terça-feira, 1 de março de 2016

Macroscópio – Da eutanásia e do direito à indignação

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


A notícia “explodiu” no fim-de-semana: a bastonária da Ordem dos Enfermeiros (na foto) teria admitido, num debate na Rádio Renascença, que a eutanásia já acontece no SNS. Apesar de entretanto a própria ter vindo dizer que "Não disse que se praticava eutanásia", vale a pena ouvir aqui, na RR, as passagens do programa “Em nome da lei” em que as polémicas declarações foram preferidas. E digo polémicas pois levaram o ministro a pedir à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde para investigar, o Ministério Público a abrir a um inquérito e a Ordem dos Médicos a reagir com alguma veemência.

Como já referimos no Macroscópio, este é um debate que não vamos poder deixar de ter depois da petição a favor da morte assistida assinado por mais de uma centena de personalidades – sendo uma delas a bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Vale por isso a pena recuperar alguns dos textos mais relevantes sobre o temas entretanto publicados.

Começo por um saído este fim-de-semana no Expresso, da autoria de José Tolentino Mendonça, padre, poeta e vice-reitor da Universidade Católica: Não matarás (paywall). Pequena passagem: “Mesmo o sofrimento mais intolerável pede ainda para ser interpretado, e para sê-lo com a chave da vida. Desistir de escutá-lo até ao fim, e para lá do fim, é desistir de amparar a vida como ela é, na sua nua e vulnerabilíssima manifestação. É preferir uma qualquer idealização (ou fuga) que diz o que a vida deveria ser, como se fossemos nós a decidir o que a vida é. E não somos. Pois quem pode, com verdade, considerar-se dono da vida? Não seremos antes guardadores, e apenas isso, apenas guardadores desse mistério que é maior do que nós?”

Colocando-se numa perspectiva oposta, regresso a Laura Ferreira dos Santos, que citei nesse anterior Macroscópio, e que voltou a escrever sobre o tema no Público: A morte assistida e a carta de Lincoln. É um texto em que decide assumir um testemunho pessoal: “Como é público, sou uma doente oncológica. Escrevi 700 páginas – julgo que de qualidade - em dois livros a favor da morte assistida, vários textos neste Jornal. Quando não aguentar mais, vão dizer-me que não reflecti o suficiente? Ou os cuidados paliativos vão querer-me basicamente sedada durante inúmeros anos, contra a minha vontade e a do marido, mas com a cumplicidade ditatorial do Estado? Haja respeito pelas minhas convicções, pela minha dor e sofrimento e a de tantos outros. Se essa altura chegar, acham que será fácil separar-me de quem mais gosto?”

No Observador também já saíram mais alguns textos sobre este tema, mas de entre eles destaco o Eutanásia, morte digna?, de Vasco Pinto Magalhães, um texto que teve bastante impacto e foi muito discutido e partilhado. Eis uma passagem: “A desfiguração e o sofrimento psíquico ou físico não tira dignidade à pessoa: esta, por maior que seja a limitação, não deixa de ser pessoa, sempre digna de ser respeitada e amada. O que é indigno na pessoa é a mentira, a corrupção, a inveja, a prepotência e a soberba que exclui e escraviza. A eutanásia também não resolve essas doenças morais, nem dá espaço para que sejam repensadas e superadas, eventualmente, com o acompanhamento, com o perdão e o paliativo necessário. Se, em vez de acompanhar a pessoa, para lhe dar dignidade a mato, não só não a compreendi como a “coisifiquei”.”

É evidente que este debate é antigo e, mesmo em Portugal, suscitou reflexões com outro nível de profundidade. Devo referir duas, que correspondem a outros tantos ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Primeiro, A Morte, de Maria Filomena Mónica, 80 páginas que ssão assim apresentadas: “Um livro bem escrito sobre um tema que poucos se atrevem a abordar, onde a perspectiva pessoal da autora (que aborda a morte da mãe) se mistura com a perspectiva literária (citando autores clássicos que falam da morte), legal, filosófica e religiosa. Além da morte, fala-se da velhice, esse estágio da vida em que as faculdades falham e o poder de decisão fica nas mãos de outros, com a respectiva perda de autonomia. E em Portugal a população envelhece a um ritmo assustador.”

Na mesma colecção de ensaios, Sobre a Morte e o Morrer, do médico Walter Osswald, oferece uma perspectiva contrastante sendo, escreve-se na introdução, “O presente texto ocupa-se principalmente com o processo de morrer e não tanto com o evento da morte. Assim, depois de uma breve revisão da história das concepções e atitudes perante a morte, ao longo dos séculos, dá-se especial atenção ao actual modo de morrer em Portugal, com a transferência da morte no domicílio para a morte hospitalar. Os cuidados paliativos, a dor, perda e sofrimento, o testamento vital, o suicídio assistido e a eutanásia, a espiritualidade, a fé e as noções da “arte de morrer” e da boa morte são temas abordados numa perspectiva de um olhar e de uma proposta pessoais.”


Mudemos agora de tema para uma rápida incursão por um tema que ainda fará correr muita tinta: a polémica em torno do Centro Cultural de Belém, do seu presidente, António Lamas (na foto), e dos projectos para o eixo Ajuda Belém, em Lisboa. Na passada sexta-feira, numa audição parlamentar, o ministro da Cultura, João Soares, disse que se António Lamas não se demitisse até hoje, segunda-feira, ele próprio o demitiria. Enquanto escrevia este Macroscópio o Ministério emitiu um comunicado a nunciar a demissão de Lamas e a nomeação de Elísio Summaviele, um maçon que foi secretário de Estado da Cultura num governo do PS, pelo que se torna mais pertinente conhecer duas importantes peças para este debate.

A primeira é uma entrevista que o próprio António Lamas deu ao Público na passada sexta-feira – António Lamas não se demitirá do CCB: "Não está na minha natureza" – onde reage, por exemplo, à acusação de que o plano para a zona de Belém-Ajuda foi feito sem falar com a Câmara da Lisboa: “Eu próprio me reuni com vereadores. A câmara aparece citada de duas em duas páginas [na proposta de Plano Estratégico Cultural da Área de Belém, publicada numa brochura de 35 páginas]. Alguém imagina que se pudesse pensar num plano destes sem falar com a autarquia e com a Administração do Porto de Lisboa [que tem a seu cargo a zona entre a linha do comboio e o rio]?”, pergunta, lembrando que a proposta não implica apenas conciliar a gestão de museus e monumentos; implica mexer na envolvente, no espaço urbano. “Além disso, seria impensável que uma resolução do Conselho de Ministros [a que cria a estrutura de missão, de Junho de 2015] propusesse algo que desrespeitasse a lei, que atropelasse o poder autárquico.

A segunda é um importante texto de Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte com larga experiência na gestão de organismos da área do cultura e património, editado no mesmo Público, mas hoje: Direito à indignação, um texto que resulta da decisão “tomar posição para exprimir a minha profunda indignação pelo modo como António Lamas tem sido enxovalhado”. Do texto deixo apenas esta passagem, recomendando a sua leitura integral, pois os exemplos continuam:
Gostaria de perguntar ao ministro da Cultura (que tanto apreciou o Museu Grão Vasco, modernizado pelo arq. Eduardo Souto Moura) se ele sabe que foi António Lamas (sendo Secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia) que, no final dos anos de 1980, delineou e pôs em movimento a modernização não só do Museu Grão Vasco mas do Museu Soares dos Reis, do Museu de Aveiro, do Museu de Évora, do Museu do Abade Baçal, do Museu Nacional de Arte Contemporânea, convidando para o efeito arquitectos como Fernando Távora, Alcino Soutinho, Hestnes Ferreira, António Portugal e Manuel Maria Reis e Jean Michel Wilmotte, abrindo assim o mais extraordinário período de obras de requalificação dos museus portugueses de todo o século XX. Que envolveu (saberá o ministro?) o projecto do próprio CCB que nunca existiria sem o rasgo e a determinação do então Presidente do IPPC que tantos contestaram como inútil e faraónica obra que escondia a cenografia estadonovista dos Jerónimos!

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2015 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário