Antes de propormos uma reforma deveremos avaliar a implementação das reformas que, entretanto, têm vindo a ser implementadas.
DANIEL CAROLO |
É inequívoco reconhecer a pertinência da preocupação com a sustentabilidade do sistema de pensões, porque é disso que geralmente falamos quando nos referimos à reforma da Segurança Social, ainda que esta inclua outras prestações. Os desafios da nova realidade demográfica, com menos trabalhadores e mais pensionistas, e o continuado aumento da esperança média de vida (EMV), a par das transformações no emprego e na relação laboral, colocam uma pressão acrescida a um sistema cujas receitas assentam quase exclusivamente nos salários. A este propósito saiu no PÚBLICO (Bagão Félix, 22 de Maio) um artigo sobre alternativas ao financiamento do sistema.
Todavia, penso que é igualmente necessário ter presente como funciona a Segurança Social, bem como se seu processo institucional de tomada de decisão é mais ou menos democrático. Talvez por isso proponha começar por identificar eventuais equívocos que, a meu ver, podem condicionar a percepção dos cidadãos sobre a Segurança Social e a necessidade ou não de fazer (mais) reformas.
1. Antes de mais, quem paga as pensões não é o Estado, muito menos o Governo. São sim as contribuições obrigatórias pagas em função de uma percentagem dos salários, independentemente de ser o trabalhador (11%), o empregador (23,75%) ou até os recibos verdes (29,6%).
As contribuições sociais obrigatórias, comuns aos regimes tanto de repartição como de capitalização, são um adiamento do consumo presente (salário durante a vida ativa) em favor do consumo futuro (pensão na velhice). É por isso que as pensões (e todas as prestações previdenciais, como o subsídio de desemprego) não são “benesses” mas antes um pagamento diferido, por direito, devolvendo ao trabalhador a proporção do salário que este foi obrigado a entregar à Segurança Social, cuja terminologia original “Previdência Social” é mais consentânea com a finalidade.
2. Quanto à gestão financeira, o funcionamento do sistema pode não ser tão complicado como se faz parecer. Por ser público é administrado pelo Estado e sendo de repartição cobra contribuições sobre os salários e, simultaneamente, assegura o pagamento das pensões. Por isso se diz que os nossos descontos não são para a nossa pensão mas antes para pagar as pensões atuais.
3. Para justificar a necessidade de reforma, convém identificar primeiro o problema. A haver uma crise do sistema importa identificar se o problema são os desequilíbrios entre fluxos financeiros (receitas/despesas), parâmetros actuariais (taxas contribuições/taxas de substituição) ou de índole demográfica (anos de trabalho/anos de reforma).
Se o problema da sustentabilidade fosse desta ordem, então bastaria ajustar os benefícios a pagar às receitas obtidas para esse efeito, mesmo assegurando a proporcionalidade distributiva assente nos salários, e o sistema seria, em teoria, sempre sustentável. Assim, bastaria apenas recalibrar os parâmetros do sistema. Só que na equação há que ponderar direitos adquiridos e os efeitos políticos (e eleitorais), já que os cidadãos mais afectados por qualquer alteração tenderão a penalizar o Governo que desencadear tal reforma.
Desta forma, diria que o desafio político em conseguir um equilíbrio entre o respeito pelos “direitos adquiridos” com o acautelar do direito dos outros a uma pensão no futuro é, porventura, mais complexo do que o desafio da sustentabilidade financeira, ainda que inevitavelmente o afecte.
4. Há ainda outra questão que não é de menor importância. Antes de propormos uma reforma, para além de identificarmos o problema deveremos avaliar a implementação das reformas que, entretanto, têm vindo a ser implementadas.
Na minha tese de doutoramento — Despesa e redistribuição na segurança social em Portugal: análise da reforma de 2007 —, analisei precisamente o impacto das medidas introduzidas para melhorarem a sustentabilidade (e também a equidade) do sistema de pensões. O Factor de Sustentabilidade é um exemplo de um instrumento inovador que permite anular o efeito do aumento da EMV na despesa com pensões, ao mesmo tempo que permite flexibilidade entre reforma com penalização ou o prolongamento da vida ativa para compensar esse efeito, ao invés do aumento cego da idade de reforma.
Por isso faço esta pergunta: por que razão a maioria parlamentar que apoia o Governo, tendo definido como prioridade a devolução dos rendimentos perdidos nos últimos anos — medida a meu ver mais do que justa —, não revogou as alterações feitas no Factor de Sustentabilidade pelo Governo PSD-CDS/PP em 31 de dezembro de 2014? Tal alteração, além de aumentar a idade de reforma, consistiu numa “aldrabice” ao mudar o ano base do cálculo da evolução da EMV de 2006 para 2000 (com que fundamento legal?), agravando, assim, a penalização na idade de reforma de 8% para 12%, logo no ano de 2015.
5. Acredito que pode haver quem julgue que politicamente é mais proveitoso discutir aumentos de “moedas ou notas” para determinados grupos de pensionistas (nem sequer todos), ou que considere que esses aumentos são positivos no combate à pobreza. Ambos poderão ter razão. Mas a democracia e o Estado Social dependem de instituições regidas por leis e, por isso, não se devem subverter as regras do sistema, nem para cortes nem para aumentos.
Da mesma forma que defendo que importa quebrar com a ideia falaciosa de que é preciso reformar a Segurança Social em nome do futuro, quando o problema está nas pensões atuais, sobretudo nas mais altas que, por força de regras como o último salário, ou antecipação da idade de reforma, não tiveram densidade contributiva suficiente, e não tanto nas pensões mais baixas ou na Pensão Social, como por vezes se tenta fazer crer. Da mesma forma que não se pode confundir os custos com a CGA com os da Segurança Social, que aliás tem resultados positivos. Para os futuros pensionistas as regras nunca foram tão claras nem tão sustentáveis. Se não fossem constantemente alteradas e fossem aplicadas a todos teríamos, talvez, grande parte do problema resolvido.
Concluo, assim, que a reforma prioritária deveria ser antes de mais política, de índole institucional, introduzindo um novo modelo de governação — talvez como se procurou fazer com a ADSE — que permitisse a legítima representação democrática de todos os beneficiários do sistema numa gestão comum, transferindo poder do Estado para aqueles que são os financiadores e credores do sistema — nós.
Fonte: Público
Nenhum comentário:
Postar um comentário