terça-feira, 25 de julho de 2017

Macroscópio – Portugal continua a arder. Mas há uma outra crise que queremos falar

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Quando se visita o Museu da História do Holocausto no Yad Vashem em Jerusalém, a primeira coisa que nos explicam é que cada vítima tem um nome, e que reunir um a um os nomes de todas as vitimas – seis milhões – é a melhor forma de não falamos apenas de um número, falamos de pessoas reais. Pessoas reais como as vítimas do fogo de Pedrógão Grande, de que continuamos sem conhecer oficialmente os nomes mais de um mês depois da tragédia. As dúvidas que se instalaram nos últimos dias sobre o número exacto de vítimas, e a falta de esclarecimentos cabais por parte do Governo e do primeiro-ministro, suscitaram já muitos comentários pertinentes – Rui Ramos no Observador, João Miguel Tavares e Paulo Rangel no Público, Henrique RaposoPedro Santos Guerreiro e Bernardo Ferrão no Expresso, João Gonçalves no Jornal de Notícias – e recomendam mais investigação (nomeadamente para esclarecer a consistência da lista divulgada pelo jornal i) e, sobretudo, mais transparência por parte das autoridades. Por certo voltaremos a este tema num próximo Macroscópio. Hoje, porém, vamos chamar a atenção para outra crise. Lá fora.  
 
A crise a que me refiro é a polaca. Ou, para ser mais exacto, a tentativa da maioria actualmente existente no Parlamento de alterar regras constitucionais, violar a separação de poderes e tornar o poder judicial dependente do poder político. Uma boa introdução ao que está em causa foi feita no site EU Observer, em Poland's 'July coup' and what it means for the judiciary. Eis o ponto central da controvérsia: “There is a long list of controversial provisions in the proposed legislation.The first two laws on the National Council of the Judiciary of Poland (NCJ) would grant authority to the parliament to select, by a simple majority, 15 out of the 25 NCJ members - practically meaning that the judges will be chosen by the governing party. Previously, these 15 judges were chosen by different self-governing judicial bodies. The new legislation would also shorten the term of the current members of the NCJ, and introduces a two-stage process of appointing judges to all other courts in the country. All the nominations recommended by the assembly of 15 politically-nominated judges will have to be approved by a second assembly, composed of the 10 other NCJ members, who are representatives of the executive power, as well as four members of parliament. "This can simply result in a situation in which judges, who will publicly criticise authorities, will not be selected by the NCJ," noted Letowska.”
 
Num registo de reportagem e análise, a Spiegel também abordou a situação em From Paragon To Pariah – How Kaczynski Is Driving Poland Away from Europe. O texto começa por nos descrever com o líder do PiS, apesar de formalmente só ser deputado, despacha com os ministros e até com o governador do banco central no seu gabinete na sede do partido. De facto, prossegue a Spiegel, “Despite holding no formal government office, Kaczynski is Warsaw's undisputed leader. Together with his late twin brother, Lech, he founded the PiS party in 2001 and twice led it to victory. In 2015, he hand-picked its presidential candidate Andrzej Duda, at the time an unknown member of the European Parliament, who went on to win the vote. He also personally selected current Prime Minister Beata Szydlo. Both politicians are widely seen as Kaczynski's willing stooges.”

 
Outra boa síntese da actual situação na Polónia é a publicada na última The Economist, Poland’s government is putting the courts under its control. Como relata a revista britânica, “Since taking power in 2015, PiS has set about dismantling the country’s checks and balances. It has reduced the public broadcaster to a propaganda organ, packed the civil service with loyalists and purged much of the army’s leadership. It has undermined the independence of the judiciary by stacking the Constitutional Tribunal with its cronies.” Ou seja, estamos perante todos os sinais de uma deriva iliberal, se bem que suportada pelo voto popular num primeiro momento. O que coloca a questão de saber se a Polónia seguirá o caminho da Hungria, um cenário que a revista considera, apesar de tudo, relativamente improvável: “Yet unlike Hungary, where Mr Orban’s party enjoys a crushing majority, Poland is politically divided. PiS won just 37.5% of the vote in 2015. Civil society remains strong, and the government responds to public pressure: last year it backed down from a strict abortion law when faced with massive protests. The independence of Poland’s judiciary may depend on how strongly Poles want to keep it.”
 
Este mesmo dilema é abordado por Jorge Almeida Fernandes no Público, em Depois do “Brexit”, irrompe a crise polaca, só que este analista reflecte uma visão um pouco mais pessimista: “O politólogo Georges Mink, especialista na Europa de Leste, faz um paralelo com a Hungria. O Fidesz, de Viktor Orbán, já tinha estado no poder mas perdeu as eleições de 2002. Quando as voltou a vencer, em 2010, mudou de ritmo. “É preciso andar depressa: em dois anos, Orbán neutralizou o Tribunal Constitucional, depurou a administração pública e os tribunais, impôs uma nova lei sindical limitando o direito à greve e promulgou uma nova lei sobre os media.” E repetiu o triunfo eleitoral em 2014, perante uma oposição exausta e com a ajuda de uma nova lei eleitoral. “Ao longo dos anos, Viktor Orbán foi aperfeiçoando o seu discurso, alcançando uma espécie de hegemonia ideológica.”
 
Neste momento há porém sinais de que a Polónia não seguirá o caminho húngaro. Depois de uma semana de manifestações em todo o país, manifestações essas que levaram o Presidente da República a pressionar o parlamento, este acabou por recuar – a nomeação dos juízes passou a exigir uma maioria de três quintos em vez de uma maioria simples –, um recuo que mesmo assim Andrzej Duda considerou insuficiente, tendo vetado as polémicas leis. Estes desenvolvimentos já estão a ser saudados como uma vitória da democracia. É precisamente isso que faz Anne Applebaum – uma historiadora que conhece bem o país e é casada com um antigo ministro de um governo liberal – que, no Washinfton Post, explicou como Poles fought the nationalist government with mass protests — and won: “Mass demonstrations all over the country followed, every night for the past week, in all of the major cities and many small ones, too. Tens of thousands — probably hundreds of thousands — of people sang Pink Floyd, the national anthem, anti-communist protest songs from the 1980s. They stood in front of courthouses with candles. (...) The sight of so many people on the streets inspired influential foreigners, including Poland’s European Union allies and even the State Department, to comment, too. The government and the parliamentary majority were unmoved. But Poland’s president, Andrzej Duda, was shaken.”
 
Hoje, no Diário de Notícias, em Atenção à Polónia, Leonídio Paulo Ferreira ajuda-nos a perceber um pouco melhor como foi possível este volte-face, falando-nos das motivações de um Presidente da República que não quis ficar remetido a um papel meramente decorativo: “Formado em Direito pela prestigiada Universidade Jaguelónica, da sua Cracóvia natal, Duda tem de pensar na reeleição e por isso sentiu a necessidade de ouvir a voz da rua (...). Sabe-se também que escutou uma conselheira que foi dissidente na era comunista e que o alertou contra a repetição de abusos do passado.”
 
Para compreender o vigor da reacção do povo polaco é útil ter consciência de que este é, por assim dizer, um dos mais “europeístas” da União Europeia. Numa inquérito levado a cabo nos 28 países da UE, Project 28, pode ver-se que os polacos são os que, se votassem num referende sobre abandonarem a União, são os que mais vigosamente se oporiam a esse cenário, como se vê no gráfico abaixo:
 
 
Numa análise a este estudo, publicada na Spectator – What Europeans really think of the EU – Ross Clark destaca mesmo um aparente paradoxo: “The sceptical Czech Republic is flanked by the two countries keenest to stay: Poland, which has an 80 to 15 per cent majority in favour of remaining, and Hungary, where the figures are 79 to 15.” O que significa que é muito forte a vontade de permanecer na União entre os eleitorados de dois países em deriva iliberal.
 
Este recente desenvolvimento na Polónia parece pois ir ao encontro dos que defendem que o melhor antídoto para contrariar os planos de Kaczynski é confiar no povo polaco, mais do que acreditar que será a União Europeia, com sanções, a travá-lo. O que de resto nem seria fácil, como se explica na National Review, em Illiberal Europe, East of the Elbe. Aí, mesmo considerando que Bruxelas é conhecida pela sua ineficiência nestas situações, a verdade é que “The roadblocks to action occur throughout the Article 7 process [destinado a tirar à Polónia direitos de voto], the sanction mechanism of which has two phases and runs through some of the more mind-numbing aspects of the European constitutional structure. First, the European Council and European Parliament would have to find, by a unanimous and qualified-majority vote respectively, that Poland has indeed violated fundamental rights and values. The council can then suspend Poland’s voting rights through a qualified majority. The unanimity required at the first step of the process makes substantive action difficult: Surely Hungary, whose leader, Viktor Orban, is often considered the prototypical illiberal democrat, would block any such move.”
 
Uma leitura não muito distinta da de Cristina Galindo no El Pais, onde em ¿Cuándo se acaba una democracia? escreve que “La “contrarrevolución” ideológica lanzada en Hungría y Polonia pone en evidencia la impotencia de Europa para atajar desmanes y excesos políticos que desafían al sistema.”
 
Sobre este mesmo tema referência ainda para Polonia o la ‘democracia caníbal’, no mesmo El Pais, e para dois textos do britânico The Telegraph (paywall): As Poland marches towards the jaws of autocracy, the EU faces a battle for its soul, de Ben Kelly, e There's no point in the EU having values if it refuses to stand up for them, de Matthew Day, onde este se interroga sobre What should be done about Poland?, uma vez que “The Central European state is rapidly shifting from an irritant that could just about be tolerated for the sake of unity in troubled times to a possible threat to the very European values that Brussels is always so keen to trumpet and extol.”

 
Termino com um texto num registo ligeiramente diferente, infelizmente apenas acessível a quem tiver assinatura do Wall Street Journal. Num editorial, Judging Poland’s Democracy – Protesters do what the EU can’t and force their leaders to U-turn, aquele jornal recorda que os mecanismos para assegurar a separação de poderes e a existência de um saudável sistema de “checks and balances” não têm de ser todos iguais em todas as democracias e que têm sido objecto de grandes discussões, pelo que acaba a recomendar prudência à União Europeia: “Such debates are as old as the hills—judicial power, appointments and tenure preoccupied America’s Founders—and some perspective would help. Foreign activists and the European Commission in Brussels fret that PiS is a threat to democracy. They’re right that the proposals are heavy-handed. Yet there’s no perfect method for balancing judicial independence and democratic sovereignty. Brussels doesn’t have a democratic mandate to impose its view, which leans more toward judicial independence than democratic oversight. More important are the protests from thousands of Poles in Warsaw telling their government that PiS’s court plans don’t represent the balance those voters want.”
 
E por fico-me por aqui, porventura mais confiante na energia do povo polaco do que na vontade do nosso Governo ser mais transparente. Tenham bom descanso, aproveitem estes dias quentes e longos, como é próprio da estação. 

 
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