Foi o tema do ano nos Estados Unidos, está a tornar-se a discussão do momento um pouco por todo o mundo. Sob a hashtag #MeToo dezenas, porventura centenas de mulheres famosas começaram a perder o medo e a denunciar agressões sexuais de que tinham sido vítimas ao longo da sua carreira. Casos houve em que homens de imenso poder, especialmente em Hollywood, caíram dos pedestais a que se tinham içado, mas casos houve onde a dúvida se instalou. O mais recente de todos envolveu o comediante Aziz Ansari e uma fotógrafa que só conhecemos por um pseudónimo, Grace. No site babe.net ela contou como tudo teria corrido mal entre os dois, mas o mínimo que se pode dizer é que não convenceu toda a gente (o texto da Babe é este: I went on a date with Aziz Ansari. It turned into the worst night of my life).
Na sua coluna desta quinta-feira no Público João Miguel Tavares – Mau sexo e assédio sexual – relata o caso em poucas palavras e defende que “Sendo o sexo o mais movediço dos terrenos, era inevitável que alguém acabasse por transpor a linha que separa a denúncia justa e necessária da denúncia imbecil e gratuita”. Deixa mesmo uma sugestão sobre onde podíamos traçar esta linha: “Eu sugeria, para ajudar, que estabelecêssemos esta regra universal: se persistem dúvidas de que tenha sido uma agressão sexual, é porque não foi uma agressão sexual. Se eu levar um soco, não faço um pow-wow para saber o que me aconteceu. Se uma mulher for sexualmente agredida, não é costume ter dúvidas sobre isso.”
Como se imagina há muito mais que se diga e esta referência portuguesa serve apenas para introduzir um debate que tem muitas facetas, sobretudo desde que se quebrou a inicial unanimidade solidária com quem se apresentava como vítima de agressão sexual. Por exemplo, e continuando a falar deste caso, Mona Charen, numa crónica na conservadora Nacional Review, MeToo: Women Rebel against the Sexual Revolution, ataca a ideia de que estamos somente perante um caso de mau sexo: “Those who chide Grace that her experience was just “bad sex” are missing the point. It wasn’t that the sex was bad — though it was — it was that the date was only about sex, and she had hoped for more. In this, I think Grace speaks for many, many women and also some men.”
O argumento deste texto vai naturalmente mais longe, pois este caso serve como ponto de partida para discutir um tema que, em Portugal, já tem vindo a ser abordado por Henrique Raposo no Expresso e na Rádio Renascença: a relação entre estes casos e a revolução sexual dos anos 1960. Leia-se, por exemplo, uma crónica que publicou na Renascença já no passado mês de Novembro, Assédio: já podemos criticar a “revolução sexual”?, onde defende que “No Maio de 68 e afins, a predação sexual foi legitimada pela retórica da “revolução sexual”, porque estava tudo bem desde que houvesse transgressão.”
Mas a eventual controvérsia desta tese nada é ao lado da tempestade levantada pela carta aberta assinada por 100 mulheres, entre as quais Catherine Deneuve, no diário francês Le Monde: « Nous défendons une liberté d’importuner, indispensable à la liberté sexuelle » (vale a pena ler a versão integral para evitar as simplificações de alguma imprensa). Eis duas passagens relevantes deste manifesto, sendo de notar que um dos argumentos deste grupo de mulheres é que é necessário combater os excessos do movimento #MeToo precisamente para preservar o que consideram serem as conquistas da revolução sexual de há meio século:
- De même, nous défendons une liberté d’importuner, indispensable à la liberté sexuelle. Nous sommes aujourd’hui suffisamment averties pour admettre que la pulsion sexuelle est par nature offensive et sauvage, mais nous sommes aussi suffisamment clairvoyantes pour ne pas confondre drague maladroite et agression sexuelle.
- En tant que femmes, nous ne nous reconnaissons pas dans ce féminisme qui, au-delà de la dénonciation des abus de pouvoir, prend le visage d’une haine des hommes et de la sexualité. Nous pensons que la liberté de dire non à une proposition sexuelle ne va pas sans la liberté d’importuner.
A famosa atriz, já com mais de 70 anos, viu-se com este seu gesto no meio de um debate que a obrigou a voltar a terreiro para se defender, o que fez no Liberation em «Rien dans le texte ne prétend que le harcèlement a du bon». A par desta edição em francês aquele diário também publicou essa carta em inglês, sendo dessa tradução que reproduzo uma passagem significativa: “I do not like the mob mentality that is far too common today. This is why, as early as October, I had reservations about the Balance ton porc («Expose Your Pig») hashtag. I’m not naïve. I know that far more men exhibit these kinds of behaviors than women. But isn’t this hashtag an open invitation to naming and shaming? How can we be sure that there is no manipulation or vindictiveness? That the wrongly accused will not end up taking their lives?”
Mas será a posição daquele conjunto de mulheres um fenómeno tipicamente francês (Brigitte Bardot também já veio apoiá-las)? Sim e não, como já veremos. Mas antes de irmos à discussão fora das fronteiras de França, comecemos por olhar, como a ajuda do britânico Observer, para o que é hoje o feminismo no país de Joana d’Arc e Simone de Beauvoir. After the #MeToo backlash, an insider’s guide to French feminism é uma reportagem longa e interessante, na qual se revelam as várias abordagens existentes aos direitos das mulheres, algumas delas mais radicais do que outras. Por exemplo: “there is a rather recent American import of feminism, one that often comes across as opportunistic and “man-hating”, one that turns a blind eye to religious misogyny, for instance defending the wearing of the hijab. They present themselves as the new vanguard of French feminism, the new blood, except they can sound to some like Stalinist commissars, or Robespierre in culottes, passing edicts about what is acceptable conduct. We would be wrong, however, to think that the current debate shows a generational fight. Many millennials have signed the Deneuve letter. The divide is political, ideological even.”
Um bom exemplo da tensão existente entre feministas mais radicais e mulheres que se consideram feministas mas se distanciam das abordagens mais fundamentalistas é o debate que, no Canadá, obrigou a consagrada escritora Margaret Atwood a interrogar-se nas páginas do The Globe And Mail: Am I a bad feminist? Neste caso o que esteve em causa foi o seu distanciamento de uma campanha contra um professor, campanha essa que viria a provar-se ser injusta. O que aprendeu com essa experiência é que “In times of extremes … moderates in the middle are annihilated. Fiction writers are particularly suspect because they write about human beings, and people are morally ambiguous.” Isto porque “A fair-minded person would now withhold judgment as to guilt until the report and the evidence are available for us to see. We are grownups: We can make up our own minds, one way or the other. (...) My critics have not, because they have already made up their minds. Are these Good Feminists fair-minded people? If not, they are just feeding into the very old narrative that holds women to be incapable of fairness or of considered judgment, and they are giving the opponents of women yet another reason to deny them positions of decision-making in the world.”
O texto de Atwood é mesmo um dos que Brendan O'Neill refere em The #MeToo movement’s feminist dystopia, uma crónica na britânica Spectator onde se escreve, por exemplo, que “All of these dissenters — Deneuve, Neeson, Atwood and others — have been subjected to intense invective for daring to criticise #MeToo. This, too, is revealing. That those who merely question the #MeToo movement can be publicly denounced as apologists for rapacious behaviour — that is, as being in concert with the devil — further confirms that this supposed campaign for justice now grates against justice, and reason, and freedom. ‘Time’s Up’ is the name of the latest initiative of #MeToo’s leaders; let’s hope the time is up for vigilante feminism and the extrajudicial destruction of individuals.”
Na mesma linha se coloca David French na National Review, em There is a Profound Difference Between Justice and Identity Politics, um texto onde se defende que a luta contra o assédio sexual não pode transforma-se numa luta das mulheres contra os homens, mesmo os homens poderosos, porque a realidade é muito mais complexa: “Men face large-scale adversity as well. Men are more likely to be victims of violent crime than women. They’re more likely to be killed at work and at war. They have shorter lifespans. They are less likely to attend or graduate from college. They have much higher rates of suicide and illicit drug use. In other words, in multiple key areas of American life men as a group face greater adversity than women as a group.” O ponto central do artigo é, no entanto, que “Social movements go awry the instant they move from justice to identity politics. Movements like #MeToo are immensely valuable when they can lead to awareness and — crucially — accountability for the individuals who commit legal and moral wrongs. (...) Identity politics, however, exploits suffering for the sake of power.”
Posição bem diferente é a de Sophie Gilbert em No, #MeToo Isn't McCarthyism, um ensaio na The Atlantic onde já se procura responder precisamente ao criticismo das últimas semanas. Defende a autora que “No movement is, or ever has been, perfect. If there’s an impulse to overcorrect in some cases, it would be helpful if the people rushing to liken #MeToo to a sex panic could stop critiquing women (and men) supporting it for things they haven’t said or done. Rather than demonize what you imagine people might want, listen (or even better, ask). As Moira Donegan wrote, this moment isn’t about “a prescriptive dictation of acceptable sexual behaviors but the desire for a kinder, more respectful, and more equitable world.”
E quem é esta Moira Donegan? É a jornalista que, em Outubro passado, publicou online um documento interactivo onde quem quisesse podia acusar anonimamente homens que tivessem praticado agressões sexuais. O documento só esteve algumas horas online, as suficientes para que agora a autora da ideia tivesse tido necessidade de explicar as suas intenções num ensaio na The Cut: I Started the Media Men List. My name is Moira Donegan. É um texto bastante revelador e sem dúvida controverso, pois nele assume-se que a intensão da autora era mesmo recolher todas as acusações, incluindo rumores – “In October, I created a Google spreadsheet called “Shitty Media Men” that collected a range of rumors and allegations of sexual misconduct, much of it violent, by men in magazines and publishing.” –, algo que continua a considerar legítimo e necessário: “There were pitfalls. The document was indeed vulnerable to false accusations, a concern I took seriously. I added a disclaimer to the top of the spreadsheet: “This document is only a collection of misconduct allegations and rumors. Take everything with a grain of salt.” I sympathize with the desire to be careful, even as all available information suggests that false allegations are rare.”
De regresso à The Atlantic para ler Conor Friedersdorf que faz um levantamento relativamente exaustivo das diferentes posições e se argumenta favor de uma abordagem que permita evitar o tipo de controvérsias que desvirtuam e desqualificam o movimento de denúncia dos abusos sexuais. Em How #MeToo Can Probe Gray Areas With Less Backlash defende-se que para isso acontecer é necessário ir mais longe do que se tem ido na discussão do que é correcto e incorrecto, do que é tolerável ou mesmo agradável face ao que é intolerável e traumatizante. Eis o seu ponto: “If the #MeToo Moment is to transcend the most unambiguous cases of sexual misconduct, and to delve into the grayest areas, where changing any norm will be sharply contested, a model rooted in naming and shaming famous individuals for real-life encounters seems doomed. But with personal accounts of ambiguous edge cases that don’t breach anonymity and fictional accounts that present characters in full, every wrinkle of consent norms can be probed or modeled or discussed with diminished backlash, and without, I’d argue, any significant substantive loss.”
A fechar ainda mais dois textos, ambos com o seu lado provocatório. O primeiro foi escrito por um libertário de esquerda, Wendy Kaminer, no Boston Globe, e faz um alerta: Beware vigilante feminism. Pequena passagem: “How do we balance the mandate to “believe the women” with fairness for the men accused? We can’t. Categorically believing accusers turns a mere accusation of wrongdoing into proof that it occurred. Women who cheer this virtually irrebuttable presumption of guilt, considering due process for alleged harassers a component of rape culture, are cheering a thoughtless, treacherous form of vigilante feminism.”
Por fim regresso a Portugal (por onde comecei), mas agora para referir a crónica de uma mulher, Cristina Miranda, que no Blasfémias entendeu olhar para o outro lado da moeda, fazendo-o com a autoridade de ser mulher: E do Assédio aos Homens, Ninguém Fala? O texto conta várias histórias, algumas vividas pela autora, é ilustrado com uma imagem de uma atrás a desfilar quase nua num cerimónia de Hollywood, tudo para concluir: “Esta raiva aos homens é patológica. Não faz sentido em mulheres saudáveis e bem resolvidas com a vida. Porque estas sabem sempre avaliar as situações separando o que é efectivamente crime do que não passa de galanteios, mais ou menos felizes (sim, porque nem todos nascem com o mesmo dom para a sedução). Saberá estar à altura de dizer “não” e se esse “não” for desrespeitado, resolvê-lo. Porque a hipocrisia não deixa ver que no dia em que estas senhoras todas com mais ou menos nudez à mostra, não obtiverem qualquer reacção masculina (por receio destes) serão elas a questionar a virilidade dos homens e acaba-se o glamour dos vestidos às tiras sem cuecas.”
Tema complexo, discussão que por certo ainda vai no adro, polémica que não se apaga apenas porque pareceu existir uma quase unanimidade de vestidos negros na cerimónia dos Globos de Ouro, a ele voltaremos por certo nos próximos tempos. Antes porém de me despedir, apenas algumas referências a três textos desta semana do Observador que são boas leituras de fim-de-semana, em registos muito diferentes:
- Hugo Vau surfou a maior onda da Nazaré: “É como ser perseguido por uma avalanche”, uma entrevista ao surfista de quem se fala;
- Os bons alunos não querem ser professores. E isso é um problema, mais um ensaio de Alexandre Homem Cristo onde se fala dos dilemas estruturais do nosso sistema educativo;
- A placa africana está a rachar o país e mais uma dúzia de dúvidas sobre sismos, com tudo o que necessita de saber sobre o tremor de terra desta semana em Arraiolos e o que eles nos ensinou sobre como o nosso país treme.
E agora é que é. Tenham boas leituras e aproveitem para recuperar forças em mais este fim-de-semana.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário