terça-feira, 15 de agosto de 2017

José Mário Costa: “O jornalismo exige um mínimo de talento”



José Mário Costa: “O jornalismo exige um mínimo de talento”

José Mário Costa é uma figura bastante conhecida no jornalismo português, onde introduziu, por sua conta e risco, a figura do copydesk quando esteve vinculado ao semanário Expresso. É ainda o autor do livro de estilo do diário «Público» e cofundador do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. É com este jornalista que O PAÍS abordou questões ligadas à língua, o «polémico» acordo ortográfico», assim como a posição de alguns órgãos de imprensa lusos em relação a Angola.
Sente-se um jornalista reformado?
jose mario1Não. Há 12 anos que era responsável da formação do sector de rádio na RTP. Em Portugal, a rádio e a televisão pública estão numa só empresa, ao contrário daqui em Angola. Já não houve esse enquadramento: rádio de um lado e televisão do outro. Eu trabalhava na formação, porque é um outro lado meu, especialmente cultivado por mim com alguma sensibilidade sobre questões éticas e deontológicas. Sou autor de vários livros de estilo, especialmente o do jornal Público, o quem muito a ver também com essa sensibilidade à volta da língua. Aí é um outro projecto que tenho há 18 anos, que é o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Como tal, tenho andado por Angola há três ou quatro anos.
O que tem feito nos últimos tempos em Angola?
Fui consultor da Rádio Nacional de Angola durante algum tempo – e ainda sou- embora não esteja cá por isso. Fizemos uma estruturação das áreas em que também tenho alguma experiência, como as de produtores de rádio e agenda e planeamento. É também uma experiência grande que tenho. Dei também uma ajuda na formação de alguns jornalistas que integraram a Rádio Nacional de Angola.
Nasceu em Angola, concretamente no município do Soyo. Mas como é que começa a carreira jornalística?
Em 1969 vou para Portugal estudar. Vivi no Lobito. Aliás, quando me perguntam: és de onde? Nasceste aonde? Eu fico sempre hesitante. De facto, nasço no actual Soyo, que antigamente se chamava Santo António do Zaíre, mas sai de lá com dois anos. Meu pai era funcionário público, andava por várias cidades e províncias hoje. Porto Amboim, Novo Redondo (agora Sumbe) e depois vivi muito tempo na então Sá da Bandeira (Lubango hoje). Depois fomos para o Lobito, de onde saio em 1969 para ir estudar a Portugal. Portanto, a partir dai fui estudando. Gostava era de fazer os 40 anos da independência de Angola, que é hoje, mas depois só preso por actividades politica anticoloniais. Estou dois anos presos em Peniche. Quando era estudante já trabalhava porque o meu pai não era rico. Com uma bolsa tinha que trabalhar. Depois a seguir a minha saída da prisão tenho alguma actividade política, mas começo no jornalismo como revisor no Expresso. Crio uma figura que não existia na imprensa portuguesa.
O copydesk. O que é isso afinal?
É um revisor com sensibilidade ou experiência de jornalismo. Por exemplo, nos Estados Unidos a imprensa americana tem há muito tempo essa figura. Os brasileiros. Principalmente no tempo em que não havia informática, existiam muitos repórteres na rua que ligavam e alguém na redacção escrevia o texto. O copidesk é um revisor especial porque não se limita a rever as gralhas, mas a adequar o estilo do jornal ao livro de estilo. Nesta altura, eu já tinha muitas preocupações com o português. O que acontecia no jornal onde eu trabalhava, que era o Expresso, onde estava na revisão mesmo com outras actividades, os textos eram compostos na tipografia e depois uma primeira versão era dada ao serviço de revisão. Nós, na minha equipa mexíamos aquilo de tal modo, porque o texto estava tão mal escrito, pouco claro e tínhamos constantes problemas com os lino tipistas, compositores e a tipografia onde o jornal era feito. E é aí em que lanço a ideia de que precisavam de um copydesk. Na altura, o director era Marcelo Rebelo de Sousa e o chefe de redacção Vicente Jorge Silva. Copydesk são pessoas que veem os textos dos jornalistas, principalmente daqueles que não têm tanta facilidade de escrever, porque no jornalismo de escrita é necessário saber escrever. Mas não é razão específica para se ser um bom jornalista.
Admite-se que quem não saiba escrever possa ser um bom repórter?
Claro. Um bom repórter, traga notícias, tenha faro, chega à redacção e tenha permanentemente notícias, ideias, fontes, mas depois não tem tanta facilidade em escrever. Para isso é que existem os copydesk, os editores e os re-writers, como se diz em inglês. O jornalismo, como qualquer outra profissão, exige um mínimo de talento. O talento no jornalismo escrito é escrever, no falado é falar minimamente e na televisão é ter alguma imagem. Mas pode haver jornalistas que não têm voz e não devem ir ao microfone. Eu posso dizer na brincadeira que o meu desgosto de vida era não ter uma boa voz.
Mas trabalhou em rádio?
Trabalhei e fui bom. Nunca apareci ao microfone. Do mesmo modo que conheci pessoas, um deles que até hoje é director de informação da SIC há muitos anos, um grande repórter, Alcides Vieira, nunca deu voz, nunca apareceu. Porque é necessário que nós também saibamos gerir os nossos talentos. Mas é necessário um denominador comum: gostar de dar notícias, dar estórias, «morrer» se não as damos. Cruzo-me aí, vejo e estou a ouvir, tenho que sacar aquela notícia ou dar ao meu jornal para ir atrás dela. Só não vou dar a notícia se houver razões éticas e deontológicas para eu não dar.
O que mais gozo teve de fazer ao longo da carreira jornalística?
Rádio. A rádio para mim é um meio único, porque é instantâneo, permanente, de grande acesso das pessoas, apesar de que hoje não é tão fácil mesmo na Europa, em Portugal, de as pessoas ouvirem porque têm que ir para os empregos. Porque a rádio permite permanentemente estarmos na actualização e na constante alteração, ou pelo menos indo sempre à frente da notícia. Hoje há online que em certa medida tem algumas características. Por isso, é que muita gente pensa que o futuro da imprensa passa por aí. Nós no on line, para além da escrita, podemos pôr imagem, som, mas tudo isso também já é uma mecânica muito mais complexa e mais demorada. Enquanto que em rádio podemos dar em directo. A televisão para dar em directo tem que pôr meios e resolver uma série de problemas de apetrechamento técnicos. O jornalista de escrita, muito bem, é de um jornal diário e sai amanhã. O online pode entrar, mas a rádio está imediatamente.
Concorda com a ideia de que terão sido os jornalistas das então colónias que suportaram a rádio em Portugal?
jose mario2Eu não diria assim. Digo de outro modo: a rádio em Angola e Moçambique, mas particularmente Angola, integrava grandes profissionais na altura. As actuais províncias, que na altura se chamavam distritos, tinham todos eles rádios clubes. Eram privados, mas havia uma emissora oficial do Estado, e a Emissora Católica. Todas eram constituídas por grandes profissionais. Quando há a independência grande parte desta gente vai para Portugal, onde antes se dá o 25 de Abril. Houve uma mudança absoluta até na forma de vestir. Nós que nascemos em África e nas então colónias ficávamos muito estranhos com a maneira como os jovens portugueses vestiam de fatos, gravatas. Essa gente que vai a Portugal revoluciona completamente a rádio, porque era uma rádio 0ficial. Tirando uma emissória, que era o Rádio Clube Português que já tinha começado a ter um outro tipo de dinâmica, e a Renascença que era a Emissora Católica, a chamada oficial que depois muda para Rádio Difusão Portuguesa era muito controlada pelo Estado. Muito oficial, muito pesada, mas tinha algumas qualidades. Por exemplo, as vozes que iam aos microfones tinham que ter voz.Quais são as vozes que saíram de Angola e fizeram furor em Portugal?
Mais do que voz, dinamizaram completamente a rádio. E a uma pessoa que fica na história da comunicação social portuguesa e angolana. Ele nasceu cá, infelizmente morreu há um ano, mas aos 17 anos já estava à frente da melhor emissora portuguesa, que é o Emídio Rangel, o homem que faz a TSF. Um projecto único, não existia de todo em Portugal, que era uma rádio só de notícias. Ainda hoje é a rádio padrão em todos os programas. Depois houve outra gente: Carlos Cruz, Ribeiro Cristovão, que aparece agora muito. É engraçado porque é gente de esquerda e de direita. Isto é gente que defendeu e teve problemas porque era pró-independência e gente que era pró antigo regime. É essa gente que muda completamente a rádio. Não os jornais. Principalmente o Emídio Rangel.
Diz-se também que estiveste na base do lançamento de muitos jovens e figuras africanas em Portugal, em órgãos como o Público, 24 Horas e outros. Está consciente disso?
Sim. Eu tenho este lado da formação. Desde a TSF, embora não tenha participado muito no início ainda, mas depois tenho programas e sou responsável por uma série deles com o Emídio Rangel. Eu acho que, como tudo na vida, no jornalismo é essencial a selecção das pessoas. Se as pessoas têm vocação ou o mínimo de aptidão para uma determinada função. Neste caso para o jornalismo, mas também pode ser para produtores ou outros sectores. Por exemplo, para a agenda e planeamento, secretariado, é necessário certo de tipo de aptidões. Isso só se vê falando c0m as pessoas e depois dando-lhes formação adequada. Neste caso da segunda geração da TSF só ficaram os melhores. Mesmo assim, aquilo que se lhes disse «é que tudo vai ficar X tempo para ver como é». A vida é como os melões, só depois de abrir é que a gente vê como é. Mas num determinado período estamos a ver se as pessoas são mesmo boas. E quase sempre 90 por cento dos casos criaram-se, de facto, bons jornalistas em Portugal. O Emídio Fernandes, uma série de jornalistas que estão na SIC e depois mais tarde, no caso do Centro de Formação da RDP, eu também consegui fazer um curso de formação que há muito tempo não se fazia. E hoje os melhores jornalistas da rádio pública são pessoas que há nove ou 10 anos começaram. Portanto, há esse tipo de preparação. Aqui também se tentou fazer na Rádio Nacional.
A queda para a formação foi natural? Sim. É uma coisa de que pessoalmente gosto. Aliás, é como o Ciberdúvidas, que como deve saber foi feito há 18 anos, concebido por dois jornalistas. Não é por acaso que aquilo tem uma lógica jornalística. É um serviço gratuito, público, puro e duro. Portanto, eu nasci um bocado com isso. Gosto de ajudar, formar, passar conhecimentos. A minha filosofia de vida é «depois de mim há-de haver gente sempre». E não que depois de mim fecha a porta. Para isso foi preciso ter encontrado esta alma, gostar de passar informação. Por exemplo, acho que um dos problemas do jornalismo em Portugal – e aqui também por outras razões – é que não há a crítica e a autocrítica permanente. Eu sou o primeiro, quando tive funções de editor, que foi no Expresso, no Público e depois noutros sítios, a fazer um elogio logo se o trabalho está bem feito. E sou capaz de dizer que o trabalho não está bem feito. Eu como copydesk que muda os textos, principalmente no Público, isso era muito importante porque foi o primeiro jornal que passou a ter um livro de estilo. E fui eu que fiz. Um livro de estilo que pela primeira vez em Portugal tinha não só o capítulo da técnica jornalística de escrita, como questões de ética e deontológica. Ouvir sempre o outro lado, não escrever sobre questões da vida privada, salvo quando…. Portanto, o copydesk tinha uma vigilância para ver se o texto escrito por outro jornalista estava todo conforme. Quando eu mudava, fosse quem fosse, eu chamava para a pessoa ver onde tinha mudado e porquê. Para a pessoa perceber, aceitar e amanhã já não cometer aquele erro. Isto é preciso ter também da parte do outro lado humildade e comece a perceber que de facto não estou a mudar por mudar. O estilo é da pessoa. Muda-se porque tem um erro. Está repetido. Porque violou os códigos do jornalismo, as fontes anónimas, etc. Ora bem: isto é preciso ter uma grande sensibilidade, não chocar as pessoas, não ser bruto, mas também ser firme para não se repetir. Outro lema da minha vida profissional é este: o pior que me acontece é errar. Mas pior que errar é repetir o erro.
Dizia a certa altura que um jornal sem gralhas é como jardim sem flores. Mantém a mesma ideia?
Sim. Mas há gralhas e gralhas. Isso era no tempo dos jornais que eram compostos à moda antiga. Hoje, com a informática, não é aceitável determinadas gralhas ou erros. Por outro lado, quando digo isso é só para dar a entender e fazer passar este tipo de mensagem. Há gralhas em que a gente a bater em vez do  sai um E. A gente percebe que é uma gralha inócua, mas sempre desagradável. Há erros indesculpáveis. Quando digo um jornal sem gralhas é um jardim sem flores, pronto, é porque a gente percebe que eu próprio escrevo a pressa. Quando é um texto de grande responsabilidade dou ao revisor do Ciberdúvidas ou a alguém. Aliás, um princípio que se deve ter é que o meu texto tem que ser visto e revisto sempre por outros olhos.
Uma frase que marca a vossa vida é «Cuidado com a Língua». Hoje tem-se esse cuidado principalmente pelos jornalistas?
Não, infelizmente. E eu falo por Portugal. Pelo contrário. Aliás, é uma das minhas batalhas porque a língua é um ser vivo que vai se alterando. Há palavras que tinham um determinado significado, hoje têm outro, um determinado conteúdo. O pior é quando o erro é permanentemente repetido, as palavras entram e as pessoas, os ouvintes e leitores absorvem completamente. Creio que em Angola o problema é outro. Não queria falar sobre isso.
Mas qual é o problema de Angola?
Acho que o problema de Angola é que há pouco domínio da língua portuguesa em termos gramaticais. Cometem-se muitos erros e que faz com que se perpetuem outros e entrem completamente no dia-a-dia. Aliás, estava agora a ouvir a transmissão das cerimónias oficiais e há muitos erros cometidos do ponto de vista quer da prolação. Não é pronúncia. Eu fiz um prontuário sonoro para a RTP. Desde que saí nunca mais foi mexido. A ideia foi essa, não havia nada do género em todo o espaço da lusofonia. Eu tenho o meu sotaque próprio angolano, nunca o perdi. Falo em Portugal e toda a gente sabe que eu sou angolano. O minhoto percebesse que tem um sotaque diferente do açoriano. E os angolanos dos brasileiros. Agora, há determinados tipos de palavras ou nomes que têm uma só forma de dizer. Por exemplo, em Portugal está-se a passar a crise política que se sabe. Fala-se muito numa palavra que é o «acordo». E o plural de «acordo»? É «acordos». A verdade é que ouvindo os jornalistas e os comentadores quase todos vão dizendo quase sempre «acordus, acordus, acordus». Ou então tão simples quanto isso, nomes de pessoas: é «Félix» ou «Félis»? É Ronaldo ou «Runaldo»? Há uma maneira de dizer porque senão entra. Quem diz isso, diz outras coisas piores. Há anos atrás e uma série de erros que os jornalistas, principalmente os do audiovisual cometem e não têm cuidado para saber como é que se diz. Antes de dizer eu tenho que saber como é. Acho que há um depauperamento ou um empobrecimento da língua, porque a língua permite. Eu acho que os angolanos têm uma criatividade imensa, muito maior que a dos portugueses, em particular da imprensa portuguesa.
Quais são os termos?
«Desconseguir». Palavras de expressões que entram e que são inventadas, muito bem inventadas. Só que é necessário quando faço esta criação que corresponda verdadeiramente à língua portuguesa. Por exemplo, há muitos anos houve um jornalista da rádio que inventou uma palavra que hoje está adquirido: buzinão. Mas há outras palavras que são mal engendradas, por isso é que é necessário que o jornalista quando inventa palavras ou imagens, as invente bem. Depois há outro pecado que são os estereótipos, as repetições. Por exemplo, há uma expressão muito utilizada pelos relatores de futebol que é a equipa está a perder e atrás do prejuízo. Eu ando atrás do lucro, nunca ando atrás do prejuízo. Ou então colagem excessiva, que é um dos problemas maiores aqui em Angola, embora em Portugal as coisas também estão preocupantes. É a colagem excessiva num determinado tipo de linguagem que é do poder. O jornalismo, na minha concepção, tem que ser permanentemente contrapoder. Mas contrapoder não quer dizer que seja da oposição ou veículo desta ou daquela facção ou interesse. Ainda agora estava a ouvir estereótipos dos 40 anos da independência angolana: os ganhos, os ganhos, os ganhos. Isso é uma linguagem de discurso oficial, o jornalista pode dizer uma vez mas depois tem que descobrir outras palavras. «Os aspectos positivos», «os benefícios», «as conquistas». Em Portugal havia as «conquistas de Abril». Também era a linguagem de um partido, o comunista, em que determinados tipos de jornalistas repetiam à sociedade. Aliás, até acabei de escrever uma coisa para um sítio, que é a propósito da situação em Portugal que é gravíssima do ponto de vista jornalístico. Eu até que vivi antes do 25 de Abril, havia jornais da oposição, um relativo pluralismo, e depois a seguir ao chamado PREC, assim como nos anos 80, quando se fez uma imprensa livre dos interesses comerciais e dos patrões. Foi o caso do Público em particular, do próprio Expresso a gente deu a volta É um mito o que se diz por aí de que o então e até agora proprietário do jornal, que era primeiro-ministro.
Francisco Pinto Balsemão?
Que era um grande liberal e até o seu jornal era o principal crítico. Claro que ele aceitou, mas foi graças aos jornalistas que lá estavam, principalmente ao grupo que depois vai fazer o Público. Depois conquista de facto um estatuto único e irrepetível na imprensa portuguesa. O principal patrão e a maior fortuna, na altura, da SONAE e Belmiro de Azevedo, paga o jornal. Mas quem manda no jornal do ponto de vista editorial é a direcção editorial. Hoje não acontece nada disso. Basta ver o que os jornais dizem, estão todos alinhados a um dos lados da crise em Portugal. Inclusivamente, depois a linguagem economicista entrou os mercados. «Os mercados agitaram-se», «os mercados estão nervosos». Portanto, é esta colagem que impede também um dos princípios basilares do jornalismo, que é o distanciamento. O distanciamento também passa pela linguagem.
Quer explicar melhor?
Por exemplo, em Portugal há a questão de Angola agora muito falada que é o caso dos jovens presos. Portanto, há um determinado tipo de linguagem: o regime angolano.
É um termo pejorativo?
É negativo. Um jornal equilibrado, que faça distanciamento, não emprega essa palavra regime, porque regime são todos. Por exemplo, quando o regime angolano era de partido único no livro de estilo do Público ficou claro que nós nunca falaríamos destes países ditaduras. Mas se tinham de dar uma informação era um regime ou um país de partido único. Porque não é ser só pejorativo. Embora hoje já não defenda muito isso, acho que no nosso tempo quando fizemos o Público, até porque Portugal é um país muito pequeno, estes princípios da objectividade estavam muito assumidos. Portanto, era necessário ter em conta que os meus leitores podem ser do Benfica ou do Sporting. Por isso, não lhes posso enxotar. Eu hoje acho que na imprensa portuguesa é tempo de haver o que existe noutros países da Europa: jornais mais de esquerda ou de direita assumidamente para não  haver contrabando. O que acontece hoje é que jornais que se dizem pluralistas ou de grande objectividade têm este tipo de linguagem completamente colada neste caso ao poder financeiro. Portanto, a linguagem tem um papel decisivo. Aí está dominar a língua para de facto eu ser equidistante. Mesmo um jornal que seja mais ou menos de um lado – ou de outro – tem que ter equidistância. O jornalista, o editor ou o director, ou quem quer que seja, se quiser fazer uma opinião, faça ao lado e devidamente identificado. Por exemplo, eu acabei de assistir aquele debate. O governo angolano agora destacou um embaixador itinerante. António Luvualu de Carvalho. Finalmente.
Porque diz finalmente quando se refere a este debate que houve na RTP entre António Luvualu de Carvalho e José Eduardo Agualusa?
Porque acho que se fechava demasiado. Acho que havendo de facto alguns preconceitos, questões de direitos humanos, havia alguma dificuldade. Nos diplomatas angolanos, quem podia passar a mensagem contrária, se fosse exercido o contraditório não havia. Finalmente aparece alguém, que ainda por cima tem uma capacidade de articulação e simpático, não me lembro de ter havido nos últimos anos um debate possível entre alguém ligado ao governo angolano com uma pessoa que tinha uma posição contrária. O que é que ali falhou e que foi absolutamente negativo e condenável? O papel do moderador.
O moderador foi parcial?
Completamente. Você não viu?
Eu vi. Mas pergunto ao José Mário Costa?
Completamente. Senão, não havia debate. Ou então ele punha-se ao lado do Agualusa. O moderador tem que ser uma pessoa absolutamente equidistante. O que você diz disto? O que diz daquilo? Mesmo que haja uma contradição, ele deve dizer que especifique? E as tantas estava posto num papel e a alegar que «isso é uma violação, os senhores não fazem isso». Primeiro, ele não faz isso com outro político português. Ele acabou de fazer uma entrevista antes das eleições e não foi capaz de colar-se à oposição e dizer ao primeiro-ministro que o senhor nestes quatro anos andou a mentir aos portugueses.
Acha que há sectores da imprensa portuguesa hostis ao Executivo angolano?
Eu não digo que são hostis. Tenho uma opinião. Claro que há determinados tipos de sectores de direita. Aliás, a crise hoje em Portugal vê-se que de facto a direita está furiosa. Perdeu a maioria e agora há uma alternativa. É que agora deu-se um acontecimento histórico.
As divergências em torno do Acordo Ortográfico agudizam os problemas da língua portuguesa?
Não. Eu só queria fazer uma declaração do meu interesse: eu sou pró acordo ortográfico.
O que pretende dizer com isso?
Não quer dizer que concorde com determinados tipos de opções, mas como tudo na vida pode ser melhorado. Porque é que sou a favor de um acordo ortográfico? Porque a língua portuguesa é a única com pretensões de ser língua universal, de trabalho nas grandes instituições mundiais como a ONU, UNESCO e mesmo nas organizações africanas, que tinha duas ortografias, dois padrões e podia até a vir a ter oito.
Escreveu um texto no jornal Público, em 2010, onde levanta essa questão das oito línguas. Como é que isso acontece?
Qual é o poder de uma língua, neste caso o português? É, de facto, que tenha o mesmo padrão. Tão simples quanto isso. Os comunicados da Comunidade d0s Países de Língua Portuguesa (CPLP) eram escritos nas duas ortografias. Com os problemas que os africanos têm, porque são muito menos avançados do ponto de vista linguístico, o único país que talvez se destaque é Moçambique, com uma geração de sociolinguistas de há mais de 20 anos, que tem uma cátedra sobre a língua portuguesa na Universidade Eduardo Mondlane, é tão simples quanto isso. Não havia 20 ou 40 anos depois em nenhum dos países africanos um dicionário, um glossário, um vocabulário. Portanto, o acordo ortográfico permitiu vários ‘ganhos’, a tal palavra que aqui se usa muito. Hoje todos os países africanos, a excepção de Angola, têm um vocabulário comum e nacional. Está-se a trabalhar –praticamente está pronto – num vocabulário que tem as diferenças, as especificidades de cada país. O acordo ortográfico é isto. Depois há uma série de confusões porque as pessoas não estão muito bem informadas, julgam que ortografia tem que ver com a sintaxe ou com fonética.
Tem alguma informação sobre as razões que fazem com que Angola não ratifique o referido acordo?
Aquilo que acho de Angola são várias questões. Não posso dizer que seja o Governo angolano porque as coisas também não estão fáceis. Do mesmo modo que o Governo angolano financiou parte deste vocabulário comum, por outro lado há sectores que são hostis ao acordo ortográfico. Um dos argumentos é que dizem que quando foi negociado, há 20 anos, não existia praticamente nenhuma representação do ponto de vista específico e científico de Angola. Então, a ortografia das línguas nacionais não está verdadeiramente contemplada. Eu não tenho este entendimento. Pelo contrário, como sabe, o K, W e Y passaram a integrar o vocabulário português precisamente por causa de Angola. Vocês aqui escrevem Kimbundu e em Portugal e no Brasil escreve-se Quimbundu. Depois há um outro problema que também é uma questão financeira: como Angola tinha feito um grande investimento nos manuais escolares, isto fazia com que muita coisa se perdesse. Mas também não é muito bem assim. Na minha opinião, foi o que aconteceu em Portugal, onde houve um período de transição. Portugal teve seis anos. No Brasil a mesma coisa. Durante seis anos aceitam-se as duas grafias e só depois, quando estes manuais têm que ser reeditados, então muda. Por outro lado, também o acordo ortográfico e o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), é o sítio onde multilateralmente todas estas questões devem ser dirimidas, permitiu por exemplo em Portugal uma série de instrumentos, desde o vocabulário nacional, dicionários de topónimos e gentílicos estar tudo na internet. Coisa que não havia.

Fonte: O PAÍS

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