está alguma coisa mal com a Europa. A democracia tem um problema matemático quando mais de metade dos eleitores beneficiam de transferência de rendimentos. Porquê? Porque os 51% têm toda a racionalidade ao não quererem uma mudança.”

Quem acompanha há décadas o crítico cultural Augusto M. Seabra sabe que ele também é dos que escreve o que pensa, sem olhar a conveniências ou rodriguinhos, e que por isso nos desafia com frequência. É o que sucede com o texto que publicou hoje, no Público, “Tempo velho” na Cultura, que deixa o nosso ministro João Soares com as orelhas a arder. Extracto: “Logo no início da sua caminhada houve uma iniciativa ridícula, um manifesto “A Cultura apoia António Costa”, como se uns quantos agentes fossem “A Cultura” e dela proprietários. Depois, noutra tradição socialista, o almoço em final de campanha eleitoral, houve o prodígio de ser oradora quem tinha sido tornada “artista do regime” pelo governo de direita, Joana Vasconcelos. E assim, a nomeação de Soares foi apenas o consumar político desta consideração do adorno. Mas abrindo azo aos piores receios.” A seguir explica como esses “piores receios” se têm vindo a tornar realidade.

Um pouco de memória
José Pedro Castanheira, do Expresso, é um dos raros jornalistas portugueses que tem escrito trabalhos de investigação histórica – centrados na nossa história recente – que fazem a diferença. Trabalhos que também apetece ler, até pelo cuidado colocado na sua apresentação. É o caso de A mais espetacular ação de sabotagem dos tempos da ditadura (paywall), publicado este sábado no Expresso Diário. Trata-se da reconstituição de uma acção da ARA (Acção Revolucionária Armada, o braço guerrilheiro do PCP) realizada em 1971, ou seja, há 45 anos. A acção em causa foi uma sabotagem realizada na Base Aérea de Tancos: “Quatro homens, um volkswagen “carocha” e uma chave copiada com recurso a uma barra de sabão. Os explosivos iam escondidos por baixo de caixas de frutas. As fardas militares que serviam de disfarce tinham sido ajustadas ao corpo pelas mulheres horas antes, numa casa alugada só para preparar a operação. Nome de código: “Águia Real”. Passavam vinte minutos das três da manhã quando tudo foi pelos ares.”

O segundo texto que seleccionei para este subcapítulo do Macroscópio de hoje saiu na New York Review of books e fala-nos da Ucrânia e da sua história, tão mal conhecida. Em The Victory of Ukraine a jornalista e historiadora Anna Applebaum parte de três livros recentes – um sobre a história da Ucrânia, dois sobre as fomes do período soviético, que fizeram milhões de vítimas e ficaram conhecidas por Holodomor, para nos introduzir à génese sofrida de um país que ainda não vive em paz. Sendo que é uma história bem presentes nas tensões dos dias que vivemos:
Putin knows this history, of course, and he too fears that if Russia “loses” Ukraine—which, nowadays, means losing economic and political influence—then his autocratic regime might also be destabilized. For if Ukraine becomes too European—if it achieves anything resembling successful integration into the West—then Russians might begin to wonder: If Ukraine, then why not us? Plokhy also explains that since the fall of the USSR, the Russian imperial project has focused on the idea of unifying Russian speakers into a single state: “Ukraine has become the first testing ground for this model outside the Russian Federation.” But if Russian-speaking Ukrainians don’t want to join the Russian state—and it seems that they don’t—then there will be no Russian empire. That failure may rebound upon Putin too.

A miragem de Angola, e a sua queda
Angola solicitou ajuda ao FMI. Um dos países com mais recursos naturais do mundo está à beira da bancarrota. Ao mesmo tempo a miragem de um “regresso a Angola” desvaneceu-se, por vezes de forma quase trágica, em muitos portugueses. Por isso, neste dia em que Luanda oficializou o seu pedido de ajuda ao fundo, recuperamos dois trabalhos de fundo que retratam a sorte dos portugueses depois do colapso económico causado pela queda dos preços do petróleo:
  • De saída de Angola: a salvação já não é aqui é um especial do Observador, escrito pelo Tiago Palma no passado mês de Dezembro, onde se traça um retrato sombrio: “No colégio de Sofia metade dos alunos portugueses saiu. As empresas não têm como pagar os ordenados e até no Facebook se tentam trocar kwanzas por dólares ou euros. Quem não pode mais, volta.”
  • Novos retornados. “Chegar a Angola e encher os bolsos? Tirem isso da cabeça" é uma reportagem multimédia da Renascença, publicada há um mês e muito centrada na realidade do sector da construção civil: “Angola foi uma tábua de salvação quando a crise dilacerou o sector da construção em Portugal. Mas a queda do preço do petróleo congelou a terra de oportunidades e milhares regressam, com salários em atraso e poucas esperanças de reaver poupanças. Sindicato fala em casos de fome e admite que nunca viu "uma situação tão grave".”

Efeitos visuais (e não só)
Um dos fascínios de fazer jornalismo online é que se podem experimentar formatos muito inovadores e graficamente apelativas. Deixo-vos dois exemplos, muito diferentes:
  • O sonho de Abril, escada acima, escada abaixo é uma curiosa produção do Público que, a propósito dos 40 anos da aprovação da Constituição da República (tema do Macroscópio de sexta-feira passada), foi visitar um dos prédios do que outrora foi a Cooperativa de Habitação Económica Sonho de Abril, aí falando com alguns dos moradores para saber até que ponto tinham realizado os sonhos associados à revolução portuguesa. Para além de vídeos que contam diferentes histórias, há também uma reportagem escrita de grande formato.
  • Alma animal, el espejo de las emociones é um ensaio fotográfico fascinante, no qual vemos imagens de Robert Bahou, um fotógrafo jordano especializado em animais que nos põe face aos olhos penetrantes de gatos e cães. Além da qualidade das imagens, destaque também para o formato adoptado pelo El Pais, sendo que esta produção surge associada à renovação da El Pais Semanal que ocorreu no passado fim-de-semana e que não se limitou à edição impressa daquele diário espanhol.

Europa, Europa, tantos problemas…
Multiplicam-se as crises europeias – refugiados, dívidas soberanas, falta de crescimento, Brexit… – de tal forma que se multiplicam as vozes ora pessimistas, ora de crítica desassombrada. Aqui ficam dois textos interessantes, sobretudo pelos argumentos que alinham:
  • Nigel Lawson é uma das vozes mais activas e influentes do lado dos que defendem o Brexit, isto é, a saída do Reino Unido da União Europeia, isto apesar de, sendo britânico, viver em França, na Gasconha. ‘I love Europe! That’s why I live in France. But the EU has no purpose’ é o resultado de uma entrevista que deu ao Guardian na qual utiliza argumentos que não são os habituais nos que, como ele, também defendem um adeus britânico. Por exemplo: “One simple reason justifies Brexit for Lawson. “The important issue is democracy and self-government. It is about that principle. Self government is more important than anything else.” (…) “No, it would be good for the countries of Europe. When you have an entity with a really serious democratic deficit, and proving to be an economic poor performer, the idea that there is anything to be lost if it breaks up peacefully I find totally unconvincing.” Lots of people would describe it as a historic catastrophe. “No, well, they’re completely mistaken. I cannot see any rational case for believing that. Things don’t go on for ever.”
  • Le dilemme grec d’Angela Merkel é um texto de Luc de Barochez no L’Opinion onde o autor descreve a acumulação de problemas que deixam a chanceler alemã sem boas escolhas. Sobretudo quando tudo indica que a crise grega vai reemergir na agenda dos líderes europeus. Pequena passagem: “Il semble désormais exclu que la Grèce puisse se rétablir toute seule. Il faudra une restructuration ordonnée de la dette si l’on veut éviter un «Grexit», une sortie de la Grèce de l’euro. Le problème pour Angela Merkel est qu’elle devra pour faire aboutir le dossier renoncer à au moins l’une de ses deux promesses solennelles : pas de remise de dette, pas de départ du FMI. Et écorner encore sa crédibilité, déjà mise à mal par la crise des réfugiés.”

Regresso a Portugal e ao essencial
Termino regressando a Portugal e a dois especiais do Observador que merecem a vossa atenção, até porque foram publicados durante o fim-de-semana e podem ter passado injustamente despercebidos.

O primeiro é sobre um tema sobre o qual devíamos saber mais e conversar mais: livros escolares. Em Manuais escolares: abram-nos por favor!, Helena Matos trata de responder a questõesporque é que se paga tanto pelos manuais escolares, ou porque é que se é obrigado a comprar também os cadernos de actividades, mas não fica por aí e também compara conteúdos. Descobre assim como certos livros únicos de antes do 25 de Abril se "adaptaram" à revolução, e depois como esta tratou de endoutrinar as crianças. Ou então como hoje esse endoutrinamento ainda não desapareceu, pois se chegou ao ponto de "os alunos poderem não saber descrever os climas ou fazer contas com fusos horários mas saberem, garantidamente sabido, que a Terra está à beira do fim por causa do aquecimento global, que há que fazer uma cruzada para salvar o planeta e muito particularmente que existem pobres por culpa da globalização que é o mesmo que dizer do capitalismo".

O outro parte do facto de estarem a sair novas edições das obras de Eça de Queirós, da responsabilidade da Guerra & Paz, para se interrogar sobre se Eça de Queirós ainda explica Portugal? O trabalho é de Nuno Costa Santos e deixa-nos ainda com mais interrogações. E, também, com diagnósticos impiedosos: “Diz Maria Filomena Mónica que não foi Eça que “contaminou” a visão que os portugueses têm do seu país, mas a realidade. Em Portugal, sempre se imaginou o mundo dividido entre “nós”, as vítimas inocentes, e “eles”, os que mandam. “Esta imagem está em todo o lado, mas nenhuma figura a ilustra melhor do que o Zé Povinho, um saloio patético que faz manguitos nas costas do patrão, porque, à sua frente, não tem coragem de dizer o que pensa.”

“Nós” e “eles”, “eles” e “nós”, uma conversa bem portuguesa, temos de convir. Mas que não desenvolveremos por hoje. Tenham bom descanso, reencontramo-nos amanhã.

 
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