domingo, 9 de outubro de 2016

A IMPUNIDADE DO “JORNALISMO-UBERISMO"



       Ou receita para um cozinhado jornalístico de êxito                                            garantido

Agostinho Lopes* – AbrilAbril, opinião

-se e caracterize-se a classe profissional/sector de actividade e a qualidade do serviço prestado, através de alguns exemplos escolhidos a dedo. Escolham-se os piores. Destaquem-se alguns factos avulsos chocantes, enumerem-se coisas horríveis. E depois extrapolem-se, generalizem-se de forma abusiva, distorcida e preconceituosa, todos esses dados, transformando-os na caracterização e identificação da classe profissional/sector de actividade. Obtém-se «O taxismo-leninismo que durante anos nos obrigou a viajar em veículos sujos, com música pimba aos berros entrecortada com discurso xenófobos ou quase fascistas (…)».

Cite-se, sublinhe-se e inflacione-se a declaração/afirmação excessiva, violenta, de um dirigente de uma associação desse grupo profissional/sector de actividade… produzindo uma bolha de propaganda sobre as ameaças e malfeitorias de que é capaz tal classe/sector de actividade… Calcule-se que até foram capazes da «(…) projecção de dejectos de animais para concorrentes indesejáveis (…)».

Acrescente-se, como localização e ambiente político-social, o facto de essa actividade se realizar em Portugal, e logo, diferentemente, por idiossincrasia própria deste povo atrasado, tudo ser admissível, tudo ser possível…«Fosse o país um pouco mais exigente e houvesse um Governo mais empenhado na defesa de um limiar mínimo de moralidade pública (…)» e o referido dirigente associativo estaria a ferros!

Na «Europa civilizada» (já cá faltava uma maison/pour la patrie/p´lo Volkswagen/acabou-se a forragem/viva o patron!) de que falava Zeca Afonso (Década de Salomé) não era possível… Aqui ao lado, em Espanha e França, não era possível, como sabemos de olhar manifestações e lutas. É tudo na paz do senhor…

Tenha-se como concepção de Estado de direito um Estado com dois direitos. O direito da ordem jurídica e exercício da «violência do Estado» via polícia e outras instâncias, que tudo permite ao capital transnacional (nada de afugentar o investimento estrangeiro!), permitindo-lhe o exercício de uma actividade económica em total e brutal violação da lei portuguesa, desde Junho de 2014 – há mais de dois anos! Nem polícia, nem ASAE, nem tribunais, nem uma dita Autoridade da Concorrência, nem governos enxergaram uma situação três vezes ilegal: ilegal a entidade promotora e contratadora, ilegal a viatura usada, ilegal a actividade do condutor!

Em contraponto, o direito da mão pesada da lei e da ordem sempre que o indígena põe o pé de fora, por exemplo, se for o sexto carro numa praça de táxis de cinco!

Aliás admitiu-se aquela actividade ilegal e justificou-se a passividade do poder do Estado face à ilegalidade, na presunção de que em nome da «modernidade», das novas «tecnologias», da «inevitabilidade destas novidades platafórmicas» e etc., o Estado – o Governo, a Assembleia da República, um Município vai um dia «legalizá-la». Isto é, fazer a legislação necessária, direccionada e concreta, não abstracta, ao enquadramento legal…. da actividade de uma dada empresa. E como vai ser legalizada, logo pode exercê-la. E isto não faz comichão nem nada… É proibido caçar lebres e coelhos… mas como sabemos que um dia vai ser autorizada a caça, podemos caçar por antecipação… As lebres e os coelhos vão-se habituando… quando vier a lei, já não dói nada!

Baptize-se a reacção natural, obrigatória dos prejudicados – a de que vão continuar a luta – com um nome/adjectivo «forte», daqueles que não deixam dúvidas a ninguém, de que estamos perante uma tentativa de subversão da ordem cristã e ocidental: «guia de marcha para a ala radical do "taxismo-leninismo"»! Dizer «leninismo», para alguns é como dizer belzebu, satanás… mesmo se ninguém percebe o sentido que faz a sua articulação com hífen e tudo… com «taxismo». Ou melhor, percebemos todos bem demais… É certamente para «a criação de um clima de intimidação tal que leve o cidadão comum a ter medo de entrar (…)»… num táxi!

Ponha-se à disposição do sujeito um jornal dito de referência (ou um canal televisivo, ou radiofónico), e temos mais uma peça (porque já houve outras)… do «jornalismo-uberismo». Embora, perante as enormidades ditas e escritas sobre o assunto, não se esteja longe de um «jornalismo-fascismo»…

Nota 1: todas as citações em itálico pertencem ao artigo de Manuel Carvalho, «A impunidade do "taxismo-leninismo"», no jornal Público de 2 de Outubro de 2016!

Nota 2: como atestado do bom comportamento empresarial, económico, fiscal e ético da Uber, que a diatribe reaccionária invoca e defende como o cordeiro de deus que vai tirar os pecados dos taxistas, cite-se a peça do Expresso, insuspeito de «leninismo», de 24 de Setembro, titulada «O mau exemplo que vem do coração da Europa»: «Formalmente controlada por uma companhia offshore do Estado de Delaware, nos EUA, a Uber criou duas subsidiárias na Holanda, o país de Neelie Kroes (nota minha: a ex-Comissária Europeia da Concorrência até 2010, e depois com a pasta da Agenda Digital até 2014, que fez como o Barroso!) e concedeu-lhes o direito de usar a propriedade intelectual do negócio fora dos Estados Unidos. Isso significou uma tributação de impostos a uma taxa inferior a 1% sobre os lucros gerados pela actividade da Uber em mais de 60 países (excluindo os EUA), através de um esquema a que a revista Fortune chamou double dutch(duplo holandês). Este esquema foi montado entre 2013 e 2015, e em 2016 Kroes tornou-se consultora da Uber».

Como se vê: Concorrência, Agenda Digital, Plataformas informáticas, Uber, tudo coerente, consistente e transparente!

*Engenheiro

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