segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Macroscópio – A implosão do PSOE, o novo radicalismo do Labour e a crise de identidade da esquerda moderada

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Habituados que estamos a algumas feias lutas pelo poder em partidos portugueses, mesmo assim é difícil imaginar um espectáculo mais triste do que o proporcionado pelos socialistas espanhóis nas últimas semanas e, em especial, durante este fim-de-semana, quando por fim líder do PSOE, encostado às cordas pela sua própria direcção política e enfraquecido por sucessivas derrotas eleitorais, acabou por se demitir. Ainda não sabemos se a saída de Pedro Sanchez será suficiente para evitar a convocatória de um terceiro acto eleitoral no espaço de um ano, mas a verdade é que, para já, quem parece beneficiar são os partidos de direita e centro-direita que, de acordo com as sondagens mais recentes, conseguiriam em novas eleições a maioria absoluta que até agora lhes tem escapado.
 
O que se passou no PSOE tem muitas explicações e o objectivo deste Macroscópio não é analisá-las, antes enquadrá-las nas dificuldades mais gerais da social-democracia na Europa, de que também é um sinal a reeleição, com maioria reforçada, de Jeremy Corbyn para a liderança dos trabalhistas britânicos. Mesmo assim comecemos por algumas breves referências ao que acaba de se passar em Espanha, onde começo por pedir ajuda a uma breve análise do ABC, La deriva del PSOE: El síndrome Rosetta. A razão de ser deste título é simples: “«Vamos como la nave Rosetta, hacia la autodestrucción programada», comenta con desolación un antiguo dirigente asombrado del nivel de encarnizamiento de la pugna”. E a razão de ser da crise, na opinião daquele diário madrilena, também é clara: “La clave se llama Podemos. Sin la irrupción de una fuerza capaz de catalizar el malestar que expresó el movimiento 15-M, el PSOE continuaría ejerciendo sin mayores problemas el papel de partido-alfa de la izquierda. Fue el surgimiento en 2014 de la plataforma electoral de Pablo Iglesias, incubada tras dos años de protagonismo televisivo, el factor que desestabilizó a una socialdemocracia convaleciente del hundimiento zapaterista”.
 
O Podemos, a formação de esquerda radical que quase ultrapassou o PSOE nas últimas eleições, explica muito, mas não chega, pelo que também é interessante ler o texto de Jorge Vilches no El Español, UCD y PSOE: historia de dos implosiones. A comparação é interessante pois remete para como há semelhanças entre a indefinição ideológica da UCD do tempo da transição para a democracia – “Eran el “centro”: ni la derecha ni la izquierda, ni el franquismo ni el marxismo, sino simples gestores de las reformas y ejes del consenso.” – e as derivas recentes de um PSOE à procura de uma outra identidade durante a sua última passagem pelo poder: “El PSOE carece hoy de identidad más allá del “no” a Rajoy. El zapaterismo llenó el partido de ideas de la Nueva Izquierda como el antiamericanismo, el feminismo, el ecologismo, el pacificismo, y el tercermundismo, que tradujo por “alianza de civilizaciones” y “buenismo”. Lo peor fue que resucitó el fantasma de la Guerra Civil y el rechazo a la Iglesia como señas de identidad del PSOE, acordó la exclusión del PP de las instituciones con el Pacto del Tinell, se sentó con ETA mientras firmaba con el PP el Pacto contra el Terrorismo, y llenó de auctoritas al independentismo catalán.(…) El zapaterismo lo ha heredado Podemos, que le ha dado la imagen y la movilización social que precisaba.”
 
Mas há outros elementos importantes, em especial guerras de personalidades, o que levou o historiador Santos Juliá a comparar, no El Pais, a actual crise com a que o mesmo partido viveu nas vésperas da guerra civil, há oito décadas. Em Crisis, caída y escisión del PSOE considera-se que “Hay que remontarse a los años treinta del siglo pasado para encontrar en la historia del socialismo español un proceso tan autodestructivo como el que se ha desencadenado esta semana en la cúpula del PSOE. Fue en una reunión del comité entonces llamado nacional, convocada para el 16 de diciembre de 1935, cuando ante una cuestión marginal sometida a votación por Indalecio Prieto, Francisco Largo Caballero dimitió de la presidencia del partido y arrastró con su decisión a varios dirigentes históricos. (…) El resultado fue la parálisis del PSOE en el peor momento por el que atravesaba la República.”
 
Mas enquanto isto se passa no PSOE, no Reino Unido existe a percepção generalizada que a deriva para a esquerda do Partido Trabalhista sob a liderança de Jeremy Corbyn afastará por muitos e bons anos o partido do poder. Um militante do Labour escreveu mesmo, num site de esquerda, Resistance and renewal, um texto que me pareceu interessante sobretudo pelo grau de desesperança que denota. Em ‘The longest suicide vote in history’: Why I have left the Labour Party escreve-se que “The myriad of left-wing causes who cluster together in loose alliance at marches and festivals will be delighted by Corbyn’s victory. But in terms of electoral politics, this socialist utopia will not come to anything, except wallowing in terminal debates about its own purity. The Labour Party does not exist to be a protest movement on the margins of society. It exists to exercise power. To gain election victories to bring about changes in how the country is run.  When it becomes unelectable it is completely failing to do its job.”
 
Paulo Tunhas, escrevendo aqui no Observador, interroga-se mesmo sobre se isto não será O fim de um partido?. Para ele a reeleição de Corbyn “arrisca-se, aos olhos de muita gente, a conduzir à perda definitiva de relevância do Partido Trabalhista, à semelhança do que aconteceu, nos anos 20 do século passado, ao velho Partido Liberal de Gladstone e de Lloyd George.” Isto porque “Corbyn representa, como se sabe, a “esquerda dura” do trabalhismo, no seguimento do seu mentor Tony Benn (…). As tradições são o que são, e a “esquerda dura” trabalhista tem uma longa tradição e sempre foi mais ou menos activa. Mas esta nova encarnação vegetariana, abstémia e pacifista oferece um radicalismo que não parece ter tido antes uma tão plena oportunidade de se manifestar na chefia partidária.”
 
Há contudo quem pense que a questão é mais complexa e o declínio ou a salvação de partidos como o Labour não depende apenas da personalidade dos seus líderes. Foi isso mesmo que, aquando da primeira eleição de Corbyn para a liderança dos trabalhistas, escreveu James Forsyth na revista The Spectator, num texto intitulado Labour’s on the wrong side of history. Isto porque, “Thanks to globalisation, ‘progressive’ politicians have nowhere to turn”. Era uma ideia que desenvolvia da seguinte forma, em dois passos (que são naturalmente mais desenvolvidos e sustentados, e aqui apenas enuncio): primeiro, “The Labour party has always believed in spending money for the common good. Public spending was the glue that held together the traditional Labour coalition and the New Labour one”; depois, o dinheiro falta e deixou de ser possível consegui-lo como antes (com mais impostos), pois “These difficulties are compounded by globalisation, which severely restricts governments’ freedom of action. If governments try to raise taxes too much, businesses and people simply move elsewhere. Socialism in one country isn’t an option any more.”
 
Neste quadro a queda do PSOE e a previsível queda do Labour apenas acompanhariam uma tendência verificada na generalidade da Europa, algo que o El Pais sublinha em La caída del PSOE es la peor en Europa tras el Pasok. É desse texto o gráfico que ilustra esta newsletter, sendo que no caso do PSOE “El partido español ha perdido la mitad de su apoyo: en los 80 logró un 48% de votos y ahora ronda el 22%”. Só que “La socialdemocracia tiembla en toda Europa. La caída electoral de los partidos socialdemócratas en Europa empieza entre 2005 y 2007. El investigador Chris Hanretty, de la Universidad de East Anglia, hizo la media de sus resultados electorales desde 1970. La curva da un vuelco en 2005: “El resultado socialdemócrata en las urnas ha caído consistentemente desde 2005”, ha escrito Hanretty. Los partidos conservadores, según Hanretty, son estables en el mismo periodo.
 
O texto de Chris Hanretty citado é Electorally, West European social democrats are at their lowest point for forty years e foi publicado na Medium. Nele mostra-se, com gráficos, o que tem sido a evolução do apoio eleitoral das esquerdas moderadas. Ora “The graph isn't pretty reading for social democrats. Social democratic performance at the polls has fallen consistently from 2005 onwards.” Depois de uma pequena digressão em que se refere a emergência de novas forças políticas, sublinha-se que “That’s not just a result of new parties which are harder to classify. If you repeat this exercise for conservative parties, you would see that they are on average above their 1970 baseline. I'm not sure what the answer is for social democrats. But it seems clear that the renewal which occurred at the end of the nineties has exhausted itself.”
 
Uma parte da pressão sobre os social-democratas vem da sua esquerda, se bem que por vezes partidos como o Podemos, por exemplo, digam que querem superar a velha dicotomia esquerda-direita e por isso são mais difíceis de definir. A não ser, porventura, como partidos populistas de esquerda, o que há quem faça sem pudor ou disfarces. Falo de uma das referências do Podemos, a filósofa Chantal Mouffe, para quem, por exemplo, “só é possível lutar contra o crescimento da Frente Nacional com um movimento populista de esquerda”, como dizia hoje numa entrevista ao jornal I – “Os governos socialistas entregaram a classe operária a Marine Le Pen”. Numa outra entrevista anterior, ao El Pais, “Hay una necesaria dimensión populista en democracia”, defende esse populismo em nome da ideia de que "la política es luchar por la hegemonía": “Desgraciadamente, los partidos que entienden mejor la política hegemónica en este momento son los partidos populistas de derechas. Mire el caso de Marine Le Pen. Ha entendido que la política es crear fronteras, que la política es crear identidades colectivas, y entiende el papel de las pasiones. Todo esto el populismo de derechas lo entiende y por eso tiene una ventaja en muchos países sobre la izquierda. Lo que hay que hacer es reapropiarse de ese término porque la dimensión populista es demasiado central en la política para dejarla a la derecha.”

 
Quando lemos esta teorização da filósofa que viveu e trabalhou com Ernesto Laclau na Unibersidade de Essex, com ele desenvolvendo as teorias que serviram os populismos latino-americanos, como o kirchnerismo, não é possível deixar de pensar noutras manifestações desse mesmo populismo, como o chavismo venezuelano, tão venerado por partidos como o Podemos. Por isso mesmo não posso resistir a terminar este Macroscópio como uma remissão para um excepcional trabalho do New York Times, uma reportage fotográfica em seis hospitais psiquiátricos venezuelanos:Inside Venezuela’s Crumbling Mental Hospitals. É de ficar arrepiado, mas é indispensável ver (reproduzo abaixo uma das imagens). Mais: “Without sedatives, nurses say, they must restrain patients or lock them in isolation cells to keep them from harming themselves. That is what happened to Raul Martínez, who was suffering a psychotic episode. A nurse tied him to a gurney.” Mesmo assim, “The Venezuelan government denies that its public hospitals are suffering from shortages, and has refused multiple offers of international medical aid.”
 
Bem sei que esta reportagem é um murro no estômago, mas por vezes é disso que necessitamos para separar as encantatórias promessas de todos os populismos do que é a realidade dos seus resultados, que vence todas as teorizações.
 
Um tema a que será necessário voltar, pois a crise da social-democracia europeia é uma das faces de algo a que já nos referimos muitas vezes nestes mails: o centro político está a fraquejar, o centro não está a aguentar.
 
Tenham bom descanso e boas leituras. 

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2016 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário