- Paulo Henrique Chaves
Fui presenteado com um livro sobre a vida de Elisabeth Leseur (1866-1914), parisiense da Belle Époque, serva de Deus, até então minha desconhecida. São quase 400 páginas sem ilustração, um gênero de leitura diferente dos meus habituais e um tipo de impressão pouco convidativo. No entanto, a capa me agradou.
Depois de folheá-lo, ver o autor e o índice, voltei à capa, ilustrada com uma ótima pintura da biografada. Uma senhora de meia idade, sentada em sua mesa de trabalho, trajada com um longo peignoir bordô contrastando com um veludo branco na gola e nos punhos, que sem dúvida ajudava compor a sua bela allure. Deixei-o sob os meus olhos enquanto lia dois outros livros.
Sem perceber, fui construindo o perfil psicológico dessa senhora: marcante personalidade, muito lúcida e inteligente, ar grave, mas sereno, educada e culta, com a axiologia em ordem, sem ilusão com o mundo que a cercava. Predicados, com certeza, fruto de uma vida de sofrimento resignado de uma alma católica.
Situação da sociedade na Belle Époque
Ao começar a lê-lo, dei-me conta de que seu marido, Félix, médico, era um ateu prático que a contrariava sobremaneira, de modo especial por suas ideias em relação ao catolicismo e à seriedade com que Elisabeth encarava a vida. Tentava de todos os modos minar a sua fé, passando-lhe livros de autores pouco recomendados que chegaram a lhe causar dúvidas metafísicas.
Oferecia-lhe muitas joias, convidava-a para uma vida social intensa e viagens contínuas. Tudo isso ela soube reger com resignação e cortesia para não se indispor com o marido, sempre oferecendo a Deus todo sacrifício pela conversão dele. Por sua formação, experiência e considerações, sabia que para fazer a vontade de Deus era preciso ter uma vida interior séria, o que estava nas antípodas do modo de ser de seus coetâneos.
Com efeito, observava ela, os cinemas, os chás, as danças, os automóveis e o telégrafo sem fio colocavam os seus contemporâneos em perpétua agitação, a ponto de as pessoas não quererem mais receber visitas em casa. Escrevendo a um amigo, discernia com nitidez que os maus exemplos provinham das classes superiores:
“É extraordinário até que ponto a sociedade está atacada por uma espécie de doença de São Guido moral, que não mais permite pensar e viver um pouco a sós. As amizades cada vez menos profundas e verdadeiras são abafadas pelas relações que correspondem bem ao imperativo de banalidades. Aquele que não defender o seu lar e o ser íntimo, será submerso, pois tudo acarreta uma diminuição moral”, observava.
Restituir ao lar a dignidade e a paz
Com fina percepção das mudanças sociais em curso — dir-se-ia imbuída de ideias contra-revolucionárias —, ressaltava: “Digo isto aos amigos, porque sei que entendem, mas quanta gente o pode compreender numa época em que se move sem agir, fala-se sem refletir, e em que se pensa o menos possível?” Elizabeth escreveu essas linhas em fins de 1903… O que diria ela hoje!
E dirigindo-se de modo particular aos católicos, acrescentou:
“Os sinceros devem reagir, restituir ao lar a sua dignidade e a sua paz. É preciso defendê-lo nesta Paris, onde os encontros são tão suspeitos; o aperto de mão tão fácil; onde se fecha os olhos com tanta indulgência a situações irregulares; onde a moda e as atitudes são tão ultrajantes como inconvenientes; onde sob pretexto de esporte ou camaradagem, rapazes e moças se reúnem à vontade, sem a vigilância dos pais, num desembaraço tão perigoso como sem distinção. Receosos de passar por retrógrados, e igualmente por covardia, eles abdicaram de sua autoridade”.
Ela dizia preferir mil vezes a vida calma, longe das agitações, que caem logo no vazio. Apontava o exagero no prazer da agitação, que poderia causar novas gerações ainda mais nervosas e superficiais. A distração tem limites, pois do contrário o próprio fundo da vida e seu fim serão desviados. Ora et labora. Para ela, “nesta vida todos somos culpados do bem que não fazemos”.
Má impressão que Leseur teve da Rússia
Outro ponto de seu discernimento recaía sobre a rápida industrialização. Deplorava a concentração do trabalho nas fábricas, que arrancava a mulher de seu lar e tornava o operário mais acessível a hábitos e doutrinas nocivas. Censurava o distanciamento das classes sociais, favorecidas por urbanizações como a Paris de Haussmann, separando bairros ricos dos pobres.
Preferia as classes sociais vivendo como outrora, mais perto umas das outras, conhecendo-se e entreajudando-se na troca amistosa de bons ofícios, pois elas já se ignoravam, o que necessariamente iria levar à luta de classes.
Entre as muitas viagens que fez com seu marido, uma foi à Rússia, em 1899. Em suas notas ela criticou o poder autocrático absoluto; a nobreza, receptáculo de todos os privilégios e que só pensava em gozar a vida; a burguesia rudimentar; os estudantes, pobres e com futuro miserável em ambiente de ideias revolucionárias; e, por fim, uma religião puramente exterior, na verdade, um meio político.
Observou que a religião russa, a ortodoxa, era despida de conteúdo espiritual, não passando de uma forma superior de polícia, e que os mujiques — camponeses e operários, aquele “pobre povo” — viviam na mais completa miséria, entorpecidos pelo álcool e por aquela falsa religião. Tudo, segundo ela, fazia pressentir a revolução comunista, que realmente ocorreu menos de vinte anos depois.
Acachapada por esse clima pesado, preferiu interromper a viagem. Ao sair da Rússia rumo a Istambul, sentiu-se aliviada, com a sensação de ter sido libertada: “Depois, o que dizer de um país onde tudo é vigiado, espreitado?” E concluiu: “Deixamos a Rússia sem saudades.”
Posição católica frente ao sofrimento
No âmbito espiritual, Elisabeth, de saúde muito débil, chegou a se perguntar se o sofrimento constituía um sacramento. Para ela, nada de grande se faz que não tenha por base o sofrimento e, ancorada em Santo Agostinho, viveu muito conformada com os dissabores próprios à existência terrena.
Chegou à conclusão de que Deus a queria mais Maria que Marta. Sentia-se satisfeita com o que lhe reservara na vida enquanto esperava a velhice, a qual, aliás, não chegou, pois faleceu aos 47 anos de idade. Ocupava seu tempo com a oração e a doença, uma via fecunda que lhe proporcionava muita tranquilidade de alma.
Tudo ela oferecia pelo bem das almas — de acordo com a doutrina da Comunhão dos Santos, da qual ela tanto gostava e difundia —, de modo particular pela conversão de seu marido, homem de coração duro. Além de uma vida de piedade intensa, deixou muitos escritos, como Jornal e Pensamentos de cada dia e Cartas sobre o sofrimento.
Tendo se desposado misticamente com o sofrimento, faleceu num dia 3 de maio, festividade do encontro da Santa Cruz.
Obteve a conversão do marido
Embora Deus a tenha privado da alegria de ver seu marido convertido, disse-lhe, ao se despedirem pela última vez, que não tardaria em mudar de vida e juntar-se a ela. Félix leu e releu enlevado os escritos, cartas e conselhos da esposa, converteu-se e abandonou o mundo, tornando-se padre dominicano. Ele é o autor do livro de que estou falando.
Para que o leitor faça uma ideia do alcance do pensamento e da ação de Elisabeth Leseur, depois de se tornar sacerdote, seu marido fez, em cinco anos, cerca de 400 conferências nas principais cidades francesas, belgas e suíças, com plateias de até duas mil pessoas, sem nunca tomar a iniciativa, mas sempre respondendo a pedidos.
Seus livros tiveram mais de 100 edições em vários idiomas. No Brasil, foram sete edições até 1931. Esta que li, mais recente, é cópia feita pela Editora da Misericórdia de uma dessas edições, prefaciada pelo renomado jesuíta Pe. Leonel Franca.
ABIM
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