Em cima das 5 e 20 da manhã daquela quinta-feira, 25 de agosto de 1988, um dos aguerridos jovens repórteres, Nuno Roby Amorim, telefonou de casa para a rádio, a TSF. Ele morava algures no Chiado. Contou que que da janela de casa via chamas altas de fogo no telhado dos Grandes Armazéns Grandella.
No ano 1988 ficou desencadeada uma revolução na relação entre os portugueses e os media. Ainda não havia canais privados de televisão, mas crescia a reivindicação de alternativas aos dois únicos canais desse tempo, ambos do Estado, a RTP-1 e a RTP-2. Não havia TV privada, mas irromperam as novas rádios. Foi o culminar de um movimento que atravessou toda a década de 80: em 81, a eleição de Mitterand gerou uma onda de novas rádios em todas as cidades e até bairros de França. O espaço radioelétrico francês foi reordenado e liberalizado. Deixou de haver em França o frenesim sonoro das rádios piratas, passaram a estar no ar as rádios locais, que se assumiam como rádios livres, muitas com estrutura profissionalizada na produção, na apresentação e na prática jornalística.
Em Portugal, muita gente focou olhos e ouvidos sobre essa experiência francesa. António Colaço pôs no ar uma Antena Livre a partir de Abrantes. Um grupo de excelentes profissionais desapontados com a rádio que então se fazia ousou criar uma cooperativa, com nome que anunciava a rádio, TSF, Telefonia Sem Fios. Fernando Alves pôs no ar a palavra de ordem: “Fica bonita telefonia”.
O movimento pelo ordenamento do espaço radioelétrico que permitisse a atribuição de frequências em FM a novas rádios tornou-se muito forte, com crescimento constante ao longo de toda a década de 80. O Presidente da República era o muito popular Mário Soares, que seguia com entusiasmo o movimento das “radios libres” em França, e que apoiava os ativistas portugueses. A decisão, porém, passava pelo governo e pelo parlamento, onde Cavaco Silva tinha maioria absoluta. Um então ministro, Luís Marques Mendes, com o pelouro da comunicação social, estava a favor do movimento para novas rádios e televisões. Mas havia muitos interesses em jogo e choques até políticos entre pretendentes.
Como a legalização demorava, houve quem tratasse de forçar o processo político, colocando no ar emissões na zona de Lisboa. O grupo Correio da Manhã lançou a CMR, com apurada estética e perfil musical. O grupo PEI, de Pedro Santana Lopes, avançou com a Rádio Gest, orientada para elites. O grupo de profissionais que tinha criado a Cooperativa TSF pôs no ar a Rádio Jornal: como o nome sugere, voltada para as notícias.
O modelo inicial da TSF era totalmente inovador: a notícia tinha sempre prioridade sobre a música. O valor-notícia estava cotado por cima. Notícia recebida era logo transmitida, com ambição de imediatos desenvolvimentos. A cada meia-hora, outra novidade, uma síntese de notícias. Às vezes, uma síntese, por tão recheada, colava-se à seguinte. A TSF tinha por lema “a rádio em direto” – com jovens repórteres, muito preparados, sempre prontos para seguir rumo ao lugar da notícia. A prioridade para a informação foi reforçada pela escolha do animador principal, António Macedo, tão sábio no tratamento da música quanto ágil a lidar com as notícias.
Naquele tempo ainda não havia telemóveis, mas encontrava-se sempre algum telefone para relatar. Foi o que aconteceu ao fim da madrugada de 25 de agosto de 1988. Era o primeiro verão da rádio que tinha começado no bissexto dia 29 de fevereiro daquele 88, a TSF. A emissão ainda não era legal, mas a rádio era reconhecida e escutada. Vários governantes de Cavaco Silva perceberam isso e participaram em entrevistas na rádio que o governo deles continuava a considerar clandestina. Trinta jovens jornalistas, a maioria recém-saída de cursos universitários e na casa dos 20 e muito poucos anos, enquadrados por meia dúzia de profissionais já com pelo menos 10 anos de ofício e idade à volta dos 30, formavam a redação hiperativa em todas as 24 horas do dia. Alguns repórteres quase usavam as instalações da rádio como casa. Em cima das cinco e 20 da manhã daquela quinta-feira, 25 de agosto de 1988, um dos aguerridos jovens repórteres, Nuno Roby Amorim, telefonou de casa para a rádio, a TSF. Ele morava algures no Chiado. Contou que que da janela de casa via chamas altas de fogo no telhado dos Grandes Armazéns Grandella.
Estavam aquela hora cinco pessoas na redação da rádio das notícias, no 6.º piso da torre 2 das Amoreiras: o António Pinto Rodrigues, com o encargo dos noticiários da madrugada, de meia em meia hora, o Miguel Monteiro, com a tarefa de produzir a manhã de informação que eu com ele ia conduzir, o Paulo que animava a madrugada e o António Macedo que liderava a animação da manhã da rádio. No noticiário das cinco e meia, o António Pinto Rodrigues anunciava fogo entre o Grandella e o Chiado, e lançava o primeiro testemunho do repórter Nuno Roby Amorim.
Às cinco e 45, com o António Macedo, começámos uma emissão especial sobre o fogo, que se prolongou por todo o dia e entrou pela noite seguinte. Primeiro, informações dos bombeiros e testemunhos de moradores, alguns até eram amigos. Antes das sete da manhã, o José Manuel Mestre já estava no ar em reportagem, a partir de uma cabina telefónica no topo do Chiado. Logo a seguir, a Elizabete Caramelo, a Ana Margarida Póvoa, o José Fragoso, o Manuel Acácio, a Maria Flor Pedroso, depois o Carlos Andrade, o David Borges, outros mais, cada repórter num lugar estratégico para contar o fogo que avançava e que parecia imparável.
A fornalha subia da rua do Ouro para a do Carmo, galgava para prédios e lojas no topo da Nova do Almada, seguia para a Garrett, para a Calçada do Sacramento, ameaçava entrar na rua Ivens. A Casa Batalha, com o título de loja mais antiga e sempre contemporânea em Lisboa, a cinematográfica Perfumaria da Moda, a Mercearia Jerónimo Martins, a pastelaria Ferrari com atmosfera e doces preciosos, os tecidos no Eduardo Martins, a discoteca Melodia e um armazém de tesouros musicais como a Valentim de Carvalho, tudo a arder, juntamente com os dois grandes centros comerciais do tempo antes dos shopping, o Chiado e o Grandella,. Nas Belas Artes como no Grémio Literário, tal como na Valentim, acautelava-se em emergência o património mais estimado.
Às oito da manhã, o arquiteto Nuno Teotónio Pereira estava na rádio a explicar o património urbano que o fogo estava a atacar. Era dúzia e meia de edifícios, alguns muito degradados, vários construídos na reconstrução após o terramoto de 1755. José Augusto França contava como aquela tinha sido a Lisboa de Eça e Pessoa. Admitia-se que a tragédia da destruição fosse ainda maior.
Até às oito e meia da manhã, o fogo esteve sempre a alastrar. Os canteiros de betão para as flores no meio da rua do Carmo atrapalharam o ataque dos bombeiros às chamas, e barraram o avanço e melhor colocação das escadas Magirus. Bilhas de gás disparavam explosões e mais chamas.
Antes das nove da manhã, José Manuel Mestre testemunhava, a partir da Costa do Castelo, as labaredas altas no Chiado. Logo a seguir, uma primeira boa notícia: carros poderosos dos bombeiros do aeroporto tinham chegado ao terreno de combate e começavam a conter o fogo.
Na rádio das notícias, ainda sem licença para emitir, os repórteres tentavam levar tudo aos ouvintes, serem os olhos e ouvidos deles. Mário Soares, ao telefone, anunciava que o renascimento do Chiado teria de ser tratado de imediato.
O fogo foi dado como dominado perto da hora de almoço, sete horas depois de ter começado. Depressa se percebeu que umas duas mil pessoas iriam ficar sem trabalho, nas lojas, armazéns, escritórios e consultórios naquela parte de Lisboa. É um facto que aquela era uma Lisboa que tinha ficado decadente. À noite quase não havia gente nas ruas da Baixa e do Chiado. Pouca gente morava ali – apenas cinco famílias precisaram de realojamento.
O arquiteto Álvaro Siza Vieira recebeu o encargo de liderar a reconstrução daquela parte da cidade comida pelo fogo. De facto, foi assim que começou a requalificação que hoje faz do Chiado um lugar permanente e cosmopolita de vida. É o começo da mudança de pele que hoje põe Lisboa como cidade no topo do cartaz internacional.
Os jornalistas da rádio das notícias que ainda não tinha licença para emitir prestaram, naquele 25 de agosto de fogo no Chiado um serviço aos ouvintes. Esse serviço ao público foi o grande teste às novas rádios e tornou irreversível o reconhecimento oficial da nova realidade radiofónica. O concurso para atribuição de umas 300 frequências para emissão em rádio FM por todo país foi aberto poucas semanas depois. Em vésperas do natal desse 88, todas as rádios sem alvará interromperam a emissão para poderem legalizar-se através de candidaturas à concessão de frequências. Voltaram três meses depois.
O ano de 1988 mudou o Chiado. Mas também mudou a rádio que, definitivamente, deixou de aparecer engravatada e pomposa, para passar a estar ao instante a contar aos ouvintes aquilo que é suposto ser notícia, ou seja, o que é relevante para a vida das pessoas. Às vezes, com excessos, em doses de entusiasmo incontido pelo gosto de contar.
Nesse 88, as novas rádios tornaram-se uma força cultivada pelos ouvintes. A transformação da paisagem mediática portuguesa nesse tempo também passava pelos jornais, com o Independente, lançado em maio de 88, sob direção de Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, a levar o tratamento das notícias para fronteiras mais ousadas. Nesse tempo, um grupo de jornalistas do Expresso, gente como Vicente Jorge Silva, Jorge Wemans, José Manuel Fernandes, José Vítor Malheiros, Teresa de Sousa, Lucília Santos, José Mário Costa e vários outros já tratavam o lançamento do diário Público, que surgiria em março de 90, com novo salto de qualidade no jornalismo em Portugal. Em outubro de 92, chegou aos ecrãs a SIC, primeiro canal privado de televisão. Completava-se a revolução no sistema mediático e jornalístico em Portugal. Tudo catapultado em 88, o ano do incêndio no Chiado.
Francisco Sena Santos / MadreMedia
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