Meter dinheiro dos contribuintes e alargar o papel do Estado nos media não resolve nada. O que está em causa é demasiado importante para ficar dependente do carácter pessoal dos decisores públicos.
Costuma dizer-se que só há duas coisas certas na vida: os impostos e a morte. Deixem-me acrescentar uma terceira: o apelo ao dinheiro dos contribuintes quando um negócio passa por dificuldades.
Os bancos estão em dificuldades e precisam de 20 mil milhões. Quem é que vamos chamar? Os contribuintes.
Ainda assim, os balanços dos bancos estão cheios de malparado que é preciso “limpar” (parece que agora vai para o Banco de Fomento, que de banco bonzinho passa a banco mau). Quem é que vamos chamar? Os contribuintes.
Os restaurantes queixam-se que a vida está difícil e querem um bónus de 350 milhões nos impostos. Quem é que vamos chamar? Os contribuintes.
As novas plataformas electrónicas obrigam à modernização e reestruturação dos táxis. Quem é que vamos chamar? Os contribuintes.
A lista podia continuar, recuando no tempo, para perceber como os contribuintes são sempre chamados a pagar tudo e mais alguma coisa.
Sem surpresa, aí estão os apelos para que seja também o dinheiro dos contribuintes a salvar a imprensa. Quem mais poderia ser?
Por várias razões, esta é uma péssima ideia. Sim, a informação de qualidade é essencial para a saúde da democracia. Sim, as mudanças tecnológicas mudaram radicalmente as regras do jogo nas duas últimas décadas, tornando muito difícil o equilíbrio económico e financeiro do sector. E sim, também foram erros de gestão empresarial e editorial que contribuiram para agravar e prolongar o problema, não deixando ninguém de fora na lista de responsáveis: accionistas, gestores e jornalistas. Sobre este contexto já escrevi há duas semanas.
Porque é que ter o Estado a intervir nos “media” é uma péssima ideia?
Primeiro, por uma questão de princípio. O dinheiro dos contribuintes é demasiado precioso para ser constantemente chamado a pagar o que corre mal nos negócios privados. Na banca sempre se avançou com o argumento da potencial crise sistémica – umas vezes o argumento era real, outras nem por isso – para nacionalizar e capitalizar o sector. Mas até aí já fomos aprendendo algumas lições e hoje as chamadas “resoluções” já se passam de forma diferente das nacionalizações da década passada.
No caso dos media, mesmo pesando o seu papel fundamental no escrutínio dos vários poderes para a qualidade democrática, não vejo qualquer razão para uma intervenção do Estado que seja diferente dos mecanismos que existam para a generalidade dos sectores – acesso a fundos comunitários em condições semelhantes, por exemplo.
Até porque, e este é outro argumento, com a nossa fraca cultura de separação de poderes e de não intervenção, uma solução deste tipo teria todo o potencial para não o ser para o problema que pretendia resolver. O que está em causa não é a simples existência de jornais, revistas, sites, aplicações, redes sociais, televisões ou rádios com informação e entretenimento. Eles vão sempre continuar a existir, independentemente da forma como chegam aos consumidores. A questão está na qualidade do jornalismo, no seu rigor, independência e, sobretudo, na sua capacidade para enfrentar todos os outros poderes quando isso é necessário.
Ora, não nos é difícil imaginar que qualquer que fosse a forma de acesso às ajudas do Estado, rapidamente seria contestada, provavelmente com razão, a sua isenção, pluralidade, distanciamento e critérios. E lá se ia assim o bem público que se estava a tentar proteger: jornalismo de qualidade em que o público confia.
Em Portugal não abundam os decisores políticos ou donos e gestores de empresas com suficiente cultura democrática para respeitar a liberdade de imprensa sem tentar interferir quando ela não lhe é favorável.
Depois, nestas discussões esquecemo-nos que o Estado já detém um dos grupos de comunicação social mais importantes do país, a RTP, pago pela generalidade dos cidadãos. A primeira missão atribuída aos vários canais de televisão, de rádio e às bem estruturadas plataformas electrónicas é precisamente essa, a de um serviço público de qualidade, também no jornalismo, independentemente das condições conjunturais do mercado. E este é já um papel importante do Estado no sector dos media: permitir a existência de um grupo que, por ser pago em grande parte pelos contribuintes, pode e deve manter padrões de qualidade independentemente dos desafios que são colocados ao modelo de negócio dos privados.
Dir-se-á que a RTP não tem imprensa, não tem jornais ou revistas em papel. Mas sejamos realistas: isso interessa? As plataformas electrónicas não substituem já esse suporte tradicional? O importante não é a qualidade da informação independentemente da forma como é distribuída?
Alargar o papel do Estado no sector não resolveria nada de fundamental de forma consistente e a longo prazo. Por mais bem desenhado que fosse um modelo de intervenção, a sua correcta execução estaria sempre dependente das boas ou más intenções dos governantes de turno. Basta olhar para trás, para a nossa história recente, para perceber que os riscos são enormes. E o que está em causa é demasiado importante para ficar dependente do carácter pessoal dos decisores públicos do momento.
Cabe, portanto, aos privados e à sociedade encontrar formas sustentáveis de garantir a qualidade do jornalismo, que passa sempre pela diversidade, pluralismo e opções de escolha por parte dos cidadãos.
Como? A primeira opção deve ser sempre a de desenhar os produtos de forma a que o mercado os sustente por opção dos consumidores. Quanto mais sustentável financeiramente for uma marca de informação maior será a sua independência editorial. No presente continuamos a ter empresas de comunicação social lucrativas e que também são um bom negócio para os seus accionistas. Isso é um valor em si, independentemente de gostarmos mais ou menos do seu posicionamento ou linha editorial.
A desgraça está, sobretudo, na imprensa e, mesmo aqui, ainda não se exploraram devidamente as várias fontes de receita – algumas de desenvolvimento relativamente recente, como o branded content ou novos produtos editoriais – para tentar equilibrar as contas. Para os gestores, é sempre mais fácil e mais rápido olhar para a coluna das despesas na demonstração de resultados e planear novos cortes que, num sector onde o peso dos custos laborais é esmagador, passam sempre por despedimentos. E, a partir de determinado ponto, esta é uma espiral para o abismo: menos jornalistas fazem um produto pior, que atrai cada vez menos leitores num mercado cada vez mais exigente e concorrencial, situação que leva a novos cortes…
Depois, não havendo condições de mercado que o permitam, como é o caso actual em relação a várias marcas de jornalismo, o recurso a formas de financiamento privadas próximas do mecenato e da filantropia é a segunda melhor opção. É, aliás, um recurso antigo e muito utilizado nos Estados Unidos, por exemplo, que têm uma rede enorme de jornais, estações de televisão e de rádio locais e regionais que são, numa boa parte, suportadas por donativos regulares das populações e financiamentos de beneméritos individuais ou colectivos – empresas ou fundações.
Para que isto seja uma opção efectiva é necessário que exista uma cultura política, democrática e social que não abunda entre nós. Temos alguns bons exemplos de devolução à sociedade de uma parte dos recursos que a sociedade dá a empresas e seus accionistas, mas podíamos e devíamos ter mais. Talvez os projectos de índole social sejam escassos porque num país onde se achincalha quem o faz e se tem uma teoria da conspiração para tudo, até isso acaba por se virar contra os seus autores.
Por outro lado, temos também uma baixa literacia mediática. Sempre fomos um país de baixos níveis de leitura – mas que, curiosamente, sustenta três jornais diários de futebol, o que também diz algo do que somos -, onde nunca se cultivou a leitura de jornais ou o aprofundamento do conhecimento sobre os temas da actualidade. O afunilamento das linhas editoriais entre a análise à bola, a espuma política e as coisas “giras” em detrimento das importantes, também não contribui nada para a causa do jornalismo de qualidade e para a sua importância para a sociedade que gostávamos de ser.
E para piorar tudo, temos uma aparente hostilidade crescente em relação às redacções e aos jornalistas. Não sei se ela sempre existiu da mesma forma, mas só agora se tornou perceptível através das redes sociais ou se é um fenómeno novo. Mas quem hoje não insulte diariamente um ou dois árbitros de futebol, meia dúzia de políticos e não diga o pior do jornalismo que se faz em Portugal, parece não ter existência nestes novos fóruns feitos através do teclado.
Está na moda dizer mal dos jornais. Ou porque são todos de direita, “como é óbvio”. Ou porque são todos de esquerda, “como é óbvio”. Ou porque transmitem. Ou porque não transmitem. Porque defendem o clube A. Porque são contra o clube A.
Claro que a legitimidade de criticar o trabalho dos jornalistas é total e só podemos lamentar não conseguirmos apurar com relativa objectividade se os jornais hoje erram mais ou têm um enviezamento para algum dos lados superior ao de há duas ou três décadas que justifique o coro de críticas.
Apesar do contexto difícil, alguma saída terão as sociedades que encontrar para financiarem a informação de qualidade. Este é um daqueles bens que damos como garantido nas sociedades democráticas e do qual só sentiremos verdadeiramente a falta quando o não tivermos.
Aceitaremos, no futuro, pagar pela informação uma mensalidade como pagamos hoje para ter canais de cabo e internet em casa, aceder a um serviço de “streaming” de música ou de filmes e séries?
Vão algumas empresas e accionistas colocar este tema nas suas agendas e financiar projectos de informação tal como têm colocado a educação, a literacia, a saúde, a cultura, o ambiente, os oceanos ou outras causas colectivas?
Alguma coisa terá que acontecer. Talvez seja preciso que o sector bata mais no fundo antes de se encontrarem soluções. Mas não metam o Estado na equação. Para pior, já basta assim.
Por opção do autor, este artigo não é escrito segundo o novo acordo ortográfico.
Fonte: ECO.pt
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