A
história
da medicalização do nascimento na China e no Japão é o tema de
uma secção especial da Technology
and Culture,
revista oficial da Society
for the History of Technology,
nos Estados Unidos da América, e uma das revistas mais conceituadas
no domínio de estudos sociais de ciência e tecnologia, que acaba de
ser publicada.
Gonçalo
Santos, docente do Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC) e
investigador integrado do Centro em Rede de Investigação em
Antropologia (CRIA), Universidade de Coimbra, é um dos coordenadores
desta secção especial (e também autor de dois artigos, um
introdutório e outro sobre a China), onde são
analisadas as tensões sociais e morais causadas pelo processo de
medicalização do nascimento nestes dois países do leste asiático.
Inclui artigos escritos por antropólogos e historiadores e é uma
contribuição interdisciplinar importante para a análise crítica
de processos de medicalização do nascimento no leste da Ásia e no
mundo.
Com
o crescimento institucional da medicina científica, o nascimento
passou do espaço doméstico para o hospital e começou a ser
abordado como um evento perigoso que requer intervenção obstétrica
para minimizar riscos e salvar vidas. Este processo de medicalização
foi intensificado ao longo do século XX, culminando na normalização
de um modelo de assistência ao nascimento que impõe às mulheres a
necessidade de estruturar o parto em função de uma
cascata de intervenções obstétricas.
«Na
China e no Japão, como na Europa e nos Estados Unidos, esta
transformação foi acompanhada por tensões
morais crescentes entre partidários do modelo tecnocrático
dominante e defensores de um modelo mais humanizado do nascimento,
mas existem poucos estudos sobre os contornos destas ‘guerras de
parto’. Esta secção especial dá um primeiro pequeno passo nessa
direção»,
afirma Gonçalo Santos.
Tanto
no Japão como na China de hoje, a assistência ao nascimento é
largamente dominada por valores tecnocráticos, especialmente na
China, onde a taxa de cesarianas está entre as mais altas do mundo,
«bem
acima dos 10-15% recomendados pela Organização Mundial de Saúde.
Em
ambas as sociedades, a medicalização do nascimento gerou um sistema
de valores tecnocráticos muito poderoso que não
foi contestado como na Europa
e nos Estados Unidos
por movimentos sociais radicais questionando a lógica da
medicalização e defendendo um retorno a práticas mais “naturais”
e sem qualquer tipo de intervenção médica»,
salienta Gonçalo Santos.
Existem
na China e no Japão movimentos sociais que defendem um modelo mais
humanizado do nascimento e que valorizam as abordagens mais naturais
das medicinas tradicionais,
mas
estes movimentos não rejeitam a autoridade dos médicos e dos
hospitais. «Isto
resulta numa espécie de duplo
vínculo moral que coloca demandas irreconciliáveis às mulheres:
por um lado, é preciso aceitar dar à luz no hospital com
intervenções médicas constantes; por outro lado, é preciso
cultivar um “corpo natural” e procurar evitar intervenções
médicas desnecessárias sem pôr em risco o bem-estar do bebé. Esta
secção especial mostra a génese histórica e os contornos
etnográficos deste duplo vínculo moral no período contemporâneo»,
nota.
O
artigo sobre a China do docente da FCTUC debruça-se sobre o
crescimento exponencial das taxas de cesariana em zonas rurais a
partir do virar do milénio, ilustrando esta transformação com
materiais etnográficos coletados ao longo de duas décadas de
visitas de trabalho de campo a uma comunidade rural no sul da China.
O autor compara
as experiências de nascimento de duas gerações diferentes de
mulheres, mostrando que estas diferentes experiências geracionais
resultaram em visões radicalmente distintas do significado e do
valor moral da crescente popularidade de cesarianas. «A
China
é um exemplo perfeito de modernidade reprodutiva comprimida, ou
seja, é uma economia emergente que passou de um sistema low-tech
de nascimento para um sistema high-tech
no espaço de uma geração. Este processo de “leapfrogging
tecnológico” gerou muitas tensões geracionais e é importante
perceber o papel destas tensões nos processos de negociação
familiares que ajudam a moldar as preferências e experiências de
nascimento das mulheres»,
declara Gonçalo Santos.
A
relevância das experiências das mulheres desta pequena comunidade
rural vai muito para além das zonais rurais da China ou da própria
China como um todo. As mulheres de outros países no leste asiático
e noutras partes do mundo «estão
também a ser confrontadas com uma dinâmica de medicalização sem
precedentes. Uma importante contribuição dos artigos desta secção
especial é chamar a atenção para a importância do ponto de vista
das próprias mulheres sobre as dinâmicas de medicalização e de
tecnologização em curso. Em suma, pretendemos chamar a atenção
para a importância de desenvolver políticas de saúde pública que
tomem em consideração o ponto de vista das mulheres»,
conclui.
Esta
publicação foi apoiada pelo Research Grants Council of Hong Kong,
pela Universidade de Hong Kong e pelo Smith College (East Asian
Studies Fund) e é uma iniciativa de um grupo de pesquisa
internacional sobre tecnologias de trabalho reprodutivo no leste da
Ásia, liderado por Gonçalo Santos, por Jacob Eyferth (University of
Chicago) e por Suzanne Gottschang (Smith College). Para realizar este
projeto, o docente da FCTUC, que atualmente coordena a rede
internacional Sci-Tech
Asia
(https://www.scitechasia.org),
beneficiou de uma Visiting
Scholar Fellowship
atribuída pelo Max Planck Institute for the History of Science,
em Berlin, em 2018/2019.
Cristina
Pinto
Nenhum comentário:
Postar um comentário