- Péricles Capanema
Não mais tolerando o confinamento, muitos estão jogando a toalha. Como que sufocados, querem sair logo de casa, tomar um ar, espairecer, pelo menos dar umas voltinhas no quarteirão; estão enjoados com as pessoas que veem todos os dias, precisam já ver gente diferente, sentir outras pessoas em volta, conversar sem a máscara. E, não menos importante, machuca muito a sensação do abandono, tantas vezes acabrunhante, em especial a falta de contato com familiares e amigos. Enfim, o isolamento para muitos está cobrando preço quem sabe excessivo. Abertura já, flexibilização já. Não ligam para fases, nem para cores, seja o que Deus quiser.
O isolamento prolongado amargura e desorienta. Sumiu o bem-estar psicológico que propiciava a vida da movimentação livre, cafezinho no bar, pastel na padaria, longas passadas e paradas diante das lojas. Em rumo contrário — com a economia em queda, não obstante promissores sinais de recuperação —, avultam no caminho, como assombrações, a insegurança, a incerteza e o medo do futuro. Em casos sem conta também a grana curta, todavia, por outro lado, muita gente está percebendo o que antes não chamava atenção, é possível com menos viver igualmente bem.
Vivemos numa civilização do toque, do contato, do calor humano. Da conversa, da conversinha e da falação. Emoções e sentimentos se expressam pela proximidade. Estávamos acostumados com tudo isso e desapareceram da noite para o dia, mudou o panorama. Olhamos para os lados sem saber o que fazer e a quem recorrer. Será o fim da linha? Sair agora do confinamento? O preço poderá ser ainda mais alto. Não sou médico, nem autoridade pública para fazer reparos e dar orientações, cujos fundamentos, melhor que eu, conhecem os especialistas.
Meu foco aqui é outro, o entretenimento, bem de primeira necessidade. Há muita gente mundo afora enfrentando riscos de internamento em UTIs, sequelas permanentes, até morte, para sorver com delícias alguns minutos de distração. Pesam os prós e contras e se lançam, ao voltar parcialmente à normalidade do período anterior ao COVID-19, na aventura do perigo calculado para tentar escapar da depressão, construir barreiras contra desequilíbrios psíquicos e fortalecer defesas do organismo. Os ares novos permitem desviar o olhar, por pouco tempo que seja, das perspectivas minguadas do confinamento, bem como divisar horizontes maiores e dar as costas para ambientes em que o futuro aparece toldado pela neblina das incertezas.
Entretenimento, bem de primeira necessidade, dizia. Significa divertimento, distração, diversão. Não é só isso. Dou aqui à palavra também significado pouco usual, talvez novo. O trabalho, o esforço, as provações, a seu modo, têm condições de fazer parte do entretenimento. Entreter significa também ocupar o tempo com esforço estrênuo em algo útil e, em consequência, deixar-se dominar pela sensação da vida justificada. E assim fortalecer os nervos espirituais, formando, ampliando e enrijecendo a personalidade. Um soldado numa trincheira, debaixo de saraivadas mortais de balas e granadas, pode ter em plenitude tal sensação. Igual modo, uma enfermeira exausta, lutando para salvar vidas numa UTI repleta de pacientes com COVID-19. Alegria na fina ponta da alma, mantida longe das depressões.
O leitor deve estar se perguntando o que faz Santo Antão no título deste artigo: tem ele alguma coisa a ver com o assunto? Tudo. Pensava nos sofrimentos do confinamento. Todos fugimos do sofrimento, mas não do confinamento. Surgiram naturalmente as figuras dos monges do deserto, que fugiam da sociedade e se afundavam no deserto, buscando voluntariamente a solidão [sob tantos aspectos forma extrema de confinamento]. Na solidão voluntária encontravam significado para a vida, imprescindível para a felicidade. E assim, por associação de ideias, surgiu esmaecida, lá no fundo, a figura de Santo Antão [também conhecido como Santo Antônio do Deserto – quadro ao lado], em muitos sentidos, o primeiro e o maior dos ermitãos, sol no nascedouro da vida monástica no Ocidente. Santo Antão tem todos os títulos para ser o padroeiro dos presentes dias de confinamento, ser nosso intercessor para que transcorram de maneira proveitosa, ao mesmo tempo entretida e virtuosa, para cada um e suas famílias. Santo Antão, rogai por nós!
Intitulado o pai de todos os monges, Santo Antão, segundo seu biógrafo Santo Atanásio, bispo de Alexandria, nasceu na Tebaida, no Alto Egito, em 251 e faleceu em 356. Viveu 105 anos, portanto, séculos 3º e 4º. De família aristocrática e rica, perdeu os pais por volta dos 20 anos. Logo depois, em seguimento aos conselhos evangélicos, vendeu o que tinha e distribuiu aos pobres, estabelecendo-se como penitente nos arredores da vila em que tinha nascido. Conheceu outros eremitas por ali, procurava imitá-los, frequentava a igreja. Sentiu por volta dos 35 anos chamado para vida mais distante dos homens e buscou no fundo do deserto fortificação militar antiga e abandonada, onde se trancou. Amigos seus levavam a comida (pão) que lançavam por cima do muro. Muitos o procuravam, mas em geral não os recebia a não ser muito raramente. Vinte anos depois, já caminhando para os 60 anos, aceitou orientar pessoas que ali queriam se fixar como monges. Impressionou a todos quando deixou a fortificação, forte e sadio como aos 35 anos. Ao redor dali, sob orientação do santo, foram fundadas ermidas e comunidades que buscavam a perfeição cristã. Um sem-número de eremitas e cenobitas viviam nas proximidades sob sua luz. Santo Antão, por duas vezes deixou a região para ir a Alexandria; na primeira para apoiar cristãos perseguidos, na segunda para lutar contra o arianismo. Com fama de santidade, eram numerosos os que buscavam seus conselhos em viagens ao local ou por carta, entre os quais o imperador e seus dois filhos.
A vida monástica ali praticada, da qual ele foi o motor, repito, está na origem do monaquismo cristão, amplo e importante impulso de piedade, com enormes reflexos civilizatórios, do qual surgiu a Europa, tal qual a conhecemos. E a América. É lícito conjeturar, quase nada de grande do que produziu a Europa, teria existido sem o enérgico impulso inicial dado por Santo Antão, imerso na solidão voluntária, do fundo de um deserto.
Quem não fica tocado, caminhando pela serra da Canastra, ao ver o filete de água de onde provém o rio São Francisco, a nascente histórica? Ou, mesmo olhando o começo do rio Samburá, a nascente geográfica? Ali começa tudo. Até se perder no oceano Atlântico, quase 3 mil quilômetros depois, o rio São Francisco fertiliza, alimenta, transporta, embeleza. Santo Antão é o filete de água do monaquismo, impulso inicial de incalculáveis rios de virtude, cultura, arte, oração, civilização — enfim, de perfeição natural e sobrenatural. Avanço civilizatório de fato está aqui.
Concluo. Santo Antão viveu entretido até os 105 anos, a maior parte dos quais na mais completa solidão — na oração, na penitência, na leitura e reflexão, nos trabalhos de cultivo e criação. Dali, por graduais e sucessivos efeito aprimorantes, via de regra em círculos cada vez mais afastados, foi surgindo sociedade mais moralizada e civilizada. Sob a luz de tal exemplo, no confinamento, para cada um, podem surgir visões mais abrangentes de considerar a vida, maneiras mais apuradas de convívio, até de preparar pratos, tanta coisa mais, que poderão melhorar para sempre a vida das pessoas, das famílias, dos círculos próximos. Mais ainda. O confinamento pode ser destrutivo, contudo muitas vezes esconde bênçãos. Cabe a nós não as deixar passar ao largo.
ABIM