quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Macroscópio – O que é que Raquel Varela e Isabel Moreira têm a ver com as eleições na Baviera?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
A pergunta que serve de mote a este Macroscópio pode parecer um pouco disparatada, porventura deslocada, mas colocou-se-me quando de me pus a ler alguns textos sobre as eleições na Baviera (preparando o Conversas à Quinta desta semana que lhes será dedicado) depois de ter assistido à luta fratricida, no último Prós e Contras da RTP, entre duas mulheres que classicamente arrumaríamos bem à esquerda do espectro político. O que as dividiu foi a posição face ao movimento #MeToopor linhas que eu, caricaturando um pouco, definiria assim: para Isabel Moreira em primeiro lugar está a guerra dos sexos; para Raquel Varela o que continua a contar é a luta de classes. Mesmo podendo haver algum exagero nesta descrição, houve naquele enfrentamento sinais de um fenómeno mais geral, de um movimento tectónico mais profundo que está a rearrumar campos políticos, a fazer e desfazer partidos e a criar todos um conjunto de novas referências que já estão a ocupar o lugar que durante muitas e muitas décadas nos eram dadas pela arrumação do espaço político em direita e esquerda. 
 
Demos por isso um salto até à Baviera para compreender melhor esta hipótese, ou se preferirem esta associação entre eventos tão diferentes. No mais próspero estado alemão, rico e quase sem desemprego, o partido conservador no poder, a CSU, perdeu a sua maioria absoluta, tendo tido um resultado historicamente baixo. Os sociais-democratas conheceram ainda pior sorte, perdendo metade do seu eleitorado. Subiu o partido anti-imigração, a AfD, e o partido pró-imigração, Os Verdes, os grandes vencedores da noite. Neste artigo do Politico faz-se uma boa síntese do que se passou e das implicações dos resultados a nível nacional: Bavarian voters rattle Berlin politics – “Angela Merkel and the Social Democrats face existential questions in the wake of an electoral drubbing”.
 
Até aqui poderíamos seguir a habitual narrativa da queda eleitoral dos partidos do centro, especialmente evidente quando estes governam coligados, como sucede na Alemanha. Acontece porém que a subida eleitoral, em paralelo, da AfD e, sobretudo, de Os Verdes, suscita outro tipo de reflexão porventura mais interessante, como a proposta por Andreas Kluth no Handelsblatt, em The challenge of success for Germany’s Greens, um artigo em que sublinha que “The flip side of a rising Alternative for Germany (AfD) is a rising Green Party. The first stands for a closed Germany, the second for openness.” Ora foi neste ponto que me recordei da discussão do nosso Prós e Contras, mais concretamente quando o autor sublinhou este ponto que me pareceu bem pertinente: “This Greening of Germany also reflects several other trends in the complex political tectonics of Western democracies. The old left-right dichotomy, which ultimately dates to the Industrial Revolution and Karl Marx, is losing relevance in today’s information economy. Instead, a new spectrum has emerged, between proponents of “open” and “closed” societies. “Open” here means pro-immigrant, pro-trade, pro-pluralism; “closed” means anti-migrant, nationalist, authoritarian. The AfD stands for closed. And the Greens, although their origins in the counterculture of the 1970s were on the post-Marxist left (still audible in pundits such as Jürgen Trittin), have in effect evolved into Germany’s party of openness.
 

Esta leitura levou-me a outra, a um livro que tenho desde a semana passada na minha mesinha de cabeceira e do qual o Observador publicou uma passagem significativa este domingo: Identidades, de Francis Fukuyama. Não vou naturalmente resumir aqui a obra, que aborda as políticas identitárias que exploram o ressentimento e têm levado à abertura de novas clivagens políticas com consequências ainda difíceis de prever. Contudo, no extrato que publicámos no Observador, Fukuyama: as identidades e a política do ressentimento, há duas passagens que ajudam a entender não apenas o raciocínio de Andreas Kluth sobre a evolução da paisagem política alemã, como o estranho confronto do nosso doméstico Prós e Contras. Ambas essas passagens lidam com a mudança de natureza daquilo a que convencionámos classificar como “esquerda”:
  • Primeira, sobre as razões da decadência eleitoral de muitos partidos social-democratas: “O decréscimo das ambições de reformas socioeconómicas em larga escala convergiu com a adoção pela esquerda das políticas identitárias e do multiculturalismo nas décadas finais do século XX. A esquerda continuou a definir-se pela sua paixão pela igualdade, mas o programa da igualdade mudou da sua antiga ênfase na classe trabalhadora para asexigências de um círculo cada vez mais amplo de minorias marginalizadas. Muitos ativistas viram na antiga classe operária e nos seus sindicatos um estrato social com pouca simpatia pela situação de grupos como os imigrantes ou as minorias raciais em piores condições do que a deles. As lutas pelo reconhecimento visaram novos grupos e os seus direitos como coletividades, em vez da desigualdade económica das pessoas individuais. De caminho, a velha classe operária foi deixada para trás.”
  • Segunda, sobre a nova natureza do “progressivismo”: “O programa da esquerda mudou para a cultura: o que precisava de ser desfeito não era a presente ordem política que explorava a classe operária, mas a hegemonia da cultura e dos valores ocidentais que reprimia as minorias em casa e nos países em desenvolvimento no estrangeiro. O marxismo clássico tinha aceitado muitos dos fundamentos do Iluminismo europeu: a crença na ciência e na racionalidade, no progresso histórico e na superioridade das sociedades modernas sobre as tradicionais. Em contraste, a nova esquerda cultural era mais nietzschiana e relativista, atacando os valores cristãos e democráticos em que se tinha baseado o Iluminismo. A cultura ocidental era vista como a incubadora do colonialismo, do patriarcado e da destruição ambiental. Esta crítica filtrou-se depois de volta aos Estados Unidos sob a forma do pós-modernismo e do desconstrucionismo nas universidades americanas.”
 
(Só uma nota à margem, antes de prosseguir com este tema: a forma como algumas destas campanhas se desenvolvem parece estar a virar-se contra elas, notando esta semana a The Economist que After a year of #MeToo, American opinion has shifted against victims. Mais: “These changes in opinion against victims have been slightly stronger among women than men. Rather than breaking along gendered lines, the #MeToo divide increasingly appears to be a partisan one. On each of these three questions, the gap between Trump and Clinton voters is at least six times greater than the one between genders.” ver gráficos abaixo)

 
Voltando à Alemanha e à sua paisagem política mais uma derradeira recomendação de leitura, esta do Financial Times, o seu longo e interessante trabalho How social democracy lost its way: a report from Germany. Bem sei que em Portugal se pensa que os nossos socialistas (assim como os outros partidos) estão imunes aos novos fenómenos políticos, mas não posso deixar de acompanhar a ideia de que “The fall of the once-mighty SPD holds lessons for socialist parties across Europe”. Misto de viagem pela história e de mergulho nas raízes locais do SPD a par com um leitura política do que lhe está a acontecer, neste artigo nota-se que já ninguém acredita que algum dia as coisas voltem a ser como foram nos anos de ouro do maior partido social-democrata da Europa: “Many of the party’s core voters have seen their lives turned upside down by sweeping economic and social change, from globalisation and automation to mass migration. The SPD, once so confident in the righteousness of its cause, has struggled to formulate a response. “The SPD has a leadership problem and a narrative problem,” says Andrea Römmele, a professor at Berlin’s Hertie School of Governance. “The party has no story to tell to the voters, and a story is what voters need.” The unspoken assumption inside the SPD is that the party is too important to fail. The broader fear, however, is this: if the Social Democrats fail here, they are not safe anywhere.”
 

Vivemos pois tempos de poucas certezas, parecendo que certezas sobre o que se passa noutros países só existem em Portugal. Desculpem-me esta frontalidade mas o nosso noticiário internacional é tão marcado pelo preconceito e pela incapacidade de perceber que estamos perante realidades novas que apetece dar um novo salto, desta feita até ao Brasil, pois enquanto por cá se subscrevem abaixo-assinados, no Brasil mesmo personalidades como Fernando Henrique Cardoso recusam-se a tomar posição e não cedem à pressão do PT para apelarem ao voto contra Bolsnaro. Numa entrevista ao Estado de São Paulo, 'Não estou vendendo a minha alma ao diabo', diz FHC, o antigo presidente é muito duro: “Quem inventou o nós e eles foi o PT. Eu nunca entrei nessa onda. Agora o PT cobra... diz que tem de (apoiar). Por que tem de automaticamente apoiar? É discutível. (O PT) Não faz autocrítica nenhuma. As coisas que eles dizem a respeito do meu governo não correspondem às coisas que acho que fiz. Por que tenho que, para evitar o mal maior, apoiar o PT? Acho que temos de evitar o mal maior defendendo democracia, direitos humanos, liberdade, contra o racismo o tempo todo.” Mais: “O PT tem uma visão hegemônica e prepotente. Isso não é democracia. Democracia implica em abrir o jogo e aceitar a diversidade.”
 
Esta posição de Fernando Henrique levou mesmo aquele grande jornal brasileiro a escrever um editorial, A prepotência petista, em que faz questão de sublinhar que Haddad e o PT não podem apagar a sua marca na governação do Brasil durante 13 anos: “Por ter sistematicamente desrespeitado aqueles que não aceitaram sua busca por hegemonia, por ter jogado brasileiros contra brasileiros e por ter empobrecido a política por meio da corrupção e do populismo rasteiro, o PT colhe agora os frutos amargos – na forma de um repúdio generalizado ao partido em quase todo o País e da desmoralização de sua tentativa de vestir o figurino democrático, que nunca lhe caiu bem.”
 
Cito estas passagens pois sem compreender a dimensão da rejeição daquilo a que os brasileiros chamam “lulopetismo” não se entende o fenómeno Bolsonaro – e a recusa de tantos em sequer encararem a hipótese de votarem em Hadadd. E há mais, como explica Roger Boyes num interessante ensaio no The Times, Triumph of the strongman has worrying echoes of the Thirties: “Strongman leaders don’t emerge out of a vacuum. Rather, they present themselves as the answer, however imperfect, to three existential questions: who can we trust with the most intimate of our fears? Who can restore our national confidence in uncertain times? Who will give us permission to suspend troubled thoughts about the future? These are emotional needs often born out of a delayed reaction to trauma.”
 
Tempos difíceis e confusos, onde por vezes as soluções não são as mais ortodoxas. Na Alemanha, como vimos, há quem deseja que Os Verdes ocupem o lugar o lugar que em tempos foi do FDP, os liberais. Mas na Áustria, para travar a extrema-direita, há quem acha que o melhor é tê-la domesticada no governo, e isso parece não estar a resultar mal como conta o Politico em How One 'Political Wunderkind' Is Outmaneuvering the Far Right. Enfim, muito em que pensar, mesmo sendo numerosas e contraditórias as pistas, pois já nada parece ser como era.   
 
Tenham bom (mas tardio, se for o caso) descanso. 

 
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