Em muitos contextos familiares moçambicanos a mulher ainda é vista como uma máquina de reprodução da sua espécie, um mero complemento do homem – exaltado de todas as formas – não só enfrenta a sobrecarga das tarefas maternas e domésticas, como também é considerada o sexo mais fraco. Ela é de todo subalternizada, rebaixada e subjugada às mais desagradáveis formas de abuso físico, sexual, psicológico e económico, que se resumem naquilo que, publicamente, todos deploramos, mas em privado a maioria tolera: a violência doméstica. Esta extravasou o contexto familiar, onde é incubada e encoberta há séculos, e hoje invadiu a praça pública. Está aí exposta e é o mote de vários protestos colectivos de repúdio. Porém, o seus incalculáveis efeitos nocivos são por muitos ignorados.
Uma pesquisa conduzida pelo @Verdade permitiu concluir que as campanhas de sensibilização – de que diferentes intervenientes públicos, privados e organizações da sociedade civil se envaidecem de estar a levar a acabo no sentido de estancar a violência doméstica – podem, (de) per si, ter pouco impacto nas comunidades, daí que urge encontrar formas arrojadas de incutir nas pessoas que o fenómeno a que nos referimos é deveras malicioso e a sua erradicação passa por um trabalho aturado nos lugares onde ocorre com frequência e na consciencialização dos agressores.
Aliás, a psicóloga Brígida Nhamtumbo lembra que a célula de uma comunidade, em particular, e da sociedade, em geral, é a família. E não se combate a violência doméstica ou de qualquer outra estirpe apenas com mensagens de sensibilização. É preciso apostar na consciencialização para que as pessoas tenham autonomia de pensamento e decisão. Ademais, as campanhas de combate à violência não podem ser usadas como marketing – à semelhança do que ocorre – para colher benefícios individuais.
Determinadas famílias resistem aos recorrentes apelos para que desaconselhem, de todo em todo, a prática deste fenómeno. Apesar de elas alinharem, publicamente, no discurso segundo o qual a violência doméstica é prejudicial e concorre, sobremaneira, para a destruição de sonhos e do futuro de muitas vítimas, no seu seio assumem a dianteira de incentivar que as mesmas vítimas consintam o sacrifício de viver amordaçadas pelo silêncio e medo de denunciar o problema, sob pretexto de preservar o lar, porque assim foi também no passado.
Esta experiência amarga foi- -nos contada por Otília Mavota, de 34 anos de idade, residente no município da Matola, província de Maputo.
“Quando fui ao lar, a primeira coisa que me disseram é que lá nem tudo era perfeito”, começou por nos relatar e clarificou que entendeu esta mensagem dos pais como uma advertência de que iria enfrentar dificuldades.
O que a jovem mãe de quatro filhos – que deixou de frequentar a escola há anos na oitava classe – não imaginava é que o homem com o qual acabava assumir um compromisso e lhe fazia juras de amor tinha atitudes barbáries.
“Um dia o meu marido espancou- me porque neguei de ir à cama com ele enquanto estava bêbado. Isso foi motivo para eu ouvir todo o tipo de insultos e acusou-me de ter amantes”.
O tempo passou e Otília não tinha com quem dividir as suas mágoas nem pedir ajuda, supostamente porque o assunto “era delicado. Não sabia a quem podia contar que fui agredida por negar sexo ao meu marido. Mas eu sabia que o que ele fez era errado”.
A nossa interlocutora disse que viveu anos a fio a sofrer nas mãos do pai dos seus filhos. “Um dia cansei-me, reuni a família e contei tudo o que me sufocava. Achei que tivesse descarregado um fardo mas carreguei outro: ele foi repreendido mas depois todos [os parentes] olharam para mim e disseram que não estava a saber ser uma boa mulher. Eu devia saber que o chefe da família não pode ser contrariado e que briga de marido e mulher não pode ser tema se conversa alheia”.
Sem o apoio dos que provavelmente podiam debelar o problema, vários anos de humilhações passaram e nada mais restava à Otília senão encontrar meios próprios para se livrar da violência a que estava sujeita. E voltar para a casa dos pais não foi a melhor solução, pois, em vez de amparo, foi de todas as formas censurada.
“Numa noite ele bateu-me, como sempre, e acordei com a cara toda inchada e sentia dores em todo o corpo. Nesse dia os meus filhos perguntaram o que é que tinha acontecido mas não soube o que lhes dizer e chorei ao lado deles. A partir desse dia, decidi voltar para casa. Quando lá cheguei, todos se assustaram e pensei que era por causa dos hematomas que eu tinha no rosto mas não, para eles eu tinha me precipitado e não queria lar (...)”.
“Sempre insultava-me, agredia-me e a minha sogra perguntou-me se conhecia um lar em que tudo corria bem”
Na noite de 14 de Março de 2017, Paula Macamo, residente na localidade de Maciana, no distrito da Manhiça, província de Maputo, saiu, à velocidade da luz, da casa onde vivia com o marido, os sogros e os cunhados para uma outra vizinha de tronco nu e sem calçado, para escapar de uma alegada tentativa de homicídio perpetrada pelo seu próprio esposo.
“Naquele dia, se eu não tivesse fugido, teria morrido. O meu marido bateu-me” com recurso a um pau e outros instrumentos contundentes “que não sei onde buscou e disse que queria me matar porque eu o abusava (...). Já não era mulher para ele”, narrou Paula, de 32 anos idade e mãe de três filhos, dos quais o mais velho já tem 15 anos de idade, o que significa que engravidou ela com apenas 17 anos.
Segundo as suas palavras, os pais forçaram a sua união com o marido do qual já está separado, desde que se apercebeu de que ao lado dele a sua vida estava em constante perigo.
Receosa e, algumas vezes, com vergonha de falar detalhadamente sobre o mal a que foi sujeita, Paula, contou que a agressão física partiu de um desentendimento quando ela exigiu que o cônjuge comprasse uniforme para o filho mais velho, até porque passavam semanas que ele não se pronunciava a respeito.
“Ele atirou uma nota de 200 meticais na minha cara e perguntei se não tinha boas maneiras de me entregar o dinheiro. Fez isso na presença dos meninos e perguntei se era aquela educação que queria dar aos nossos filhos”, daí que “começou a me insultar e quando lhe dei as costas disse que aquilo era falta de respeito e pretendia me educar”.
Num outro desenvolvimento, Paula contou ao @Verdade que até hoje não percebe por que razão o seu consorte fez aquilo. “Ele sempre insultava- -me, agredia-me forte e feio”, mas nesse dia “bateu-me como se eu fosse uma ladra desconhecida. Para além de estar cheias de cicatrizes no corpo, ele partiu-me o braço, como doutra vez que lhe neguei sexo porque estava de período menstrual. Quando a temperatura baixa passo mal de dores intensas”.
“Eu acabava de sair de banho e ele começou a bater-me (...) na presença dos miúdos como sempre fazia, principalmente quando estivesse bêbado. Corri para uma casa vizinha sem roupa e ele seguiu-me. Bateu- -se em frente de muita gente e só me deixou quando percebeu que já não respirava” devidamente.
As sessões de pancadaria relatadas pela nossa entrevistada eram sempre acompanhadas pelos cunhados e sogros mas estes diziam para a vítima que não existe um lar sem problemas, por isso, era necessário ter paciência. “A minha sogra perguntou-me, um dia, se conhecia um lar em que os maridos nunca batiam nas suas esposas ou que tudo corria bem”.
Com esse golpe psicológico imposto pela sogra, Paula resignou- se e carregou o fardo do seu próprio sofrimento. Mas no dia em que levou porrada por causa de 200 meticais decidiu dar um basta. “Sai da casa dele sem despedir e voltei para a casa dos meus pais. Ele quis que reatássemos mas eu disse a ele que se me incomodasse iria lhe denunciar na Polícia, o que nunca fiz porque sempre pensei nos meus filhos, que não merecem ter o pai preso (...)”.
“Só eu sei o que passei e nenhuma mulher merece isso”
Esmeralda Cossa, de 28 anos de idade, é mãe de duas miúdas, sendo uma de 10 e outra de cinco anos de idade. Ela vive na localidade de Gueguegue, no distrito de Boane, província de Maputo.
Curta e grossa, a jovem desabafou nos seguintes termos “eu tenho pavor dos dias em que não tinha o que cozinhar para as minhas filhas e era obrigada a pedir comida nos vizinhos. quando ele não tivessem o que me dar, ficávamos com a nossa fome. Por vezes, não era porque não havia dinheiro, o meu ex-marido gatava na bebedeira e com outras mulheres. Quando me queixava diziam que devia aguentar. A minha família também falava a mesma coisa. Aguentei e até que um dia eu disse chega porque senão voltaria à casa num caixão”.
A dado momento da entrevista, Esmeralda fechou os olhos por alguns segundos, cerrou os punhos e não pôde conter as lágrimas. “Hoje não posso sorrir porque me faltam alguns dentes. Eu gostaria que ele [o ex-marido] fosse, por um dia, mulher e algum homem fizesse só um pouco daquilo que me fez durante muitos anos. Só eu sei o que passei e acho que nenhuma mulher merece passar por isso”.
Ela soluçou de tal forma que foi acometida por uma dificuldade de respiração, acompanhada de uma sensação de mal-estar. A entrevista acabou ali.
Atrofiada e privada dos seus direitos
Marta Estêvão tem 43 anos de idade e vive também no distrito da Manhiça, concretamente na localidade de Maluana. Apesar da sua pouca idade, as rugas já começam a lhe roubar a juventude devido ao sofrimento decorrente da violência doméstica.
Ela disse-nos que quase sempre viveu com uma espinha travessada na garganta, porque não percebe por que motivo o seu marido a agride de todas as formas abomináveis.
“No princípio, nós tínhamos uma relação muito saudável. Tínhamos discussões que terminavam com uma simples conversa até que um dia ele me agrediu porque perguntei qual era o motivo de ele demorar chegar em casa”.
A partir daí, Marta passou a ser violentada de forma recorrente e assumiu isso como normal. Os anos passaram e, certa vez, o marido deferiu duros golpes contra ela, enquanto estava grávida. “Não me esqueço desse dia porque desmaiei e quando acordei sofria de paralisia numa das pernas. Achei que não voltaria mais andar”.
Ao contrário das nossas outras entrevistadas, Marta nunca encontrou uma forma de dar um basta à humilhação a que está exposta, pese embora assuma que esteja no limite da sua paciência.
A razão para estar à prova desse sofrimento, segundo a interpretação que o @Verdade faz da sua explicação, é que não dispõe de meios para subsistir e o seu marido é que suposta as despesas da casa, daí que ela tem quase todos os seus direitos hipotecados na dependência pelo esposo. “O meu marido é que sustenta a casa e eu sozinha não sei como posso sobreviver porque não faço nada que dê dinheiro. Ele nunca permitiu para eu trabalhar nem estudar”.
Além disso, à semelhança da Paula e Esmeralda, a família da Marta diz sempre para ela aguentar, pois “não existe nenhum lar perfeito”.
Marta, nas condições em que vive, é apenas um exemplo à margem do discurso segundo o qual é preciso combater, severamente, o machismo com vista a libertar as mulheres e as crianças do sofrimento a que estão submetidas, devido à violência doméstica, um o fenómeno latente nas famílias e que subiste como algo normal.
“Hoje é normal ver um homem agredido pela própria mulher”
Albano Cumbane, de 68 anos de idade, vive na vila de Marracuene, província de Maputo. Ele não se recorda de ter, alguma vez levantado a mão contra a sua esposa nem esta contra si, mas contou-nos o que classifica de verdadeiros dramas que já presenciou e confessa que alguns, recentes, aconteceram na sua família.
O nosso interlocutor afirmou que cresceu a saber que “esmurrar e pontapear” eram actos próprios dos homens que não conseguiam se fazer valer ou impor as suas opiniões através de palavras. Todavia, “as coisas mudaram e já temos mulheres que também são lobos em pele de cordeiro”.
“É normal um casal desentender- se por alguma razão mas nada que justifique a violência (...). O que eu já assisti por aí até hoje deixa os meus cabelos em pé. Um dos casos mais arrepiantes que já testemunhei”, protagonizado por um homem, este espectou “uma faca na cabeça da própria mulher porque achava que ela amantizava. A senhora sobreviveu mas fala com dificuldades”.
Segundo Albano, em Junho deste ano, a sua nora, cansada de levar porrada, também enfiou uma faca no abdómen do marido e alegou legítima defesa. “Como pai aquilo doeu-me a ainda dói-me mas ao mesmo tempo digo que ela estava saturada. Não apoio a violência mas acho que as mulheres já apanharam demais dos seus maridos e estão retaliar”.
O ancião disse ainda que, actualmente, é normal ver um homem agredido pela própria mulher ou esta pelo parceiro porque as famílias conviveram e convivem com mal naturalmente e só se queixam dele quando atinge proporções alarmantes.
“Eu que te falo nunca me dirige à esquadra para expor o que assistia na minha casa ou noutra porque sempre tive a esperança de que o casal vai se acertar. Cresci numa família em que as discussões de um casal terminavam em casa e fui ensinado que nenhum lar é abençoado”, admitiu Albano, acrescentando que a solução para a violência doméstica “está nas próprias famílias, que devem começar a encarrar” a situação como um problema que desestrutura os lares aos poucos e, na pior das hipóteses, acaba em homicídio.
Os números que não (des) mentem
De Janeiro a Setembro do ano passado, o país registou 19.092 casos de violência doméstica. Em igual período deste ano, o número passou 20.037, sendo 11.273 ocorrências consideradas crimes e 7.272 de natureza civil, ou seja, que à luz da lei não constituem delito algum. Tal é o caso de divórcios, prestação de alimentos, entre outros.
Estes dados foram revelados ao @Verdade por Joaquim Nhampoca, da Repartição de Estatística, Estudo e Difusão, no Comando-Geral da Polícia da República de Moçambique (PRM).
De acordo com ele, a repartição que dirige faz parte do Departamento de Atendimento à Família e Menores Vítima de Violência (DAFMVV), na mesma instituição que tem como função garantir a segurança e a ordem públicas e combater infracções à lei.
O nosso entrevistado chama atenção para o facto de a violência contra o sexo feminino e os petizes ser ainda bastante alta. Dos 20.037 casos a que ele se referiu, pelo menos 10.304 vítimas foram só mulheres, 7.075 crianças e 2.658 homens.
“Os casos especificamente de violência doméstica, de acordo com o Código Penal, foram 10.049”. Destes, 276 contra crianças, 9.536 contra adultos e 237 idosos”, disse Joaquim Nhampoca, sublinhando que, de há tempos a esta parte, existem muitos anciãos submetidos à “violência, psicológica e patrimonial”.
Ainda nos últimos nove meses deste ano, houve 900 casos de violência sexual, dos quais 277 contra petizes. A cidade e província de Maputo, Inhambane, Sofala e Nampula são as que registam maior número.
Joaquim Nhampoca voltou a debruçar sobre este fenómeno, ma com enfoque no abuso sexual, que na sua opinião é outro tipo de violência doméstica que “dá a dar dores de cabeça”. Tendem a ocorrer situações de estupro envolvendo menores de 12 anos de idade, ou seja, de três a seis meses e um ano de vida”, cometidas por pessoas adultas e próximas das vítimas. “Algumas casos resultam em morte e semanalmente, temos, em média, em todo o pais, cinco a seis casos” destes.
Nhampoca avançou que a superstição tem sido uma das causas, pois existem indivíduos que acham que mantendo cópula forçada com uma criança ajuda a curar algumas doenças ou obter riqueza e o grosso dos violadores cometem este crime após o consumo de álcool” ou outro tipo de droga.
O nosso entrevistado disse que os números por ele apresentados indicam que a mulher ainda constitui a maioria esmagadora que sujeita a mais variada estirpe de violência, cujas causas preenchem uma extensa lista. Entre elas constam, o ciúme, o consumo do álcool e de outras drogas, o desentendimento entre a vítima e o agressor a acusação de feitiçaria.
Ainda sobre o abuso sexual, a directora nacional adjunta de Assistência Médica, no Ministério da Saúde (MISAU), Luísa Panguene, teceu uma opinião contrária a de Nhampoca, ao considerar que a violência sexual existe em menor número.
Ela não arriscou em avançar número algum a respeito disso. Contudo, segundo explicou, o tratamento de casos de estupro “é mais delicado, porque, lamentavelmente, limita muito o seu diagnóstico, encaminhamento e tratamento e combate (...)”.
Há família que ainda convivem com este mal de forma natural devido a vários motivos, dos quais a vergonha da exposição pública. Em casos mais gritantes, certas pessoas mantêm-se em silêncio em troca de favores tais como dinheiro.
O problematiza de estatísticas sobre violência doméstica
Contudo, Conceição Osório, socióloga e pesquisadora da Mulher e Lei na África Austral (WLSA, sigla em português) e uma das co-autoras do livro “Entre a denúncia e o silêncio. Análise da aplicação da Lei contra a Violência Doméstica (2009-2015)”, questionam as estatísticas que têm sido disponibilizadas pelas instituições do Estado e as considera incongruentes.
De acordo com ela, existe o que chama de “completo desnível e desencontro” da informação colhida e disponibilizada por diferentes sectores que lidam com o problema em alusão. “Até princípios do ano passado, tínhamos cerca de 30 mil casos de violência doméstica em todo o país, mas quando chegamos às procuradorias e aos tribunais distritais o número desceu em 90%. (...)”.
Longe de pretender descredibilizar a informação fornecida pelas autoridades, a nossa entrevistada recorreu a alguns exemplos para fundamentar a ideia de que a produção de estatística sobre a violência doméstica precisa de ser melhorada.
“Nós tínhamos, entre 2010 e 2014, na província de Sofala, 9.048 casos de violência doméstica [arrolados pela Polícia]. Deste número, a Procuradoria Provincial só tinha registado apenas 228 casos. Onde estão as outras ocorrências, porque se a violência doméstica é um crime público ele tem de estar registado nalgum lado”.
Na falta de repostas à sua pergunta, a socióloga concluiu que, durante a recolha de dados, não existe um padrão de aferição do problema em debate, em termos numéricos, por isso, “o que nos parece é que estes números não batem uns com os outros (...). Hoje, não temos estatísticas fiáveis sobre a violência doméstica e não há muita sensibilidade para registar bem os crimes” desta natureza.
Para a pesquisadora não se sabe o número real de vítimas que denunciam nem sequer se o tipo de violência que nos é dado a conhecer é mesmo o que existe em maior número no país.
Aliás, Instituto Nacional de Estatística (INE) tem variáveis e indicadores que “a nosso ver deveriam ser outros. Achamos, por exemplo, que a idade da vítima, a ocupação do agressor, a relação entre a vítima e o agressor” deviam ser seriamente levados em conta.
Lei sobre Violência Doméstica carece de revisão
Conceição Osório disse que está em marcha um movimento com vista à revisão da Lei número 29/2009, sobre Violência Doméstica contra a Mulher. De acordo com a sua explicação o artigo de salvaguarda da família vai contra o espírito da própria lei e não só desvirtua a sua aplicação no que tange às medidas cautelares, como também não preceituadas de forma clara no mesmo dispositivo.
Para além de pretender ver elencada numa nova lei a obrigatoriedade de se evitar a aproximação entre o agressor e a vítima, assegurar que a denúncia de casos de violência doméstica – sendo um crime público – seja feita igualmente pelos agentes de saúde, as modificações requeridas à luz do mesmo dispositivo visam clarificar como e quando é que serão executadas as medidas cautelares.
Conceição disse que que todas as instituições públicas e privas “conhecem melhor ou pior os princípios” daquela norma, concordam que deve ser revista” e todos admitem que a violência doméstica é um crime que merece ser “denunciado, analisado e tratado”, mas isso não basta.
As mexidas irão incidir sobremaneira nos artigos 36 e 37, disse a socióloga.
A negação da mancipação da mulher
De acordo com Joaquim Nhampoca, a intolerância é cada vez mais maior nas famílias. O exercício de poder e a dominação masculina sobre a mulher é que está na origem de tudo de mal que é violência. Alguns homens encaram determinados comportamentos das suas mulheres como desvios de padrões culturalmente aceites.
“A busca da emancipação pela mulher, num ambiente onde reina a masculinidade ou o machismo, para o homem constitui uma afronta. O homem não quer aceitar que as dinâmicas sociais existem e evoluem”, por isso, “a mulher é vista como submissa e inferior (...)”.
Segundo Nhampoca, as vítimas que por muito tempo aceitaram a violência doméstica e conviveram com ela nos seus lares, têm dito que tentaram, ao nível das suas famílias e vizinhanças, resolver o problema mas o conselho que sempre recebiam era de que “é preciso suportar porque a vida é assim mesmo”.
“Tolera-se a violência e é negociada na família” no sentido de ela terminar aí, “pese embora seja um crime público. Muitas vezes, as plataformas encontradas para amortecer a violência para que não seja denunciada e seja tratada como um caso social dentro da família”, têm em vista abafar o caso, fragilizando mentalmente a mulher, comentou o entrevistado do @Verdade, exemplificando que, para as mulheres casadas e com filhos, “a sociedade relaciona a denúncia com a detenção ou prisão”.
À mulher dito que se o homem vai à cadeia, ela e os filhos não terão quem os sustente. Por isso, a dependência financeira das mulheres em relação aos seus parceiros faz com que elas permaneçam numa relação violenta (...).
Nhampoca disse ainda que a subalternização e instrumentalização dessa mulher não cessa aí. A ela é feito perceber que em caso de queixa contra o parceiro agressor, as represálias irão recair sobre ela.
“E onde existe uma mulher violentada, há uma criança que também é vítima. Algumas crianças maltratadas pelas próprias mãe são vítimas da saturação de mulheres que expostas à violência doméstica pelos próprios maridos e elas descarregam a sua fúria no elo mais fraco”.
Na perspectiva de Conceição Osório, a violência doméstica, sendo um crime público, deve ser exemplarmente sancionada, uma vez que fere amplamente os princípios de direitos humanos.
Uma das causas é que ela assenta nas relações desiguais entre um homem e uma mulher. A sociedade sempre educou e ensinou a mulher a para aceitar que o chefe da família é o homem. “É assim em todas as sociedades”, mas não se pode educá-la para papéis complementares ou subordinados ao homem, mas sim, “ao mesmo nível de hierarquia”.
Na óptica de Conceição, os homens acham também que as mulheres não estão a cumprir com os seus papéis sociais e, não poucas vezes, enveredam pela agressão física, porque aprenderam que isso é uma forma correcta de impor ordem.
Neste contexto, a violência doméstica é difícil de ser combatida porque “ocorre no mundo privado”. Uma mulher só se dirige à Polícia para denunciar que é vítima de violência doméstica depois de passar por um grande ciclo de sofrimento.
“Eu não acho que os casos de violência doméstica estejam a diminuir. Isso poderia indicar que a luta contra este mal esteja a ser vencida. Pode ser que os casos estejam a ser mal tratados (...). Ou será que as pessoas estão desanimadas com as instituições por causa da maneira como lidam com a violência doméstica?”, interrogou a Conceição.
A psicóloga Brígida Nhamtumbo também alinhou no diapasão de Conceição, declarar que a estatística sobre o fenómeno em alusão não passa disso: “são números, há muita gente que não denuncia a violência porque não acredita na justiça (...)”.
A violência atrofia o desenvolvimento das vítimas
Brígida Nhamtumbo entende que a violência doméstica é uma prática transmitida de geração em geração, não em vários países africanos. Determinadas famílias tratam o assunto como normal, “o que é errado”, e justificam isso culturalmente.
Ela sugere que se examine a conjuntura sócio-cultural dos cidadãos e seja também analisada a construção que eles fazem da violência. “Temos mais números de violência física mas não é a única: a violência psicológica é a menos falada e poder ser a que mais mata. As vítimas carregam este mal invisível por um tempo”.
Brígida disse que como psicóloga condena tudo o que é violência porque atrofia o desenvolvimento” das vítimas. Paralelamente a isso, é necessário que se preste atenção nas crianças em situação de abandono ou negligenciadas, mormente nos centros urbano, pois elas são a talvez a parte mais sofrida deste problema.
“Algumas pessoas que cometem a violência é porque têm uma parte de si morta devido à longa exposição a esse mal. A nossa sociedade é de alguma maneira tolerante à violência e isso tem muito a ver com a construção social a que os indivíduos são expostos”, explicou a fonte acrescentando que quando se “ensina a mulher a ser obediente e submissa diante do seu marido, estamos a prepará-la a ter mais características de vítima e o seu marido agressor, mas sem nos apercebermos”.
Muita gente não percebe os impactos nefastos da violência doméstica porque não está consciencializada, por isso, “queixam-se às autoridades policiais, por exemplo, e em seguida retiram a queixa”.
“Temos uma sociedade doente”
A directora nacional adjunta de Assistência Médica, no Ministério da Saúde (MISAU), Luísa Panguene, corrobora com a psicóloga Brígida no aspecto segundo o qual a violência mais visível é a física, porém, a psicológica provavelmente seja em maior número. Ela não é reportada e a própria vítima não reconhece que está a ser sujeita a ela porque é difícil de diagnosticar, incluindo pelos técnicos de saúde.
Contudo, de há anos a esta parte, há cada vez mais gente a denunciar o problema, daí que as unidades atendem mais gente, o que na sua opinião pode não significar o aumento de casos, mas sim, da consciência sobre a necessidade de romper com o silêncio.
“A violência como um todo é um problema cultural e transcende um pouco o nosso o nosso entendimento a curto prazo. Era normal, nas sociedades antigas”, em que a mulher consentia ser espancada pelo marido sob o pretexto de que tal acção era sinal de amor.
A par do que Nhampoca expôs acima, Luísa Panguene disse que não pode haver dúvidas de que uma mulher violentada está mais susceptível a reproduzir os efeitos negativos disso nos seus filhos.
Ademais a vítima não está, por exemplo, em condições de negociar a sua actividade sexual e tem menos liberdade para o efeito. Ela torna-se uma pessoa instável, o que pode comprometer toda a estrutura familiar, enveredar pelo consumo do álcool e outras drogas pesadas e menos habilidade ou capacidade para educar os seus filhos, bem como perde o foco facilmente no trabalho.
No que tange à degradação de valores, que supostamente estão na origem da tamanha selvajaria na sociedade, a directora nacional adjunta de Assistência Médica, no MISAU) disse que, antigamente, era impensável um pai dirigir-se a escola para pagar a um professor no sentido de o seu filho passar de classe, o que hoje é uma prática que se multiplica.
“Era completamente impensável que uma mãe podia sentar no meio da rua, com as suas crianças, a pedir esmola, mas hoje isto acontece. Era completamente impensável que um filho podia bater no seu pai ou na sua mãe. Mas isso carece de estudos sociológicos e sócio-antropológicos para entendermos este fenómeno. A nossa sociedade “não é habitual. Que está doente, é verdade”. Era completamente impensável que um pai podia abusar sexualmente da sua própria filha, ou que um filho podia matar o próprio pai. “Isto denota uma sociedade doente”.
A sociedade tolera violência
Judite Sambo, responsável pela Direcção de Assuntos Transversais, Departamento de Género, no Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH), acredita que o facto de algumas mulheres dependerem economicamente dos maridos é um factor de exposição à violência doméstica.
Na sua análise, por causa da globalização as sociedades estão sob efeito de vários fenómenos que outrora não eram esperados e Moçambique não é excepção.
“Agora que estamos mais em contacto com o mundo percebemos que alguma coisa não vai bem” e há muita situações que estão longe alcance do entendimento comum e carecem de estudos até para as “entidades que produzem normas. A cada dia que passa a sociedade evolui” e algumas famílias não acompanham positivamente essas metamorfoses.
Para reprimir a violência doméstica, o MINEDH articula com os conselhos de escola, que funcionam como “vigilantes” desta instituição que lida com a instrução no país.
A instituição tem estado produzir manuais para os professores, através dos quais são dadas instruções sobre como identificar os sinais de violências doméstica nos alunos. “Por mais que tenhamos instrumentos legais para punir a violência doméstica”, é preciso que as famílias se coíbam de perpetuar este mal porque não só preocupa o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, como também apoquenta toda a sociedade, disse Judite Sambo.
O fenómeno carece de estudo profundo
O antropólogo Carlos Botão, afecto ao Instituto Nacional de Saúde (INS), no MISAU, disse que a violência doméstica não é um problema recente na África Subsaariana, em particular em Moçambique. Existe há séculos e teve um novo cunho em função do desenvolvimento da própria sociedade.
Com o advento do liberalismo e da existência de organizações da sociedade civil que lutam pela igualdade de género no mundo, houve mais espaço para despertar consciências e exteriorizar a violência, com o intuito de passar a ideia de que ela é maliciosa.
Em alguns contextos machistas, a violência doméstica é entendida como questão de educação e obediência de homem para a mulher. “Se a mulher foi educada para obedecer o homem”, tudo o que ela fizer na para contrariar o homem é condenável e este para legitimar o seu poder masculino recorre à violência.
Carlos Botão endossou o que os interlocutores acima disseram e considerou que a intolerância pode estar por detrás dos maus-tratos que apoquentam muitas mulheres nos seus lares. E ele aconselha as pessoas a dialogarem mais e evitarem acumular magoas, porque se transformam numa bomba-relógio que explodir a qualquer altura.
De acordo com o antropólogo, o predomínio do pensamento de que “um homem tem de ser chefe e o pilar de família, seja em ideia ou actos” é também uma das formas de propagar a violência, pois quando o mesmo homem não sente esse poder plenamente exercido se sente vulgarizado.
Na sua alocução, o nosso entrevistado afirmou que, sendo Moçambique “um país com um mosaico cultural completamente diverso”, sugere que se estude, com pormenor, por que motivo a há uma percepção diferente sobre a “violência doméstica” em vários sítio de um mesmo território.
Nas palavras de Botão, pode ser difícil estancar a violência doméstica no actual contexto, em que em determinadas províncias – como as sul – a agressão física contra a mulher é considerada uma manifestação de amor, e noutras uma ofensa condenável.
Assim, a nossa fonte chamou atenção para que se tenha atenção com as crianças, pois elas são o reflexo daquilo que os pais são. Colocá-las a testemunhar episódios de pancadaria pode ser pernicioso no futuro, pois elas reproduzir isso na fase adulta.
Calar para proteger o próprio ofensor
Catija Abubacar, técnica profissional de Acção Social, no Ministério do Género, Criança e Acção Social (MGCAS), lida diariamente com diferentes vítimas de violência doméstica, na sua maioria do sexo feminino.
“Elas são mulheres dependentes dos maridos” e que se sujeitam ao mal para preservar o lar. Algumas delas “recusam- se a queixar às autoridades policiais porque temem que os maridos sejam presos”, porque se ventura isso acontecer a sua condição de carência pode agravar. “Para além de aspectos culturais, a pobreza também faz com que algumas mulheres aceitem a violência”.
“Explicamos a elas que queixar” ou solicitar a instauração de um processo-crime não significa necessariamente mandar os ofensores aos calabouços, mas sim, exigir que haja justiça. Porém, nem sempre o apelo tem sido recebido positivamente e as vítimas consentem que os seus agressores fiquem impunes e convivam com elas aptos para lhes subjugar novamente.
Por causa desse aparente conformismo por parte das vítimas, a preocupação do MGCAS “é perceber na base o que é que estará por detrás dessa violência”. Catija explicou que não faz sentido que, apesar de todo movimento de campanhas de sensibilização, ainda haja tanta gente que envereda pela subjugação dos seus próximos ou parceiros.
Entretanto, “nas nossas sessões de atendimento, notamos que algumas mulheres ou alguns homens são violentados devido à ausência do diálogo e há muitas intolerância entre eles” de tal sorte que qualquer troca de mimos ou desinteligência acaba em agressão física ou outro tipo de humilhação.
Tal como Luísa Panguene, Catija Abubacar defendeu igualmente que a violência doméstica deve ser terminantemente reprimida porque desestrutura as famílias e exigiu que os agressores sejam alvos de medidas severas, bem como haja um trabalho junto das famílias que assumem a violência como uma prática normal.
A entrevistada falou da experiência dos Centros de Atendimentos Integrado às Vítimas de Violência (CAIVV), que vieram reduzir o sofrimento a que as vítimas de violências estavam expostas. Nos moldes dos actuais centros, as vítimas têm todo o atendimento – desde o médico ao jurídico – no mesmo lugar.
A finalizar, Catija considerou também que o problema em discussão carece de estudos profundos, na medida em que a sociedade evolui constantemente e os fenómenos sociais também”.
Esta reportagem foi realizada com o financiamento da Fundação Friedrich Ebert (FES), em parceria com o MISA Moçambique.
Fonte: Jornal A Verdade, Moçambique
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