quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Artes | "Ninguém repara na diferença que satisfaz o outro"

A Hora da Ilusão é o 14.º livro assinado pelo jornalista do DN

Os leitores do DN associam o nome do autor às recensões e às entrevistas que assina todas as semanas. João Céu e Silva é jornalista da casa desde 1989. "A Hora da Ilusão" é o seu quarto romance publicado, mas tem mais três na gaveta, "para ver se resistem à passagem do tempo".

A Hora da Ilusão parte de um estranho acontecimento: as universidades tornam-se obsoletas e encerram. É uma provocação, uma crítica à sociedade atual ou receio do futuro? Estamos aqui perante uma distopia ou uma sátira?

Os meus romances partem sempre de uma primeira frase que surge. Se essas palavras iniciais não se forem embora, então nasce o livro. No caso de A Hora da Ilusão, tudo começa com o fim de uma universidade, porque não pretendia escrever uma história política, mesmo que fosse essa a razão que me empurrava para a narrativa. A intenção era colocar um símbolo do conhecimento numa situação terminal, como se encontrava a vida profissional do protagonista nesse momento em que fica no desemprego. Também não desejava escrever uma história sem esperança nem mostrar que a vida de cada um depende em muito de poderes intocáveis. Caracterizar o romance como distopia seria emparelhar com grandes textos já publicados, o que não é o caso. Uma sátira, aí posso dizer que não pois o que se passa nestas páginas deseja mostrar que há sempre uma hora disponível na vida de cada um para imaginar o futuro à sua medida.

O desemprego e a emigração são duas realidades pelas quais o protagonista, Xavier, passa. Hoje escreverias a partir destes temas que dominavam a ordem do dia em 2013? Ou, por outra, os temas da atualidade são inspiradores?

O romance foi escrito num momento trágico da vida nacional, em que milhares de pessoas partiram para outros lugares do mundo em busca de soluções. Como me impressionaram os números das estatísticas, não foi possível resistir ao tema. Curiosamente, foi muito pouco tratado ao nível da narrativa, apesar de estar bem presente em cada círculo de amigos, e esse foi um bom empurrão para avançar. Mas não é um tema unicamente dessa época, até bem mais próprio de tempos de fartura e para os quais a contemporaneidade continua sem resposta ao nível da satisfação pessoal.

Xavier viaja para o "hemisfério de baixo", onde há estranhas profissões como um domador de corvos ou uma medidora de árvores. E Xavier, um arquiteto, reconverte-se em escultor. A salvação está à distância de uma viagem?

Já não, a viagem está vulgarizada e o planeta, mesmo com muito por descobrir, ficou reduzido aos roteiros mais massificados. Ao criar essas personagens mais dadas à imaginação, desejava mostrar que se pode parecer igual porque ninguém repara na diferença que satisfaz o outro. Estamos demasiado iguais e relacionarmo-nos com um domador de corvos parece coisa impossível, mas existem por aí bem mais realizações pessoais do que julgamos. Ou seja, não estamos atentos ao outro. O meu desejo era confrontar cada um com quem vive a seu lado e que permanece opaco ao nosso olhar.

Noutro momento da ação, um segundo dilúvio assola a Terra e Noé anda em operação de salvamento de dirigível. É uma homenagem à passarola de Bartolomeu de Gusmão ou a José Saramago e o seu Memorial do Convento?

As histórias bíblicas sempre me impressionaram e Noé é uma grande figura literária. Espero que a metáfora seja original e que sirva para o leitor pensar que a Terra dá sinais de cansaço pelo mal que lhe fazemos. Não me preocupam as alterações climáticas, próprias dos ciclos de vida do nosso universo, mas sim a má relação com a nossa casa. Quanto à passarola, acho que ela foi um projeto de um outro "desempregado", enquanto o Memorial do Convento contrapõe um retrato de um tempo de muito emprego, mesmo que não fizesse feliz quem dele se beneficiava. A capa do livro mostra como se via o mundo há 500 anos, reproduzindo num ovo de avestruz o que se sabia dele, um tempo em que existiam muitos portugueses como o protagonista, Xavier, a querer descobrir um outro lado do mundo.

A Hora da Ilusão
Autor: João Céu e Silva
Editora: Gradiva
PVP: 12,5 euros

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