Notícias falsas (ou “fake news”, de acordo com a moda do momento). Redes sociais. Mentiras (ou “inverdades”, em linguagem de políticos). Pós-verdade. Narrativas. Bloggers. E depois ainda há os velhos “mitos urbanos”, a eternas teorias da conspiração e, claro, um dos mais velhos hábitos da Humanidade: espalhar boatos, amplificar rumores. O que é que aqui é novo e o que é que aqui é velho? Como nos devemos orientar neste nevoeiro? É talvez tempo de trocarmos umas ideias sobre estes assuntos.
Comecemos pelo jornalismo – e pelos seus limites. Carl Bernstein, um dos dois jornalistas que investigaram o «caso Watergate», costuma dizer que no jornalismo o que se persegue é «the best obtainable version of the truth» (a melhor versão obtenível da verdade), e que isso é feito dentro dos limites temporais da próxima edição ou do próximo noticiário. No tempo da internet, estes limites temporais ainda se comprimem mais. Por isso a necessidade de uma ainda maior exigência – e, ao mesmo tempo, de uma ainda maior ambição. Essa ambição tem-se traduzido na multiplicação de um novo género jornalístico, o “Fact Check” – literalmente, a “verificação dos factos”.
Como escreveu Miguel Pinheiro no Observador, “Trata-se de uma tendência em crescimento no mundo inteiro. Segundo o estudo “The rise of fact-checking sites in Europe“, do Reuters Institute, há neste momento 113 organizações dedicadas ao fact-checking: “Mais de 90 por cento foram fundadas desde 2010; e cerca de 50 foram lançadas nos últimos dois anos”. Nos Estados Unidos, jornais como o Washington Post e o The New York Times têm apostado neste formato; na Europa, os franceses Le Monde e Libération ou o italiano Pagella Politica têm feito o mesmo.”
No estudo da Reuters que cita, The rise of fact-checking sites in Europe, Lucas Graves e Federica Cherubini sublinham mesmo que “The new millennium has seen the rise and rapid global spread of what can fairly be called a new democratic institution, the independent political fact-checker. The organisations dedicated to publicly evaluating the truth of political claims appeared in the United States in the early 2000s, anchoring what would become a staple of political reporting practised by nearly every major US news outlet. Over the past decade, meanwhile, independent fact-checkers have emerged in more than 50 countries spanning every continent.”
Miguel Pinheiro justificava assim o aparecimento de uma nova secção, tratanto de responder à questão de Como são os novos Fact Checks do Observador? Nesse texto também se explica que os Fact Checks do Observador obedecem um Código de Conduta – “Há alguns meses, o Observador começou a colaborar com a Rede Internacional de Fact-Checking (IFCN), do Poynter Institute for Media Studies. Na sequência desses contactos, o Observador adoptou o Código de Conduta do IFCN”. São cinco os pontos mais importantes deste nosso Código de princípios para Fact Checks:
- Compromisso com o não-partidarismo e com a justiça
- Compromisso com a transparência das fontes
- Compromisso com a transparência do financiamento
- Compromisso com a transparência da metodologia
- Compromisso com correções abertas e honestas
Já neste quadro, elaborámos dois Fact Check em torno do debate quinzenal de quarta-feira, Centeno não mentiu sobre acordo com Domingues? e Costa nunca usou a dívida para atacar o Governo?, sendo que este teve também uma versão vídeo. Sendo que muitos outros trabalhos de verificação dos factos foram aqui reunidos.
Nos Estados Unidos, para além do investimento dos principais órgãos de informação em Fact Check, há ainda algumas organizações que vale a pena referir:
- PolitiFact, que como o nome indica se centra sobretudo na fiscalização do que afirmam os políticos. Pode aceder aqui a mais informação: The Principles of PolitiFact, PunditFact and the Truth-O-Meter
- Snopes, um site que adopta o nome de uma família de personagens de três romances de William Faulkner e que se dedica sobretudo à desconstrução dos “mitos urbanos” que grassam pela internet: “Urban legends are a specific type of folklore, and many of the items discussed on this site do not fall under the folkloric definition of “urban legend.” We employ the more expansive popular (if academically inaccurate) use of “urban legend” as a term that embraces not only urban legends but also common fallacies, misinformation, old wives’ tales, strange news stories, rumors, celebrity gossip, and similar items.”
- FactCheck.org, que se define como “a nonpartisan, nonprofit “consumer advocate” for voters that aims to reduce the level of deception and confusion in U.S. politics. We monitor the factual accuracy of what is said by major U.S. political players in the form of TV ads, debates, speeches, interviews and news releases. Our goal is to apply the best practices of both journalism and scholarship, and to increase public knowledge and understanding.”
Mas dir-se-á: vale a pena o esforço? Não estaremos a assistir a um fechamento da sociedade em guetos, ou “bolhas”, que não se conhecem nem comunicam? De facto alguns indicadores parecem apontar para que, nas redes sociais, por vezes dá-se mais atenção a notícias falsas, inventadas, do que a notícias verdadeiras, verificadas e tratadas por jornalistas. Isso mesmo se mostra aqui – This Analysis Shows How Viral Fake Election News Stories Outperformed Real News On Facebook – onde se nota (ver gráfico) que “During the critical months of the campaign, 20 top-performing false election stories from hoax sites and hyperpartisan blogs generated 8,711,000 shares, reactions, and comments on Facebook. Within the same time period, the 20 best-performing election stories from 19 major news websites generated a total of 7,367,000 shares, reactions, and comments on Facebook.”
Uma análise da IPSOS realizada mais tarde mostrou que Most Americans Who See Fake News Believe It, como noticiou o BuzzFeed: “Fake news headlines fool American adults about 75% of the time (…). The survey also found that people who cite Facebook as a major source of news are more likely to view fake news headlines as accurate than those who rely less on the platform for news.”
Estes dados são, contudo, considerados pontuais por se referirem a um período muito específico – as últimas semanas campanha eleitoral para a Casa Branca –, pelo que Alexios Mantzarlis, director da Poynter International Fact-Checking Network, entrevistado por Miguel Santos do Observador, “Confrontadas com factos as pessoas mudam de opinião”. Algo que explica assim: “Acredito que para qualificarmos esta era como a “era da pós-verdade” temos de encontrar evidências de que os cidadãos não mudam de opinião quando confrontados com factos. E não é isso que dizem as investigações. Estudos recentes mostram que quando confrontadas com factos as pessoas mudam de opinião mesmo que esses factos contrariem as suas preferências políticas. Vivemos num mundo demasiado complexo, onde os factos e as emoções concorrem entre si e influenciam as decisões que tomamos.”
Mais: como escreveu Melissa Zimdars no Washington Post, My ‘fake news list’ went viral. But made-up stories are only part of the problem. Uma outra parte do problema é que o prestígio dos meios de informação tradicionais já não é o que era, bem pelo contrário: “Studies show a significant portion of the population distrusts “the media.” The level of distrust varies widely by news outlet and by reader, but in the aggregate, people no longer believe press reports the way they once did, especially if the news challenges their preexisting beliefs. Too many news organizations focus on short-term stories (...) and not enough deal consistently and seriously with issues that affect people’s lives in a way that explores not only what’s happening but also why and what can be done about it.”
Para além desta falta de foco em temas que afectam as pessoas, há também uma grande desconfiança sobre aquilo a que nos Estados Unidos se chama “bias” da grande imprensa. Isto é, falta de equilíbrio da informação. A maioria dessas acusações costuma vir da base eleitoral de Donald Trump, sendo que no outro lado do espectro político o alvo a abater é a Fox News. Mas se conhecemos as acusações à cadeia de Rupert Murdoch, importa referir que agora começam a surgir, na imprensa “liberal” (ou seja, na imprensa de esquerda), críticas a alguns excessos e, também, às “fake news” que agora começam a multiplicar-se entre os que detestam Trump.
Em The ‘Fake News’ Problem, o colunista e polemista James Kirchick, escrevendo no The Tablet (um órgão de informação judaico) é muito frontal na denúncia deste problema: “Now that Trump is in the White House, much of the media feels uninhibited in their campaign to destroy him, seeing the unprecedented nature of his presidency as license to get away with anything. Take Jonathan Weisman, deputy Washington editor of The New York Times. Since he was targeted by pro-Trump, anti-Semitic Twitter trolls last summer, Weisman—a man who is supposed to at least feign objectivity—has completely dropped any pretense of political independence. His own Twitter feed—like the feeds of a growing number of Times reporters—is a constant stream of anti-Trump invective indistinguishable from committed anti-Trump pundits like myself.”
O Guardian também já abordou o tema em Fake news for liberals: misinformation starts to lean left under Trump – “Liberal anxieties about Trump have created an appetite for false news, and social psychology dictates that fearful people may be more gullible, said Claire Wardle, research director with First Draft News. “It’s unsurprising to me that we’re seeing a growth of disinformation on the left … People want information that makes them feel better,” she said. “We’re living in a time where there is so much fear and concern mapped onto social technology.” –, tal como a The Atlantic, em The Rise of Progressive 'Fake News' – “If progressives are looking to be shocked, terrified, or incensed, they have plenty of options. Yet in the past two weeks, many have turned to a different avenue: They have shared “fake news,” online stories that look like real journalism but are full of fables and falsehoods. It’s a funny reversal of the situation from November.” The Federalist também abordou o tema em 16 Fake News Stories Reporters Have Run Since Trump Won.
A terminar regresso a um debate que passou pelas páginas de vários jornais no início do ano e no qual eu próprio participei, contestando a ideia de que a ascensão do populismo era quase uma consequência directa de vivermos no tempo do Facebook. Em A culpa é toda das redes sociais. E já agora da máquina a vapor – um titulo irónico – defendi que “As redes sociais e a tecnologia não criaram estas realidades. As redes sociais não passaram de bestiais (no tempo em que ajudaram a eleger Obama ou atraiam multidões para os comícios de Bernie Sanders) a bestas (só porque Trump é um incontinente do Twitter). (...) A “pós-verdade” também não nasceu ontem. Antes dela houve o boato, e sabemos como este provocou motins e até massacres (recordam-se da chacina dos judeus de Lisboa naquela que ficou conhecido como a “matança da Páscoa de 1506”). Mais: (...) que sentido faz reclamar que o debate público só se faça de verdades certificadas quando os mesmos factos (os números da dívida, ou do crescimento, ou do desemprego) podem servir copos meio-cheios e copos meio vazios?”
Mesmo assim é bom que em França as redações se tenham juntado ao Facebook para evitar “fake news” nas eleições francesas. Como será bom que mais órgãos de informação, para além do Observador, tornem os Fact Check uma rotina também em Portugal. Afinal de contas «the best obtainable version of the truth» será sempre uma contribuição para nos guiarmos nos novoeiro que referi logo de entrada.
Tenham bom descanso, boas leituras e, já agora, muitas notícias, reportagens e análises bem feitas.
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