terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

SOCIEDADE: A falta de sangue é um problema recorrente. Uma solução artificial ainda está distante, pelo que o mais importante é “não desperdiçar nem uma gota”

 Há mais de 188 mil dadores de sangue em Portugal e o IPST registou um aumento das dádivas na pandemia. Ainda assim, repetem-se os alertas devido às baixas reservas. Especialista do IPO de Lisboa explica que esta é uma equação complexa: como o desenvolvimento de “sangue sintético” ainda é uma busca pelo “santo graal”, o foco está em “otimizar” recursos.

Há muito que a família Sabrosa é dadora de sangue. “Desde pequeno que me lembro de, no Natal e no fim do ano, se falar na rádio e na televisão que era muito preciso ir dar sangue”, recorda Paulo Sabrosa. Com 57 anos, o operador de sistemas já perdeu a conta às dádivas que fez. A primeira foi nos anos 1980, quando ainda estava na tropa, para receber mais dias de férias, mas desde que o filho nasceu tornou-se um dador regular, indo pelo menos três vezes por ano.

Fez menos dádivas durante a pandemia, mas “na semana passada” já deu sangue novamente. “É uma coisa que estou a fazer para os outros, um bem para a comunidade. Faz falta e se eu não tenho nenhum problema clínico que me proíba de fazer isto nem medo de agulhas, porque não?”

Tal como o pai (e o avô e tio antes dele), também Gonçalo Sabrosa tomou a decisão de ser dador. Em 2019 acompanhou a namorada aos Bombeiros Voluntários de Peniche, onde ela dá sangue frequentemente – a instituição organiza uma colheita mensal no primeiro domingo de cada mês. “A primeira vez foi quase por ‘peer pressure’ [influência dos pares], mas depois, como não foi nada de especial, fiquei com a ideia que se houvesse uma nova oportunidade voltaria a dar.”

Por causa da pandemia, porque esteve a maior parte do tempo em isolamento e teve algum receio de doar sangue após ter tido covid, só este ano voltou a fazer uma dádiva. “Quando li as notícias sobre as poucas reservas de sangue, principalmente do tipo O, que é o meu, comecei a dar novamente e em princípio será para continuar”, conta o treinador de futebol de 24 anos. “É uma questão que não me prejudica nem beneficia, mas para outras pessoas pode ser muito importante. Eu só perco alguns minutos do dia.”

Pai e filho foram dois dos dadores que no início deste ano responderam ao apelo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação para o reforço das dádivas de sangue. O IPST relatou, na altura, uma “grande dificuldade em manter estáveis as reservas de componentes sanguíneos”. Apelos como este não são contudo caso único. A questão das reservas baixas é recorrente e sazonal, como explicou o IPST por escrito ao Expresso. “O período mais crítico é sem dúvida os meses de inverno (dezembro e janeiro), devido ao aumento das infeções respiratórias, que impossibilitam os dadores habituais de dar sangue. Considera-se também crítico o período de férias, nomeadamente o mês de agosto, em que os dadores regulares se ausentam das suas residências habituais.”

De que estamos a falar quando falamos de “reservas em níveis preocupantes”?

Apesar de tudo, a colheita de sangue no IPST (responsável por 60% das dádivas no país) “aumentou 7,8 % relativamente a 2020” e “1,7% relativamente a 2019”. 

“As reservas de sangue têm mantido sempre níveis que permitem dar resposta às necessidades existentes, mesmo nas diferentes fases da pandemia”, esclarece o IPST. “Todos os dias nos hospitais portugueses são necessárias cerca de 800 a 1000 unidades de sangue e componentes sanguíneos. Apesar da redução de 7% nas colheitas em 2020, houve também abrandamento das atividades hospitalares o que levou a que se mantivesse algum equilíbrio entre as colheitas e os consumos.”

Quanto às pessoas por detrás destes números, os dados mais recentes (2020) dão conta da existência de 188.601 dadores no país. “Mantinha-se a tendência verificada desde 2008 da diminuição do número de dádivas e de pessoas dadoras, agravada nesse ano pela situação pandémica covid-19.” Houve contudo um crescimento nos dadores de primeira vez (mais 1,9%) e os dados parciais para 2021 parecem para já indicar uma inversão positiva desta tendência de menor adesão registada na última década.  

Os jovens (18-24 anos) e os adultos (45-65 anos) têm tendência a aderir mais a estas iniciativa, havendo “uma diminuição sustentada dos dadores dos grupos etários dos 25 aos 44 anos”.

Critérios de segurança também excluem potenciais dadores

Neste contexto, Dialina Brilhante sublinha que a pandemia só veio agravar “uma série de dificuldades que em circunstâncias normais já existem” e que vão além do número de pessoas a fazer dádivas.

“Antes do HIV, tínhamos uma ideia de que o sangue era só uma fonte de vida sem constituir uma fonte de problemas. Quando apareceu a epidemia da SIDA, percebemos que havia doenças transmissíveis pela transfusão”, explica a diretora do serviço de imunohemoterapia do IPO de Lisboa. “A partir daí passou a haver uma atitude muito mais atenta nos critérios de dadores e nos exames analíticos associados à dádiva.”

“Quanto mais afinamos os critérios que nos garantem a segurança daquilo que estamos a colher, mais limitamos o campo de escolha”. Atualmente, há inúmeros fatores nesta equação. 

O aumento da mobilidade, por exemplo, faz com que quem viaja para países com epidemias de zika, dengue ou paludismo seja impedido de dar sangue durante um período de quarentena. O envelhecimento e a prevalência da anemia na população portuguesa (um em cada cinco adultos têm falta de hemoglobina) também excluem potenciais dadores.

Simultaneamente, “nestes últimos anos têm surgido uma série de tratamentos e técnicas cirúrgicas que para serem realizadas obrigam a um suporte transfusional”. O próprio desenvolvimento da medicina gerou mais necessidades. 

“Se num contexto destes aparecer um fenómeno externo como é a pandemia, que obriga as pessoas a distanciamento social, todas estas razões acabam por justificar que estejamos a viver o que estamos a viver e que não é só no nosso país”, afirma a especialista. A 11 de janeiro a Cruz Vermelha dos EUA declarou pela primeira vez uma crise de sangue no país.

“O sangue é um produto biológico altamente complexo e é extremamente difícil de mimetizar”

A escassez de sangue não é contudo uma preocupação nova. Os primeiros registos da busca por substitutos remontam ao século XVII, impulsionados pela descoberta do sistema circulatório pelo britânico William Harvey em 1616. Impulsionados pelos conflitos bélicos, o desenvolvimento da área conheceu grandes desenvolvimentos nas guerras do último século.

Contudo, e apesar de atualmente existirem vários programas de investigação em todo o mundo, o desenvolvimento do “sangue sintético” permanece um quebra-cabeças por resolver. “Não temos neste momento um substituto do sangue tal e qual como o conhecemos. O sangue é um produto biológico altamente complexo e é extremamente difícil encontrar um produto sintético que mimetize e realize todas as funções que o sangue tem”, afirma Dialina Brilhante. Existem, contudo, vários projetos no sentido de desenvolver produtos parciais. 

Nos EUA, um investigador da Universidade de Washington está a desenvolver o que tem sido vulgarmente apelidado de “sangue em pó”. O ErythroMer é, no entanto, um composto liofilizado desenvolvido a partir da hemoglobina humana. A substância desidratada poderá ser reconstituída na altura de utilização, resolvendo os problemas logísticos do transporte e armazenamento das unidades de sangue. Esta tecnologia poderá ter uma enorme importância em situações de emergência e zonas de conflito.

No Japão, cientistas da Universidade de Quioto conseguiram produzir e administrar com sucesso plaquetas produzidas a partir de células estaminais a uma mulher de 52 anos.

No entanto, explica a especialista do IPO de Lisboa, estas alternativas focam-se apenas num componente do sangue, sendo incapazes de substituir o produto biológico total. São além disso “soluções temporárias, que podem ser utilizadas nesta ou naquela situação, mas que não são generalizáveis” ou possíveis de reproduzir em massa. “São coisas que ainda estão num terreno de laboratório. É impossível transformar isso num produto disponível para uso corrente”

A maior parte destes projetos que têm tido resultados promissores nos primeiros testes em animais e aponta-se para um horizonte temporal mínimo de 10 anos para chegar ao mercado. Qualquer um destes produtos terá de ser aprovado pelos reguladores e cumprir “requisitos muitíssimos estritos” que visam garantir segurança do produto, o que normalmente demora quatro a cinco anos.

“Mas também é preciso ver uma coisa”, salvaguarda Dialina Brilhante. “Também não tínhamos uma vacina para a covid e esta acabou por estar disponível em tempo absolutamente recorde, porque fruto das circunstâncias e da colaboração entre diferentes equipas foi possível repescar uma série de coisas que já estavam feitas. Por isso não digo que seja impossível encontrar substitutos, mas não sei se o caminho é esse.”

Quando transfusão é o último recurso e a tónica está na gestão eficiente, um é igual a três

Para a diretora do serviço de imunohemoterapia, o foco atual é “utilizar adequadamente o que temos” em vez de “estar à procura do santo graal”. 

“Há muitos anos que se procura encontrar a melhor forma de nos automatizarmos destas flutuações, mas o que é um facto é que até agora não temos uma resposta. A única resposta atual é educar as populações para terem uma consciência cívica de que (se tiverem condições para doar) o façam e a utilização criteriosa dos componentes.”

Na última década, ocorreu uma mudança no paradigma das transfusões. “Aquela ideia de que um saco de sangue dá para tudo não é verdade”, explica. “Se ainda estivéssemos a funcionar em termos de sangue total, uma unidade de sangue (cerca de 450 ml) só servia para um doente”.

Em vez disso, a unidade é separada em três componentes (concentrados de eritrócitos, plaquetas e plasma) que podem ser usados em doentes diferentes de acordo com as necessidades de cada um. 

Por outro lado, os critérios para a transfusão tornaram-se mais restritivos, de modo a que esta seja só usada em último recurso. “Tenta-se fazer todo o possível para não ser necessário, mas isso não quer dizer que um doente que necessite não recebe o que precisa.”

Na prática, isto significa que um doente que vai ser submetido a uma “intervenção cirúrgica que se espera consumidora de sangue” poderá ser previamente preparado para corrigir défices e evitar a necessidade de transfusão. No mesmo sentido, tem existido também um interesse pelo desenvolvimento de bioterapias, de forma a encontrar tratamentos mais dirigidos que minimizem efeitos secundários que resultam na necessidade de receber componentes de sangue.

A divisão do sangue em componentes permite ainda realocar excedentes entre diferentes serviços. “No IPO não somos auto suficientes, isto é. não temos um número de dadores suficientemente alto para sermos autónomos em termos de concentrados de eritrócitos e plaquetas”, explica a médica. “Se calhar até nem faz muito sentido estarmos a trabalhar numa autosuficiência institucional. O que faz sentido é que há um programa no país de recolha de sangue e os excedentes daqueles hospitais serem enviados para os hospitais que deles necessitam.”

A otimização dos recursos passa também por mudanças organizacionais das próprias instituições. A automatização de certas técnicas, como já está a acontecer, permite libertar os técnicos para se dedicarem mais à adequação dos tratamentos a cada doente. Contudo a problemática ainda não resolvida do transporte destes componentes dentro das instituições implica que, em vez de estarem dedicados ao cuidado do paciente, os auxiliares estão por vezes ocupados em deslocações.

Mais do que grandes quantidades, é preciso manter a estabilidade dos stocks 

A conjugação de todos estes fatores, leva a diretora do serviço de imunohemoterapia a concluir que a prioridade está na adoção destas estratégias de gestão. 

“Quando temos stocks pequenos, mais criteriosos temos de ser na forma como nos organizamos para ter tudo controlado e não desperdiçar nem uma gota”, afirma. “Se houver um substituto isso erá maravilhoso, mas esse facto não invalida que não tenhamos de fazer tudo aquilo que estamos a fazer atualmente.”

“Não precisamos de ter muito, precisamos é de ter stocks estáveis na quantidade que faz falta”, até porque os componentes têm prazo de validade. E como a dependência do componente biológico não desaparecerá tão cedo, reforça-se o apelo à dádiva de sangue.

Para mais informações sobre as dádivas de sangue consulte os sites do IPST e do IPO de Lisboa

Fonte: https://expresso.pt/sociedade/a-falta-de-sangue-e-um-problema-recorrente-uma-solucao-artificial-ainda-esta-distante-pelo-que-o-mais-importante-e-nao-desperdicar-nem-uma-gota/

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