Amanda Miranda
Doutoranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS
Doutoranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS
O jornalismo lida e explora emoções há muito tempo. Em 1690, a primeira tese a tratar do assunto, defendida na Alemanha por Tobias Peucer, destacava a ênfase que os “relatos” davam aos fatos que despertavam a curiosidade e o interesse humano. Séculos depois, esses recursos passaram a ser identificados como “sensacionalismo”, prática corriqueira entre tablóides de grande circulação que exploravam sensações do leitor ao mesmo tempo em que levantavam discussões sobre ética, privacidade e interesse público.
Essa discussão ainda é bastante contemporânea, mas é impossível ignorar que chegou-se a um novo patamar de interação entre jornais e público, potencializado pela internet e pelas ferramentas de diálogo. Se antes os números de circulação indicavam uma audiência interessada em consumir informações desse tipo, hoje métricas e algoritmos fornecem ainda mais detalhes. Mas não é só isso: essas sensações também ganham visibilidade pública nos comentários dos portais e das suas redes sociais – espaços em que o público interage com a notícia, com o veículo e muitos vezes com os profissionais.
É nesse espaço de interação que um tipo específico de emoção e de sensação tem sido exposto com bastante frequência. Há casos recentes e emblemáticos que ilustram tempos de cólera, intolerância e polarização social por todo o mundo, e ainda que os jornais não tenham controle sobre o tipo de emoção que geram no público, é necessário também discutir o seu papel de mediação.
No Brasil, na semana passada, uma exposição de arte foi canceladaapós um grupo conservador pressionar o expositor com argumentos conservadores, ferindo a liberdade de expressão. Quem acompanhou a repercussão pode ouvir o banco, o curador, os artistas e até um promotor, mas também pode ler a opinião de leitores raivosos e indignados, cada vez mais cegos quanto à pluralidade e à diversidade que é tão útil à existência humana. Ao se apropriarem das notícias, muitos as ressignificavam com base em preconceito, ódio e desinformação.
Coberturas que resultaram na manifestação de sentimentos de ódio e intolerância são cada vez mais comuns, como no episódio da marchacontra a igualdade racial, nos Estados Unidos. No Brasil, podemos lembrar ainda da polarização no mínimo extravagante entre quem argumentava que o nazismo era de esquerda e quem assegurava que era de direita. Isso sem contar nos casos de ódio a mulheres que relatam situações de machismo, como vivenciados recentemente pela escritora Clara Averbuck e pela apresentadora e celebridadeFernanda Lima. Propositalmente não iremos tratar de exemplos de política, religião e futebol porque precisaríamos de um número inesgotável de caracteres para debater a respeito.
A partir desses, mas também de outros tantos casos em que as emoções emergem desenhando um cenário de convulsão coletiva, é inevitável questionar: afinal, o que fazer dessas emoções, que muitas vezes nos chocam por revelarem ódio, intolerância, cólera e barbárie? O jornalismo é responsável por elas? Se for, como pode exercer um papel de orientação ou mesmo de pacificação em meio a grandes conflitos sociais? Talvez esse seja um assunto a ser investigado pela psicologia ou pelas ciências da cognição, mas é possível lançarmos alguns pontos ao debate.
O jornalismo e o seu papel
Muitos estudos se interessam em compreender o papel do jornalismo por uma via normativa, no sentido de um “dever-ser”. Nesse aspecto, é importante separar o jornalismo como prática do jornalismo como negócio, duas posições distintas. No primeiro caso, estamos falando de um campo social repleto de agentes que compartilham de um escopo técnico, ético e estético que os autoriza a representar o mundo. No segundo caso, estamos falando de instituições que regem este campo com os mais diversos interesses – como por exemplo legitimidade e reputação, quando falamos da mídia pública; dinheiro e lucro, quando falamos da mídia privada.
Como prática, independentemente dos códigos, valores e culturas compartilhados, o jornalismo tem um inegável papel de vigilância à democracia e aos direitos humanos. Soma-se a isso seu protagonismo como fomentador do debate público e sua participação inegável na formação de repertórios sócio-culturais a respeito do mundo e do tempo em que vivemos. É preciso, portanto, entendê-lo e questioná-lo a partir de sua grandeza e de sua potência, no qual o papel de mediação também pode ser um papel de orientação e pacificação.
A imprensa e o seu papel
Mas também é preciso discutir o jornalismo a partir daquilo que ele é. E, no Brasil, temos um sistema de mídia privado e, portanto, constituído por instituições com distintos interesses mercadológicos. Por essa via, defender que assuma um papel mediador e esclarecedor em tempos de conflitos e polarização pode parecer utópico e ingênuo, mas não é o que dizem os princípios editoriais das principais empresas de comunicação do país.
Os princípios das organizações Globo, por exemplo, indicam que seu jornalismo “defenderá intransigentemente o respeito a valores sem os quais uma sociedade não pode se desenvolver plenamente: a democracia, as liberdades individuais, a livre iniciativa, os direitos humanos, a república, o avanço da ciência e a preservação da natureza”. Além disso, assegura que, para atingir tais propósitos, “não cabe defender a importância de cada um desses valores; ela é evidente por si só. O que se quer é frisar que todas as ações que possam ameaçá-los devem merecer atenção especial”.
O Grupo Estado, também um dos maiores do país, enumera pontualmente entre os seus princípios a defesa de “um sistema democrático de governo, a livre iniciativa, a economia de mercado e um Estado comprometido com um país economicamente forte e socialmente justo”, além de registrar que sente-se responsável “pela promoção do desenvolvimento humano, político, econômico, social e cultural do Brasil, dando coesão à sociedade civil”.
A Folha de São Paulo também traz impressos determinados compromissos com o leitor, entre os quais destaca-se a prioridade dada a temas “que, por afetarem a vida da coletividade ou de parcelas expressivas da população, sejam considerados de interesse público”. A empresa sinaliza seu compromisso em “promover os valores do conhecimento, da solução pacífica dos conflitos, da livre-iniciativa, da equalização de oportunidades, da democracia representativa, dos direitos humanos e da evolução dos costumes”, além de assumir que irá “abordar os assuntos com disposição crítica e sem tabus”, bem como “cultivar a pluralidade”.
Tais documentos guardam muitos vestígios do “dever ser” do jornalismo, pois se assentam nos valores cultivados e conquistados por ele ao longo da história. Entretanto, sua finalidade comercial e consequente orientação para os interesses de uma elite pode gerar conflitos entre o que dizem e o que efetivamente fazem.
Por isso, é cada vez mais comum que em caso de tensão social os jornais evoquem a imparcialidade como seu principal valor – e, no lugar de orientar o debate público a luz dos seus próprios valores, fomentem polêmicas, desorientem e abasteçam o sentimento de intolerância e cólera no lugar de questioná-lo. Será que o papel de informar acaba mesmo aí?
A ONU e seus documentos
Alguns documentos da Organização das Nações Unidas são importantes para essa discussão, pois, de certo modo, subentendem que os jornalistas e a liberdade de expressão exercem um papel fundamental à democracia e à preservação dos direitos humanos.
Tanto o que defendemos como o horizonte,o “dever ser” do jornalismo, quanto o que dizem os princípios editoriais das empresas que transcrevemos aqui guardam relações com a declaração universal dos direitos do homem. Entre outras coisas, o documento assegura a “fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres”, assentados na decisão de “promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla”. Também na sua carta de fundação, a ONU registra o compromisso de “praticar a tolerância” e de estimular a paz.
Não é à toa que a organização vem atuando firmemente na defesa do jornalismo e dos jornalistas, inclusive estabelecendo planos de seguranças para profissionais ameaçados em situações de graves conflitos sociais. A organização entende, tal como espelham os princípios editoriais aqui expostos, que o jornalismo tem um papel a cumprir e a zelar em direção à garantia dos direitos humanos, à preservação da democracia e à pacificação.
Nesse dever ser assumido pela ONU, em que “cada jornalista morto ou neutralizado pelo terror é um observador a menos da condição humana”, reside a compreensão de que o jornalismo é essencial à mediação de conflitos e à preservação de direitos. Caberia a ele e às suas instituições, portanto, o importante papel de contribuir para o debate público, inclusive assumindo de vez as responsabilidades sob as quais firmam compromissos com o leitor.
O que podemos esperar
Tempos de cólera vão e vem na história da humanidade e, portanto, na história do jornalismo. O que distingue esse de outros momentos é a exposição que as manifestações de ódio e intolerância vêm ganhando nos portais e nas redes sociais, trazendo um novo compromisso ao jornalismo – posicionar-se em momentos de convulsão social.
Esta é uma tarefa bastante difícil, mas é importante lembrar que a própria imprensa vem sofrendo com o ódio e a intolerância: é prática comum entre os grupos conservadores perseguir e humilhar profissionais e seus veículos, ferindo duramente a liberdade de expressão. Se nem nesses momentos as empresas se posicionarem editorialmente, indo à público para defender seu papel, o que esperar em casos de violação de direitos humanos, de atentado à liberdade de expressão e de manifestação de ódio e intolerância?
Dentre as coisas mais simples que podem ser feitas, listo apenas três, na tentativa de contribuir com o debate de forma pragmática:
1 – Posicionamento editorial firme: situações de tensão e polarização exigem mais clareza por parte do veículo
Os espaços de opinião do jornal podem até receber elogios pela pluralidade, mas até que ponto essa pluralidade é esclarecedora nos momentos de convulsão? No caso da exposição cancelada em Porto Alegre, o Jornal O Estado de São Paulo deu voz a colunistas como oescritor Marcelo Rubens Paiva e a ex-atleta de vôlei Ana Paula. Ambos disseram coisas completamente diferentes, aguçando o sentimento de polarização e de cólera.
O jornal, no entanto, pouco falou. E se ele não se exime de posicionar-se editorialmente sobre aspectos da política, por que não o fez também quando vê um movimento conservador agir de forma anti-democrática, atentando contra a liberdade de expressão?
2 – Reportagens esclarecedoras: é preciso dizer mais do que poderia ser dito em situações em que não há conflito aparente
Investir em reportagem nunca há de ser um erro, para qualquer veículo de comunicação. Quanto mais dúvidas e mais falta de esclarecimento, quanto mais conflito e polarização, maior será o espaço a ser ocupado pelo jornalismo. E é aí que entra o bom repórter e sua vontade de aprofundar fatos que costumam pairar pelo senso comum.
No caso da exposição, foi bom o trabalho da Zero Hora. Ainda que a cobertura tenha sido fragmentada por conta da dinâmica das notícias online, o jornal buscou esclarecer o papel da exposição, das obras, dos artistas e, de algum modo, o papel da arte. Este texto, por exemplo, traz a fala dos artistas acusados de fazerem apologia à pedofilia e à zoofilia. É esclarecedor, mas exigiu um grande esforço de reportagem e uma disposição para tensionar o conservadorismo de grupos sociais que agem com cada vez mais virulência.
3- Moderação séria e ativa: comentários não são zonas de guerra
Os jornais não podem aceitar que seus espaços de comentários sejam espaços de guerra. É desalentador ver o volume de desconhecimento, de desinformação e de ódio que se repetem a cada notícia. Em muitos casos, é possível ler ameaças contra os jornalistas que assinam as notícias: o retrato perfeito de um tempo de convulsão e de intolerância.
É preciso levar a sério a figura do mediador de comentários. Em casos de debates saudáveis, ele pode fornecer links para outras notícias relevantes à audiência, participar das interações e até mesmo conseguir boas fontes para futuras pautas. Em casos extremos, no entanto, é preciso ter uma política corajosa e banir a audiência que promove o ódio e a intolerância.
É preciso lembrar que um bom jornal é feito também de bons leitores e que esses mesmos leitores podem estar dispostos a negociar em situações de conflito. Informações bem apuradas, contextualizadas e que não se omitem diante das polêmicas e controvérsias continuarão a ter um impacto na sensação e nas emoções do seu público, mas um impacto muito mais coerente com o que se espera do jornalismo.
Fonte: objETHOS
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