Começo o Macroscópio de hoje com uma citação: “Por debaixo da espuma noticiosa, há uma grande história que une a candidatura de Trump, o Brexit e a anti-austeridade: a da revolta contra a globalização. É isso que define o tempo presente.” Era assim que Rui Ramos introduzia a sua crónica de hoje, no Observador, A revolta contra a globalização. Depois, admitindo as inseguranças e desigualdades geradas pela globalização, sublinhava que “Hoje, é difícil imaginar uma democracia liberal sem a abertura e a cooperação internacional que caracteriza a globalização. Um encerramento protecionista não exigiria apenas mais guardas fronteiriços. Pressuporia também o ambiente de demagogia xenófoba que desse a toda a gente uma razão para abominar migrantes e importações. Na década de 1930, o proteccionismo acompanhou o autoritarismo. Desta vez, não seria diferente.”
São cada vez mais frequentes referências como esta. Referências aos chamados “perdedores da globalização” que, depois, alimentariam os populismos que vemos surgirem um pouco por todo o lado (incluindo Portugal, incluindo Portugal, mas esse não é tema para hoje). Referências ao paralelo com o que se passou na década de 1930, quando a democracia parecia condenada e o autoritarismo apresentava-se como triunfante. Referências às consequências de um retrocesso proteccionista. Voltamos por isso a este tipo de reflexões, pois a sua actualidade é maior não apenas quando vemos o que se está a passar nos Estados Unidos, com a candidatura de Trump, como quando olhamos para outras zonas do globo.
Primeiro que tudo: tem realmente a globalização culpa do que se está a passar nas democracias liberais nos países mais ricos do mundo? É precisamente essa a questão que Daniel Gros, director do European Policy Studies, coloca em Is Globalization Really Fueling Populism?, uma coluna que escreveu para o Project Syndicate. Onde rebate esse argumento: “A clear-cut economic explanation for a complicated political phenomenon is certainly appealing. But such explanations are rarely accurate. The rise of populism in Europe is no exception. Consider the situation in Austria. The economy is relatively strong, underpinned by one of Europe’s lowest unemployment rates. Yet Norbert Hofer, the leader of the right-wing populist Freedom Party (FPÖ) managed to defeat his competitors.”
Seja lá como for – e agora vou citar de enfiada dois textos do principal comentador de assuntos internacionais do Financial Times, Gideon Rachman – a verdade é que parece mesmo haver traços comuns entre a forma como Trump explora os ressentimentos daquilo a que podemos chamar a “América zangada” e outros populismos de vários matizes, à direita e à esquerda. Em How Donald Trump has changed the world (de que retirei a ilustração deste Macroscópio) expõe o que considera serem as cinco diferentes ideias que, com Trump, entraram no debate político mainstream: “First, a rejection of globalisation and free trade; (…) The second theme is nationalism, epitomised by Mr Trump’s slogan of “America First”; (…) A third idea is the embrace of the notion of a “clash of civilisations” between the west and Islam; (…)A fourth theme is a relentless assault on the “elite”, including Washington, Wall Street and the universities; (…) A fifth and related trend is the denunciation of the mainstream media as untrustworthy and an embrace of alternative, conspiratorial narratives that are flourishing on the internet.” Por isso, atenção: “Many liberal Americans are still inclined to treat the Trump phenomenon as a nightmare from which they hope to wake up in November. But that seems highly unlikely. Mr Trump has now amply demonstrated the political potency of the ideas that he is promoting. A rising generation of nationalists, in the US and Europe, will profit from his breakthrough.”
Num segundo texto, publicado ontem, o autor prossegue na mesma linha, chamando-nos a atenção para as semelhanças entre o estilo de Trump e o de outros líderes autoritários: Donald Trump, Vladimir Putin and the lure of the strongman. Para além destes dois líderes – que se apreciam e elogiam mutuamente – o autor lembra outras figuras como o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, o secretário-geral do Partido Comunista chinês, Xi Jinping, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, o líder húngaro, Viktor Orban, o homem forte do Egipto, Abdel Fattah el-Sisi, ou o recém-eleito presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Esta tendência para recorrer líderes “fortes” que na verdade são, sobretudo, líderes autoritários, é perigosa: “The alarming truth is that the impact of strongman leaders is rarely confined within national borders. All too often, the undercurrent of violence that they introduce into domestic politics spills over on to the international stage.”
Poderá o eleitorado americano optar por Trump? Como já referimos em anteriores edições do Macroscópio, isso começa a preocupar as elites pois, como escreve no El Pais o especialista em política externa dos Estados Unidos Gustavo Palomares Lerma, em Trump y la refundación conservadora, “Es necesario tener claro que el enfrentamiento entre Trump y Clinton se produce en uno de los momentos históricos de gran descontento y de mayor división en el electorado por la gran polarización entre los candidatos; un escenario propicio que encuentra en la desigualdad y el desencanto un buen caldo de cultivo para el éxito de las posiciones más distantes y provocadoras frente al poder político en Washington. El buen resultado de los candidatos más inesperados de ambos partidos en las primarias es buena prueba de ello y puede tener continuidad –como demuestra su progresivo ascenso en las encuestas- incluso, con el éxito inesperado de un xenófobo, misógino y paranoico en la carrera a la Casa Blanca.”
Muitos conservadores – sectores inteiros do Partido Republicano – recusam render-se ao fenómeno Trump, mesmo quando outros vão tentando encontrar forma de condicionar a sua candidatura. Entre essas vozes está, por exemplo, a de Dennis Prager, um conhecido blogger conservador que, em A Dark Time in America, não podia ser mais claro: “Other than the first years of the Civil War, when the survival of the United States as one country was in jeopardy, there has never been a darker time in American history. The various major wars — the Revolutionary War, the Civil War, World War I and II, and the Korean and Vietnam wars — were worse in terms of American lives lost. The Great Depression was worse in economic terms. There were more riots during the Vietnam War era. But at no other time has there been as much pessimism — valid pessimism, moreover — about America’s future as there is today. Among the reasons are: Every distinctive value on which America was founded is in jeopardy.”
Saber como se chegou aqui continua a dividir os comentadores, razão porque vos vou dar duas pistas com muitos alimentos que podem enriquecer a vossa reflexão. A primeira dessas pistas é um ensaio saído da alemã Spiegel, An Exhausted Democracy: Donald Trump and the New American Nationalism. Da autoria de Holger Stark, correspondente-chefe da revista em Washington, defende que “Trump's rise is the consequence of an ongoing crisis in the United States over the last two decades -- one American elites long ignored. They had no answers for Americans who live in states like Kentucky or Oregon, and who no longer understand what is happening on Wall Street, in the White House and the rest of the country. This election campaign has now brought the crisis to the fore. This is evident in Trump's victories, just as it is in the passionate support for Clinton's rival, Bernie Sanders, who has made the term "socialism" acceptable in the country once again.”
A outra pista é a sugestão de que ouçam o mais recente Conversas à Quinta, onde debati, aqui no Observador, com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto o que há alguns meses nem sequer imaginávamos que um dia poderíamos vir a discutir: Pensar o impensável: Pode Trump derrotar Hillary? Ou, formulando melhor a questão: “Trump tem o caminho aberto para ser o candidato republicano, Hillary lidera entre os democratas. Poderá a zanga da América com os políticos de Washington produzir ainda mais surpresas "trumpistas"?” (o podcast deste programa pode ser descarregado aqui).
Para rematar este Macroscópio fecho o círculo e regresso à imprensa portuguesa e uma outra reflexão que estabelece paralelos entre o que se passa nos Estados Unidos e na nossa União Europeia. A minha referência vai para um texto de Jorge Almeida Fernandes, no Público: A repolitização da Europa. Eis um dos seus pontos: “O problema é que o ataque à “elite”, ou seja às grandes instituições, na Europa ou na América, tem uma base que nasceu há décadas mas que se generalizou com a eclosão da crise de 2008: é a revolta dos “perdedores económicos”. Combina a insegurança económica com uma insegurança cultural que fomenta os nacionalismos identitários. A vontade de utilizar a democracia contra o Estado de Direito, em nome da defesa do povo, espalha-se em toda a Europa. Caminha-se para um conflito de legitimidades entre a democracia representativa e a democracia referendária, em nome do povo ou dos povos, que se sentem à margem dos compromissos de Bruxelas.”
Despeço-me por hoje, com a certeza que terei de voltar a este tema e a estas discussões muitas vezes. Gostemos ou não, há muitos elementos na situação actual que lembram, repito, a década de 1930, e quem conhece um pouco de história sabe o que isso significa. Não será a forma mais entusiástica de me despedir por hoje, mas quando há impensáveis que já se tornaram realidades, ficamos sem saber que impensáveis nos surgirão a seguir.
Bom descanso e boas leituras.
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