O tema deste Macroscópio é um tema triste: a intolerância com que opiniões ou visões diferentes são recebidas em certos meios que se desejavam livres. Isto porque o ponto de partida deste Macroscópio é a perseguição que está a ser movida, sobretudo nas redes sociais, a Henrique Raposo a propósito do seu livroAlentejo prometido. Uma perseguição que lembra o radicalismo da fatwa lançada, há mais de 30 anos, pelo Ayatollah Khomeini contra um livro de Salman Rushdie, Os Versículos Satânicos –num dos grupos já criados no Facebook há de resto imagens de pessoas a queimar o livro (orgulhosamente!) e ameaças irreproduzíveis.
O livro de Henrique Raposo – que já li e recomendo sem reservas – é, como explica a Fundação Francisco Manuel dos Santos, “um road movie familiar. O autor conta-nos uma história do Alentejo através de histórias familiares e memórias pessoais. O cenário é a região do Alentejo Litoral, sobretudo o concelho de Santiago de Cacém. Entre cidades e aldeias, o road movie lá vai descobrindo segredos familiares enquanto tenta lançar uma nova e implacável luz sobre uma região que se afoga há décadas em lugares-comuns. A ligar todos os quilómetros desta viagem, encontramos três temas: as mulheres, o suicídio e o complexo do desenraizado. O autor é filho de alentejanos que migraram para a Grande Lisboa nos anos 60 e sempre assumiu que encontraria a sua identidade perdida numa viagem deste estilo pelo Alentejo. Será que esse velho sonho resistiu à realidade?”
Na origem da polémica está uma entrevista que o autor deu a um programa da SIC Radical, Irritações, que pode ser visto aquino íntegra. E a passagem que provocou as maiores fúrias pode ser acompanhada aqui.
A pressão exercida foi tal que o local de lançamento do livro teve de ser alterado, pois os donos da galeria onde iria decorrer, a Tintos & Tintas não queriam polémicas.
Acossado, Henrique Raposo sentiu necessidade de escrever, na última edição do Expresso, uma Carta de amor ao Alentejo(paywall). Vale a pena reproduzir uma passagem, onde defende que nada justifica a “intifada” de que se sente vítima:
Primeiro: a violência oitocentista demorou imenso tempo a desaparecer no Alentejo; o símbolo deste clima de violência e desconfiança, o maltês, marcou a paisagem alentejana até meados do século XX. O meu bisavô materno foi maltês. Segundo: existia uma subcultura de bastardia no Alentejo, fruto de um abjeto marialvismo que via a mulher como propriedade privada dos desejos do homem da casta superior. As minhas avós e bisavós estão entre as vítimas desta violência marialva. Terceiro: o Alentejo, sobretudo o Alentejo litoral, apresenta uma taxa de suicídio altíssima e, acima de tudo, desenvolve uma cultura que romantiza o suicida. Ouvimos a toda a hora coisas como “não estou aqui a fazer nada, vou-me matar”, “aquele matou-se, eu também me matava se me tivesse acontecido o mesmo”. Ora, julgo que tenho o direito de me sentir incomodado e distante em relação a este traço alentejano. Contudo, isso não significa desrespeito pelo Alentejo. Pelo contrário. “Alentejo Prometido” é uma carta de amor.
Este último ponto é especialmente sensível, nele se centrando boa parte da fúria apesar de não haver dúvidas de que a taxa de suicídio no Alentejo é mesmo altíssima. Por isso mesmo o Observador, que pode pré-publicar algumas págins de “Alentejo Prometido”, escolheu precisamente algumas das que Henrique Raposo dedicou ao suicídio – Porque é que no Alentejo o suicídio é natural? Sem deixar de repetir a recomendação – leiam o livro, ele merece – aqui fica uma passagem do Especial do Observador:
A normalidade do suicídio começa no omnipresente estado da natureza. A maioria da população alentejana encara o suicídio como um fenómeno natural, tão natural como o vento a passar nos sobreiros. O laço da corda no pescoço é visto como um acontecimento da história natural e não da história humana; é um ato amoral da natureza e não uma escolha moral do homem. (…) Qual é o grande problema desta visão naturalista? Torna impossível contestar o fenómeno. Como é que se contesta um desastre natural? Ele simplesmente ocorre. Um terramoto não tem agência moral, não quer fazer mal ou bem, apenas acontece. A partir do momento em que encara o suicídio como um pequeno terramoto interior, o alentejano fica fora do alcance de qualquer argumentação moral, fica fora do alcance das palavras. Na mente alentejana, discutir se o suicídio é moral ou imoral é uma contradição em termos, da mesma forma que é uma contradição em termos discutir a moralidade de um maremoto ou tempestade.
Continuando com Henrique Raposo, eis um pouco do que escreveu na sua página do Facebook – uma página que pode ser obrigado a fechar tal a pressão que está a ser exercida sobre a empresa de Mark Zuckerberg (a página do autor do programa da SIC Radical, Pedro Boucherie Mendes, já foi banida): “Haverá um dia em que a literatura ou jornalismo iconoclastas desaparecerão do espaço público, mas esse dia ainda não chegou. O jornalismo e a literatura ainda não foram derrotados por esta nova forma de censura e, acima de tudo, de auto-censura do tempo das redes sociais.”
Não sei se há razões para este relativo optimismo. É verdade que, em Portugal, os tribunais têm vindo a evoluir na sua doutrina e protegem hoje mais a liberdade de expressão do que o faziam há alguns anos, como ainda a semana passada verificava, dando exemplos, Francisco Teixeira da Mota, no Público, em A liberdade de expressão é o oxigénio das democracias: “De vez em quando, há quem não goste da liberdade de expressão e recorra aos tribunais para procurar calar quem o incomoda. E durante muito tempo, graças a uma mentalidade retrógrada que dominava a nossa comunidade judicial neste campo, conseguiam calar e punir quem os incomodava ou perturbava. A aplicação da lei, nomeadamente do código penal com o crime de difamação, era feita mecanicamente e literalmente, esquecendo-se os julgadores de iluminar a legislação penal com a Constituição e com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). Mas, felizmente, essa mentalidade já não domina o mundo dos aplicadores do direito.”
Mas se a nossa cultura judicial tem evoluído no bom sentido, multiplicam-se os sinais de que noutros meios, nomeadamente nas Universidades, se têm vindo a multiplicar os sinais de claustrofobia. Isso é especialmente evidente nas universidades do mundo anglo-saxónico, onde a discussão sobre as cedências ao politicamente correcto se tem acentuado nos últimos anos. Recentemente a Vanity Fair mostrava mesmo como essa cultura se tinha estendido dos campus norte-americanos aos britânicos:How American P.C. Culture Conquered Britain, Too. Eis passagem desse texto que me parece especialmente significativa:
Self-censorship is the most effective form of censorship. When it can be arranged, it leads to a situation in which people don’t want to say what other people likewise don’t want them to say. Self-censorship also has the advantage of leaving no footprints. But I would no longer try to argue, as I once believed, that it is a minor problem in America and virtually nonexistent in Britain. The Public Health department there does not use the word “obese” in its National Child Measurement Programme for fear of “stigmatizing the child.” The BBC recently made available for downloading a number of classic programs from decades ago that don’t meet modern standards of inoffensiveness. As The Wall Street Journal noted, each program comes with a warning label noting that it is “an un-PC product of its time.”
O grau de preocupação com o que se passa em algumas das melhores universidades do mundo, onde activistas têm conseguido, por exemplo, banir conferências de autores que não apreciam e onde tiveram lugar campanhas para derrubar estátuas de grandes figuras do passado, que o tema ocupou esta semana Chris Patten, o último governador britânico de Hong-Kong, que numa coluna para o Project Syndicate escreveu precisamente sobre The Closing of the Academic Mind. Como nota, “The role of a university is to promote the clash of ideas, to test the results of research with other scholars, and to impart new knowledge to students. Freedom of speech is thus fundamental to what universities are, enabling them to sustain a sense of common humanity and uphold the mutual tolerance and understanding that underpin any free society. (…) In the United States and the United Kingdom, some students and teachers now seek to constrain argument and debate. They contend that people should not be exposed to ideas with which they strongly disagree. Moreover, they argue that history should be rewritten to expunge the names (though not the endowments) of those who fail to pass today’s tests of political correctness.”
Estes são desenvolvimentos muito preocupantes que o levam mesmo a interrogar-se se esses grupos de professores e estudantes não prefeririam uma Universidade como as chineses, onde é o governo que decide o que se pode e não pode discutir, ensinar ou mesmo pensar.
Curiosamente o mesmo título, The Closing of the Academic Mind, tem vindo a ser utilizado noutros artigos, como num outro que encontrei no The Federalist, onde M. G. Oprea retrata uma variedade particular de sectarismo, a que impede as críticas às sociedades do Médio Oriente e à cultura islâmica, uma tendência que ela radica numa conhecida de Edward Said, Orientalism. Eis o seu argumento: “According to many of my colleagues, an orientalist is a person who writes about the Middle East from a “western perspective,” which is when one does not unquestioningly support and affirm Middle Eastern and Islamic culture. This does not mean that westerners are excluded from writing about the Middle East and Islam. A westerner can do so successfully so long as their research is void of criticism. Write anything else and you will find yourself labeled an orientalist and no graduate course will touch your work with a ten-foot pole. Sadly, this is precisely what has happened to the work of Bernard Lewis, one of the world’s most renowned Middle East scholars. Because he has written about clashes between Islam and the West, and is willing to look at the Middle East outside the utopian academic optic, Lewis has been “dis-credited” and replaced with authors like Tariq Ramadan in college or graduate course syllabi.”
A ideia de que existe uma espécie de “fechamento do espírito crítico” tem ilustres pergaminhos, pois remete para a obra de Allan Bloom, The Closing of the American Mind, publicada em 1987. Curiosamente uma das mais recente crónicas de Henrique Raposo retoma esse título palavra por palavra – O fechamento da mente americana –, atribuindo a esse fenómeno o facto de a política norte-americana estar a ficar cada vez mais paroquial e isolacionista, como estas eleições primárias estão a ilustrar de forma eloquente.
Escrita antes da “intifada”, é uma crónica a que hoje talvez pudéssemos acrescentar uma variante portuguesa, uma reflexão sobre o “fechamento da mente portuguesa”. Pois é a isso que estamos a assistir.
Algo triste, despeço-me até amanhã. Tenham bom descanso.
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