A morte de Belmiro de Azevedo, porventura o maior empresário português pelo menos dos últimos 50 anos, deixa um vazio que só a sua imensa herança ajuda a preencher. E quando falamos de herança não falamos apenas das empresas que deixa, do grupo que criou e ajudou a tornar Portugal um país mais moderno e aberto – falamos igualmente das suas lições de vida e de uma forma de gerir e criar riqueza que passou não apenas a quem lhe sucedeu à frente do conglomerado, mas espalhou pelo tecido empresarial por onde se disseminaram muitos quadros formados na Sonae. De tudo isso e muito mais se falou em toda a comunicação social nas últimas 24 horas, em dezenas e dezenas de artigos que procuraram tratar todas as facetas do empresário, recordar a sua vida e sublinhar a sua excepcionalidade. (No Observador tudo o que publicámos está aqui reunido, mas já destacarei o mais relevante.)
Comecemos pelos obituários, isto é, pelos textos mais centrados na descrição do que foi a sua vida:
- O homem que viveu a fazer até ao fim, de Manuel Carvalho, no Público: “O seu legado concreto mede-se facilmente no universo empresarial que criou. O seu exemplo como gestor permanece alvo de devoções. Mas a voz dura do empresário inconformado, exigente e rebelde parece ter-se perdido.”
- O homem que soube ganhar com as derrotas, de João Cândido da Silva no Observador: “Construiu um dos principais grupos económicos portugueses do regime democrático e uma fortuna pessoal que figurou entre as maiores do Mundo. Sofreu revezes, mas soube ganhar com os fracassos.”
- O empresário que soube deixar de estar, de Alexandra Machado no Jornal de Negócios: “Até disse que a única extravagância que tinha era comprar um carro caro de 14 em 14 anos. Ironizava. Desafiou e gostava de ser desafiado. Não se calava. E dizia o que queria e o que pensava. Doesse a quem doesse. Teve como missão deixar uma empresa com longevidade e bem preparada para o futuro.”
- “Tenho fama de rico, comportamento de pobre. Estou bem assim”, de Margarida Cardoso, no Expresso: “Qual é o empresário português que recusa uma carreira política porque gosta de "decidir depressa e poderia ter problemas de excesso de velocidade" ou veta Marques Mendes até para porteiro da Sonae? Belmiro de Azevedo, ou Belmiro Mete Medo, o boneco que ele inspirou na série televisiva Contra-Informação”.
- Morreu o homem com “fama de rico, comportamento de pobre”, de Rafaela Burd Relvas, no jornal online Eco: “Como lembrou o próprio, no discurso da cerimónia dos seus 50 anos na Sonae, a sua primeira tarefa na empresa foi “destruir para voltar a construir”. Foi a chamada “destruição criativa”.
Não por acaso, e já que o empresário tinha fama e proveito de falar abertamente, porventura sem pesar as palavras, sempre com enorme frontalidade, há várias colectâneas de citações que valem a pena ser lidas para, de imediato, sentirmos saudade de quem fez sempre questão de dizer o que pensava neste país de muito “respeitinho”: “A diferença entre o nascer e morrer é um fatinho e um par de sapatos” (a selecção do Observador); “Trabalhar não mata, estar quieto é que provoca obesidade.” O antigo patrão da Sonae em 15 frases (Público); As frases emblemáticas de Belmiro de Azevedo (Jornal de Negócios); As frases dele que não esqueceremos (Expresso); e Reveja Belmiro a dizer as frases mais provocadoras (vídeo do Observador).
Indispensável é passar pelos textos de quem com ele lidou mais de perto, testemunhos que encontramos no Observador, no Público (naturalmente) e no Eco. O testemunho publicado no Observador é o meu e trata-se de um texto onde combino recordações pessoais com uma avaliação do que Belmiro de Azevedo representou em Portugal e a previsão de iremos sentir muito a sua falta. Em Duas ou três coisas que têm de ser ditas sobre Belmiro de Azevedo deixo um desafio sob a forma de uma pergunta (a que não respondo): “Quantos mais capitães da economia cultivam, como ele, o mesmo espírito independente, o mesmo desassombro, idêntica coragem, parecida frontalidade, são capazes desse exercício que devia ser tão normal como respirar que é dizer alto o que realmente pensam? A resposta, como sabem, é arrepiante. Mas é uma resposta que diz muito sobre o nosso atraso como país.”
De entre os outros testemunhos destaco dois no Público, o de Vicente Jorge Silva, o primeiro director – Não foi apenas uma “peninha no chapéu”: “a aventura do Público foi muito mais do que isso para Belmiro, essa “peninha” de vaidade por ser dono do jornal diário de referência mais influente e respeitado do país” – e o de Nuno Pacheco, quem mais tempo esteve na direcção do jornal - Essencial e frontal, nas rosas e nos espinhos: “Se há homenagem que lhe deve ser feita, por quem esteve do lado do grupo de jornalistas que com ele deu vida ao Público, ela assenta no reconhecimento de que ele foi capaz, honrando a sua palavra, de manter um jornal independente quando tantos fazem precisamente o contrário.”
Finalmente, pela sua originalidade desempoeirada, refiro também o testemunho da jornalista do Eco Elisabete Felismino – O dia em que conheci o Sr. Engenheiro: “Numa apresentação de contas da Sonae, enchi-me de coragem e, no final, fui diretamente falar com o Engenheiro. Ele estava acompanhado, interrompi e disse-lhe: "O Sr. Engenheiro é uma fraude".
Houve também muitos textos de opinião e alguns editoriais. Alguns destaques:
- Belmiro, o Homem Sonae, o homem das nuvens, de Pedro Santos Guerreiro, no Expresso, um texto elaborado em torno dos 10 “mandamentos” do Homem Sonae, o lendário conjunto de regras estabelecido pelo engenheiro em 1985, quando ainda poucos tinham ouvido falar dele. Eis uma passagem: “Eles são a imagem de Belmiro de Azevedo para ele mesmo e por ele mesmo: uma ética de trabalho, de vida e de negócios. Belmiro tem sucessor mas não tem substituto. No génio, mas também na capacidade de afrontar poderes instituídos, com rasgos de humor e de ironia como quando marcou uma presença no Parlamento, não no dia em que os deputados o queriam lá (disse que tinha mais do que fazer), mas apenas no dia seguinte às oito da manhã, para obrigá-los a levantarem-se cedo.”
- O homem que ganhou mesmo quando perdeu, de António Costa no jornal online Eco: “Importante foi o que deixou, a cultura de independência, sobretudo em relação a um poder político que, salvo raras exceções, nunca respeitou. Belmiro não admitia incompetência, menos ainda a cultura de dependência em relação os políticos que nunca tiveram que pagar salários e decidiam a vida das empresas e, tantas vezes, o seu futuro.”
- Belmiro e a elite, de André Veríssimo no Jornal de Negócios: “Numa sociedade habituada à cunha, a Sonae impôs a lei do mérito. O facto de até os filhos terem tido de provar as suas capacidades para herdar o leme ficará na lenda. (...) A possibilidade de uma elite que não nasce, vive e sobrevive à sombra do Estado é um dos maiores legados que Belmiro nos deixa.”
(A propósito da oposição dos comunistas ao voto de pesar da Assembleia da República gravei também um pequeno comentário em vídeo, O problema do PCP com Belmiro de Azevedo.)
Deixei para o fim deste apanhado um texto do próprio Belmiro de Azevedo que me diz muito, um dos raros textos que publicou no jornal de que era dono. Chama-se simplesmente No 20.º aniversário do PÚBLICO e saiu a 5 de Março de 2010, numa altura em que eu próprio tinha deixado a direcção do jornal há poucos meses. Nele escreveu que já vivera “o suficiente para perceber que o poder, em geral, aceita com dificuldade a crítica, a denúncia e a irreverência”, sublinhando logo a seguir que “quando se discute em Portugal o condicionamento dos meios de comunicação social [vivíamos o consulado de José Sócrates] e o valor da independência, eu ofereço à opinião pública o mérito das histórias da Sonae e do Público: histórias de sucesso, é certo, mas recheadas de muitos episódios de retaliação e de boicote políticos.” Apesar de tudo isso, ou por tudo isso, Belmiro concluía depois que o Público continuava “a ser um enorme motivo de orgulho para a Sonae, como produto e como marca. As suas características fundacionais – o rigor, a qualidade e a independência – continuam cada vez mais vivas, e o entusiasmo dos que nele trabalham não é seguramente menor que o dos fundadores. De resto, o José Manuel Fernandes representa bem esse espírito: foi fundador, foi director e é hoje colunista – o lugar que ele próprio escolheu”.
Só deixei de ser colunista quando me lancei noutra aventura, esta do Observador. Com o mesmo espírito, a mesma independência e a mesma liberdade, mas outros protagonistas e outros accionistas. Também por isso lhe estou grato pelo que aprendi em todos aqueles anos que com ele trabalhei, e pelas palavras que me dedicou naquele que, julgo, foi também o último texto que escreveu no jornal que sempre soube defender de todas as ameaças.
Ficaria por aqui se não sentisse necessidade de chamar a vossa atenção para um trabalho raro de investigação jornalística do Observador. Publicámo-lo pouco antes de ser conhecida a morte de Belmiro de Azevedo, e por isso terá passado injustamente despercebido. Trata-se de um conjunto de cinco especiais da Marlene Carriço e da Tânia Pereirinha que foram descobrir que comida se serve e se come nas nossas escolas públicas. O que relatam é de arrepiar – e permite perceber como surgem os relatos das lagartas nas sopas ou do frango servido cru. O trabalho principal é Investigação. O que está a falhar nas cantinas?, complementado por uma impressionante recolha de testemunhos, "Se a nós custa comer, o que fará às criancinhas?", e por dados que permitem perceber melhor a situação: O que é que o Estado exige às empresas?; Alimentação escolar. Quanto vale este negócio? e Os números que ajudam a entender a polémica. Um soco no estâmago, literalmente.
E por esta semana é tudo. Despeço-me com votos de um bom fim-de-semana, para mais alargado. Aproveitem para descansar e, protegidos do frio que se anuncia, para ler. As minhas sugestões já sabem quais são.
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