Quem vive nas grandes cidades desconhece as emoções de participar em manifestações religiosas, felizmente ainda bem vivas no interior do nosso Brasil.
País iluminado pelo Cruzeiro do Sul, batizado como Terra de Santa Cruz, recebeu dos nossos descobridores portugueses tradições religiosas genuínas, conservadas com grande vigor em diversas cidades deste imenso Brasil.
No primeiro fim de semana de julho de 2019 estive na acolhedora cidade histórica do Serro, em Minas Gerais. A região, habitada por indígenas, em 1702 era rica em minas de ouro. Por isso a chamavam de Ibiti-ruí (Ivituruy), que significa morro dos ventos frios ou Serro Frio. Transformada em Arraial das Lavras Velhas do Serro Frioem 1711, três anos depois foi elevada à condição de vila com o majestoso nome de “Vila do Príncipe”. Em 1720 ela abarcava diversas cidades da região e passou a ser a Comarca do Serro Frio, hoje Serro. Auguste de Saint-Hilaire, renomado botânico francês do século XVIII, veio em 1816 ao Brasil em missão científica à época do reinado de D. João VI. Nos seus relatos, ele já ressaltava a beleza do relevo da cidade, com suas casas construídas em forma de anfiteatro no cimo dos montes. Serro ostenta com orgulho o título de primeira cidade histórica barroca, tombada em 1938 pelo Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por conservar integralmente seu aspecto de vila colonial.
Dentre outras celebrações, como a Festa do Divino Espírito Santo a Semana Santa, aqui se comemora anualmente a festa de Nossa Senhora do Rosário, a qual é preservada desde tempos imemoriais por gente simples que batalha com valentia durante todo o ano para preservar a Fé de seus antepassados. Essa manifestação religiosa e popular, considerada patrimônio cultural imaterial municipal do País, necessita, para se entender seu significado, conhecer sua origem.
A devoção a Nossa Senhora do Rosário remonta à célebre vitória dos cristãos contra os mouros no dia 7 de outubro do ano da graça de 1571. A batalha no Golfo de Lepanto, perto da Grécia, no mar Mediterrâneo, barrou àquela época o invasor otomano da Europa. A Santa Liga, liderada por D. João d’ Austria, filho do Imperador Carlos V e meio-irmão do rei espanhol Felipe II, era numericamente inferior em homens e navios aos infiéis liderados pelo temível Ali Pachá. Um desfecho trágico era quase previsível. Em Roma, o Papa São Pio V rezava à Mãe de Deus, implorando sua poderosa intercessão para a vitória na batalha. Numa visão, Ela lhe fez saber do sucesso da missão. Naquelas águas oceânicas distantes apareceu no Céu Nossa Senhora, portando o Rosário nas mãos e seu Divino Filho nos braços. Era um milagre portentoso! Ela própria cuidou de afugentar a esquadra inimiga. O Papa, agradecido, incluiu na ladainha lauretana a invocação a Nossa Senhora como “Auxiliadora dos Cristãos” e, mais tarde, Gregório XIII mudou a data para “Festa de Nossa Senhora do Rosário”, a qual foi estendida pelo Papa Clemente XII a todo o orbe católico.
Essa devoção foi trazida ao Brasil pelos portugueses. Conta-se que por ocasião do naufrágio de um navio lusitano uma imagem de Nossa Senhora do Rosário foi resgatada de um banco de areia por portugueses, índios e os escravos. No dia seguinte a imagem retornou milagrosamente ao leito do rio, tendo sido baldados todos os esforços para voltar a resgatá-la, exceto quando os negros o tentaram. Era um sinal claro de que Nossa Senhora os escolhera como recompensa pelo sofrimento que a escravidão lhes impunha.
No Serro, a devoção foi introduzida pelos negros em 1728, quando da fundação da Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos. Desde então, todos os anos essa data da vitória espetacular de Lepanto é celebrada por meio de atos religiosos, encenações, blocos com roupas típicas e músicas genuínas do folclore. Para alguns serranos outros ingredientes se misturaram na festa, porém sua origem histórica permanece.
Para esse reviver épico da batalha o evento possui blocos bem distintos, embora harmônicos entre si: os marujos, representando os descobridores portugueses; os caboclos, como figura dos índios convertidos, e os catopês, responsáveis maiores pela proteção de Nossa Senhora. No sábado, no encontro dos marujos e caboclos com os catopês ocorre a famosa “embaixada”, diálogo da fragata (embarcação dos portugueses) com a fortaleza (a Igreja), dramatizando a história da conversão de uma tribo indígena. Eles pedem licença para adentrar a capela guardada pela Irmandade.
Na voz cantada de uns e outros reproduzo, a seguir, parte desse diálogo:
— P.: Olá da Fragata!
— R.: Olá da Fortaleza!
— P.: Donde vieste?
— R.: De tal lugar…
— P.: …Grande monarca dessa mata soberana. Diz, ó caboclo (índio), de peito a peito, face a face, o que fazes com esses anais todos de arco e flecha na mão?
— R.: Sou um dos fiéis caboclos permanentes que vem visitar a Virgem Santa Maria e ser devoto para sempre! … Para me purificar, nessa praça, sem perigo, trago a Virgem Santa Maria para livrar-me dos inimigos.
Tem gente que desaba com a emoção desse momento. Os grupos se encontram, adentram a igreja e começa a Missa solene.
No domingo, do lado de fora da igreja, para que todos possam assistir, uma outra Missa precede a coroação da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Uma intérmina salva de tiros de fogos de artifício produz estampidos que ecoam cidade afora. Em seguida, a procissão. O sino da torre nova da pequena igreja do Rosário repica seu velho som. Novo foguetório recomeça, o povo se organiza no início em filas laterais, o padre e alguns acólitos portam a grande cruz de prata com Nosso Senhor. Ao centro, as figuras típicas da festa.
Nunca consegui entender de onde vem tanta gente devota que enche a cidade nesses dias. De todos os tipos humanos, de várias camadas sociais, todos cantam e rezam. Alguns pagam suas promessas, outros vêm agradecer favores recebidos da Mãe celeste. Uns, descalços, caminhando durante horas, aquela multidão percorre toda a cidade histórica.
Anoitece. As velas são acesas! A procissão prossegue. É costume decorar as portas de casas com flores e as sacadas com toalhas de rendas, no trajeto da procissão, embelezando ainda mais a solenidade. Vem a marujada com suas fardas brancas com listras azuis, tocando suas “caixas“ e pandeiros. Com a espada na mão, simbolizam a vitória dos guerreiros na luta. E passa mais gente…. Escuto o assobiar dos pífanos e o estalar das batidas dos arcos de flecha dos caboclos. É um deslumbramento ver a profusão dos trajes com penas coloridas, cocares reais e colares de miçangas.
Arrepio geral. Agora chegam os catopês! Filhos da Irmandade citada, eles constituem a guarda especial de Nossa Senhora. Com suas capas de chita coloridas, trajes cuidadosamente tecidos por mãos habilidosas, sabem da importância e da sua responsabilidade na festa. Surgem compenetrados. Sua música, mais lenta e discreta, parece um lamento antigo lembrando tempos de sofrimento. Antecedem o cortejo real. O Rei e a Rainha vêm com suas belas coroas douradas, em longos mantos de veludo carmesim, bordados com lantejoulas e pedrarias. As princesas, chamadas de “mucamas” ou “mucambas”, caminham em seus trajes de gala. Guarda-sóis azuis de seda protegem o séquito real, cujos componentes, orgulhosos de si mesmos, mantêm a cabeça erguida, cheios de dignidade, conscientes de sua realeza no momento. O primeiro juiz e a primeira juíza na comitiva são aqueles que mais trabalharam para conseguir os recursos para a celebração. Faz parte dos festejos alimentar gratuitamente durante três dias, com iguarias diferenciadas, toda a multidão que aflui ao evento. Tudo bem organizado e preparado. Cuidam para que nada falte, não permitem avanços nem grosserias nas refeições. Todos comem com respeito e se sentem recompensados pela fadiga despendida.
Eis que os fogos aumentam em vigor: no alto do pesado andor vem a imagem de Nossa Senhora, carregada por penitentes que disputam a honra de transportá-la. Cada ano os festeiros se esmeram no seu feitio, cada vez mais enfeitado, mais iluminado e bem florido, com a imagem barroca da padroeira no cume. Ela passa por diversas ruas e para na casa de quem lhe erigiu um altar. Nessa hora, o cortejo se detém para uma breve saudação aos devotos da residência. Alguns saem da procissão e abraçam os donos da casa, o andor faz uma leve reverência à família. É tocante demais, as lágrimas não resistem. Nossa Senhora abençoa e prossegue, para afagar outros corações. É sensivel a suavidade dessa bênção, mesmo para quem não tem crença alguma.
Agora resta a saudade de tudo que aqui se vivenciou e a certeza de que no próximo ano a tradição está novamente garantida. O reinado já passou o cetro da festa para os novos festeiros de 2020.
Embora longo o texto, esta foi a forma que encontrei para divulgar essa data ainda mais. Desejo que outros venham para dela participar, os serranos de longe, os turistas de outras partes do Brasil, quiçá estrangeiros interessados por uma bela experiência de uma tradição que nos distingue e singulariza. Todos bem-vindos para conhecer a calorosa receptividade desse bom povo das Alterosas.
Viva Nossa Senhora do Rosário!
ABIM
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