terça-feira, 31 de julho de 2018

Macroscópio – Agosto é mês de férias, mas também para por leituras em dia

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
 
Último dia de Julho, último dia antes do “meu querido mês de Agosto”, o mais tradicional dos meses para passar férias mesmo nestes tempos em que a tradição já não é o que era. Pois bem, férias é algo que rima com leituras e, por isso, o Macroscópio de hoje não se centrará num só tema – até porque na actualidade portuguesa quase só há um tema, o caso Ricardo Robles, e julgo que pouco já poderia acrescentar ao muito que foi escrito, por regra repetindo argumentos idênticos –, antes divagará por alguns daqueles assuntos que pairam no ar, sem estarem presos ao dia a dia, mas reunindo textos que proporcionam, a meu ver, reflexões interessantes. 
 
Começo por textos motivados por livros e pelas controvérsias que eles suscitam. E a minha primeira escolha vai para um pequeno ensaio de Daniel Hannan no Telegraph de Londres sobre uma biografia que está a agitar os meios intelectuais britânicos: trata-se da obra de Jesse Norman Adam Smith, What He Thought, and Why it Matters. Nesta biografia Norman dá grande destaco ao lado de filósofo social daquela figura maior do iluminismo escocês e isso levou alguns recenseadores, tanto à esquerda (na New Stateman) como mais à direita (no mesmo Telegraph), a comentarem que, afinal, Adam Smith pouco tem a ver com o liberalismo moderno. É um ponto de vista que Hanan contesta neste muito interessante From Adam Smith onwards, classical liberals have known that capitalism makes people less selfish. A argumentação é sólida e coerente com o que conheço da obra de Adam Smith, especialmente da sua Teoria dos Sentimentos Morais, um livro injustamente muito menos conhecido do que A Riqueza das Nações.Eis uma passagem interessante deste texto de Daniel Hanan, até por contrariar certas ideias feitas: “It is certainly true that Smith disliked what we nowadays call crony capitalism. As Norman puts it, “When the interests of rich and poor clash, his instincts and arguments are almost without exception on the side of the poor”. That, though, is precisely the motive of libertarians. Classical liberals think that protectionism favours oligarchs at the expense of the global have-nots, and that crony capitalism is exacerbated by interventionist states. (...) The real caricature is not of Adam Smith by his Right-wing devotees, but of libertarianism by its detractors. Free-marketeers believe commerce draws people into networks of dependency, elevating the condition of the poorest. They believe, too, that the state’s growth squeezes out private virtue, diminishing people’s capacity for real generosity.
 

A próxima referência é sobre um autor quase maldito em Portugal, Roger Scruton, um dos mais importantes filósofos conservadores vivos mas que, uma vez que veio falar a Lisboa, apenas junta na sala seis pessoas dispostas a ouvi-lo, como conta João Pereira Coutinho neste sintético O pensamento de Roger Scruton. Mas o texto que hoje me motiva é o da sua entrevista a Madeleine Kearns da National Review, Sir Roger Scruton on What It Means to Be a Conservative.O pretexto próximo dessa conversa é a edição de mais um livro, Conservatism: An Invitation to the Great Tradition, e desta conversa curta mas muito reveladora extraí esta passagem sobre o significado da liberdade: 
MK: In the preface to your own book you explain, “freedom is not a set of axioms but an evolving consensus.” As far as possible, can you please explain the conservative approach to freedom?
SRS: Judged in absolute terms, my freedom threatens your freedom. There has to be an emerging civility, which prevents people from abusing their freedom in order to disrupt the consensus on which the general exercise of freedom depends. The rude, raw, “let it all hang out” freedom of the Californian hippies was in fact the most censorious and oppressive of societies that I have encountered. Just by being civil you exposed yourself to contempt as a bourgeois apologist.

 
Passo agora para um tema de maior actualidade, pelo menos aparentemente: o recuo da ordem liberal e os avanços de líderes autoritários e populistas. Gideon Rachman chamou esta semana a atenção, no Financial Times, para que, apesar de todos os livros publicados sobre a “Middle America”, a quase todos escapa a real dimensão de um fenómeno que não se esgota na eleição de Trump ou no Brexit. Urban-rural splits have become the great global dividerele nota que “The split between a metropolitan elite and a populist hinterland is clear in western politics. Less often noticed is that the same divide increasingly defines politics outside the west — spanning places with very different cultures and levels of development, such as Turkey, Thailand, Brazil, Egypt and Israel.” Descreve brevemente algumas dessas situações, sublinha as semelhanças – “Even the terms used to describe the divides are similar. In Turkey, they talk of “white” and “black” Turks; in Thailand it is rural reds versus urban yellows; in the US, it is the red states and blue states.” – e termina a sublinha que os riscos para a ordem liberal não estão apenas nas preferências eleitorais dos habitantes menos letrados e mais pobras das zonas rurais: “In 1995 only 6 per cent of rich young Americans believed that it would be a ‘good’ thing for the army to take over; today, this view is held by 35 per cent of rich young Americans.” If some big-city voters are ambivalent about democracy, small-town voters are increasingly drawn to the nationalism expressed by the likes of presidents Trump and Erdogan. Resurgent nationalism can raise international tension, but the widening urban-rural divide suggests that the most explosive political pressures may now lie within countries — rather than between them.”

 
Muitos convergem na ideia de que chegámos a este ponto porque o tom do debate público (e não apenas político) se tornou insuportável, o que segrega comunidades fechadas em bolhas onde todos pensam o mesmo. Mas assim não se faz uma democracia, pelo que achei interessante recomendar-vos dois textos que, de alguma forma, se complementam: 
  • Geneva Conventions for the Culture Waré a proposta de Orrin G. Hatchno Wall Street Journal, um apelo veemente ao respeito e à civilidade no debate público. A sua ideia é que se foi possível estabelecer regras sobre aquilo que é ou não permitido fazer a exércitos em guerra, “In similar fashion, our society could benefit from adopting certain conventions to limit the scope and severity of the culture wars—a general set of guidelines clarifying acceptable tactics in political warfare. By necessity, such norms would in substantial part be socially, not legally, enforced. Their purpose would be to limit the damage the culture wars do to our civic health.” 
  • Learning for Life: Political Education According to Michael Oakeshott, de Emina Melonic no site do Law and Liberty, do Liberty Fund, traz-nos uma reflexão muito elementar mas que hoje parece esquecida: para formarmos as nossas opiniões necessitamos de ouvir as opiniões dos outros. Fá-lo citando Oakeshott um ensaio de 1951 daquele filósofo, “Political Education”, incluindo na colectâneaThe Voice of Liberal Learning. Ora para ter que a actividade política resulte também numa educação política, ela “must embrace… knowledge of the politics of other contemporary societies.… The study of another people’s politics, like a study of our own, should be an ecological study of a tradition of behavior, not an anatomical study of mechanical devices or the investigation of an ideology. And only when our study is of this sort shall we find ourselves in the way of being stimulated, but not intoxicated, by the manners of others”

 
Continuando a falar de pensadores que marcam o nosso tempo não pude deixar de recuperar um texto que tinha guardado há já umas semanas e que fala de um outro pensador bem diferente, há muito desaparecido, mas cujas ideias ainda estão mais presentes entre nós do que suspeitaríamos depois do que a história do último século nos ensinou. É disso mesmo que fala Daniel Johnson numa edição recente da Standpoint no artigo A spectre haunting Europe: Karl Marx. E não pensem que é apenas retórica, já que o ponto de partido deste ensaio foram as declarações muito elogiosas de Jean-Claude Juncker na passagem do ducentésimo aniversário do autor de O Capital. A preocupação deste texto é mostrar que é falsa a ideia de que tragédias como a soviética pouco tiveram a ver com o pensamento de Marx, tal como é falsa a ideia de que nunca fez apelos à violência. Um exemplo sobre este último ponto: “Take, for instance, the article “Hungary” of 1849, published in the Neue Rheinische Zeitung, the German newspaper of which Marx was then editor. It was written by Engels under Marx’s direction, and it advocates the “total extinction” of “ethnic trash”. It concludes: “The next world war will cause not only reactionary classes and dynasties, but entire reactionary peoples to disappear from the earth. That too is progress.” 
Recordar estas passagens é tão ou mais importante já que, “Yes, Marx still matters. Having given birth to some of the most evil chapters of modern history, his personality and ideas continue to exercise a baleful influence on our world. His bewhiskered bust glares down at us in Highgate Cemetery, reproaching posterity for failing to obey his diktat. When this huge and hideous monument was unveiled in 1956, the Guardian gushed about its “formidable benignity”, evidently awed by “the man whose spirit now dominates approximately half the world”. That year, Soviet tanks crushed the Hungarians. Even today, plenty of people, including some who should know better, persist in seeing Marx as a prophet. But prophets prophesy; he dictated. It is time to consign Karl Marx and all his works to the dustbin of history.”
 

Ora sucede que mesmo vivendo nós dias em que poucos líderes mundiais intercalam os seus discursos com citações de Marx, a verdade é que ainda perduram regimes fundados em nome do comunismo, que tendo pouco de comunistas têm muito de autoritários ou mesmo ditatoriais. Sendo que podem dispor de tecnologias antes quase inimagináveis, como a inteligência artificial, razão do alerta de Nicholas Wright na Foreign Affairs sobre a disputa que aí vem estre autoritarismo digital e democracias liberais. Em How Artificial Intelligence Will Reshape the Global Orderdá naturalmente muita atenção ao que se passa naquela parte do mundo que tem Pequim no seu centro: “China has proved that it can deliver huge, society-spanning IT projects, such as the Great Firewall. It also has the funding to build major new systems. Last year, the country’s internal security budget was at least $196 billion, a 12 percent increase from 2016. Much of the jump was probably driven by the need for new big data platforms. China also has expertise in AI. Chinese companies are global leaders in AI research and Chinese software engineers often beat their American counterparts in international competitions. Finally, technologies, such as smartphones, that are already widespread can form the backbone of a personal monitoring system. Smartphone ownership rates in China are nearing those in the West and in some areas, such as mobile payments, China is the world leader. China is already building the core components of a digital authoritarian system.” 

 
Para o fim deixei dois textos de dois autores americanos muito influentes e que, não sendo democratas, escreveram recentemente textos importantes em que mostram a sua inquietação com estes tempos de Trump: 
  • Trump’s America does not care é de Robert Kagan, foi publicado pela Brookings Institution e tem a relevância de ele ter sido um dos mais importantes pensadores neoconservadores quando o neoconservadorismo em política externa estava na mó de cima. Agora considera que “Trump is not merely neglecting the liberal world order; he is milking it for narrow gain, rapidly destroying the trust and sense of common purpose that have held it together and prevented international chaos for seven decades. The successes he is scoring—if they are successes—derive from his willingness to do what past presidents have refused to do: exploit the great disparities of power built into the postwar order, at the expense of the United States’ allies and partners.”
  • Silence from the Party é de Larry Diamond, um respeitadíssimo cientista político que, na The American Interest, elenca os gestos mais condenáveis do Presidente Trump para a seguir se inquietar com o facto de o partido que o apoia, o republicano, e que tradicionalmente defendia exactamente o oposto do que ele tem praticado, se manter em silêncio:“We have in Donald Trump a reckless, obtuse and deeply insecure President of the United States, who makes and wrecks foreign policy on the fly, with slapdash preparation and little consultation with his own top officials and Ambassadors, not to mention our most important allies. Whatever is driving Trump, his shocking disregard for diplomatic conventions, historic alliances, and the American national interest no longer surprises. However, the damage is compounded exponentially by the lack of forceful denunciation from Republican members of Congress. They know full well that President Trump is placing in jeopardy the entire democratic architecture of post-World War II bonds that have deterred Russian and Chinese aggression and preserved American global security and leadership. But just as they have failed to contain his domestic political outrages, so Congressional Republicans have failed to confront his thrashing of America’s core interests and alliances.”
 
Numa dose porventura mais pesada do que o habitual, aqui ficam as minhas sugestões de “food for thought” na esperança de que seja mesmo verdade que se aproveitam as férias para por leituras em dia, e que nem só de livros ligeiros se faz este tempo. Despeço-me por hoje com votos de boas leituras, e, sobretudo para os que estiverem de férias, que venha então mais calor, mas sem exageros. 

 
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