terça-feira, 15 de agosto de 2017

Dejectos caninos ameaçam saúde pública

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Os dejectos caninos que enchem os jardins e passeios de Lisboa constituem um grave problema de saúde pública sem fim à vista. Neste ponto autarquias, pediatras e veterinários são unânimes.
Com os solos contaminados pelas fezes, os habitantes humanos, em especial as crianças, ficam sujeitos a uma série de doenças, algumas das quais podem ser fatais. Alheios à gravidade do problema, muitos donos continuam a deixar os animais defecar no espaço público, sem posteriormente recolherem os dejectos.
Segundo dados dos serviços de limpeza e higiene urbana da Câmara de Lisboa, em 2002 os cinco motocães que actuam na cidade - funcionários que andam de mota e aspiram, através de uma manga, a porcaria deixada nos passeios - recolheram 841.385 dejectos caninos. 
Mas, apesar de impressionante, este número só diz respeito às zonas da cidade onde é possível a actuação destas motas, ou seja, nas ruas onde os passeios têm mais de 90 centímetros de largura. Esta limpeza é feita, de segunda a sábado, em Campo de Ourique, parte da Lapa, Praça das Flores, Príncipe Real, Conde Redondo, Campo Santana, Praça das Novas Nações, Praça do Chile, Penha de França e Bairro dos Actores. 
Resultado de imagem para fezes de cão na rua ou jardinsAté ao momento, todas as campanhas feitas pela autarquia têm tido pouco eco na população. A equipa de 12 funcionários que fiscaliza o regulamento dos resíduos sólidos só conseguiu aplicar 32 coimas no ano passado - multas essas que podem ir dos 25 euros ao valor de um salário mínimo. Mas até ao momento só as mais baixas foram aplicadas, mesmo assim para grande indignação dos prevaricadores. 
Os donos dos animais têm de ser apanhados em flagrante a deixaram a via pública conspurcada e o fiscal da autarquia só pode identificar a pessoa se se fizer acompanhar por um agente da Polícia Municipal. 
Uma tarefa difícil, que em 2002 consumiu aos fiscais camarários e à Polícia Municipal, 1350 horas de trabalho. Apesar de os serviços autárquicos afirmarem estar convictos de que cada vez mais pessoas recolhem as fezes dos seus animais de estimação, ainda assim os resultados não são visíveis. 
E até já há quem tenha arranjado uma maneira de não ser acusado de falta de civismo: andar sempre de saco de plástico no bolso. Se não houver fiscal à vista, a porcaria fica no chão e o saco continua no bolso. Os serviços de higiene e limpeza urbana da Câmara de Lisboa estão a preparar-se para propor à Associação Nacional de Municípios o lançamento de uma campanha nacional que alerte para os perigos e cuidados a ter no dia-a-dia, em mais uma tentativa de educação cívica. 
António Marques Valido, director de pediatria da Maternidade Alfredo da Costa e ex-presidente da Associação Nacional de Pediatras, é um dos médicos preocupados com este fenómeno há largos anos. Considera que os dejectos caninos e os animais abandonados que deambulam pela cidade são um perigo latente que faz mais vítimas do que se supõe. 
E explica que as infecções causadas pelas fezes não são de fácil diagonóstico, confundindo-se com outras sintomatologias semelhantes e nunca se chegando a apurar a fundo o que esteve por trás da doença. Marques Valido também se afirma convicto, com base na sua longa experiência clínica - e apesar de não tem suporte científico para o provar, pois não existem estudos nesse campo em Portugal - que grande parte das virose que as crianças apanham, com febres, diarreias e vómitos, estão relacionadas com a elevada contaminação dos solos. 

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Ao brincarem em jardins, parques com areia ou mesmo recreios e pátios escolares, as crianças levam as mãos à boca e acabam por ser infectadas por parasitas, bactérias e vírus deixados por animais. O médico considera urgente um estudo sobre a contaminação dos solos e dá como exemplo um trabalho recentemente elaborado em Inglaterra, país onde os dejectos caninos não fazem parte da paisagem urbana, e apesar disso, se provou que 25% do espaço público está contaminado. 
Luis Carvalho, professor auxiliar de Parasitologia e Patologia das Doenças Parasitárias da Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa é outro profissional preocupado com a situação. 
A equipa a que pertence na faculdade está precisamente a pensar avançar com um estudo sobre o grau de contaminação dos jardins, passeios e areões de Lisboa, faltando-lhes no entanto, para já, a verba necessária e mais técnicos ligados à área de saúde pública para pôr o projecto em marcha. 
Para este professor universitário, não há dúvidas: o problema é grave. É um caso de saúde pública, porque existe um défice de educação cívica e sanitária da população. E não descarta, à semelhança de Marques Valido, a possibilidade de que algumas doenças infantis poderem estar directamente relacionadas com vírus, bactérias e parasitas provenientes de dejectos caninos deixados na via pública. 
Depois existem as doenças, algumas fatais, que estão mesmo ligadas, sem margem para dúvidas, aos cães e que são transmitidas aos humanos com mais frequência do que se supõe. É o caso da equinococose-hidatidose, uma doença endémica vulgarmente conhecida por quisto hidático. 
O cão passa a infecção para o exterior através dos ovos nas fezes. É uma doença que pode ser mortal. As larvas podem atingir a dimensão da cabeça de uma criança e alojarem-se no fígado, nos pulmões ou mesmo no cérebro humanos. 
A toxocarose é outra dessas doenças e é provocada por duas espécies de parasitas do cão e do gato. Trata-se de uma larva vulgarmente conhecida por lombriga, e se nos seu hospedeiros habituais se desenvolve normalmente, já no homem não consegue atingir a maturidade sexual no intestino e, por isso, efectua migrações para outros orgãos, como o fígado, os pulmões ou mesmo os olhos. 
Quando alojadas nesses orgãos, as larvas formam granulomas que causam dores abdominais fortes, febres, aumento do fígado, problemas respiratórios e aumento dos eosinófilos no sangue. No caso do problema ocular, já houve mesmo casos em que a única solução foi a remoção cirúrgica do olho. 
Há ainda a larva migrante cutânea. No cão os parasitas infectam a pele e atingem o estado adulto no intestino delgado. Nos humanos, como não estão adaptados aos tecidos, descrevem migrações na pele, causando um intenso mal estar. 
O vereador da Câmara de Lisboa com pelouro da Higiene e Limpeza Urbana, Pedro Feistm, afirma-se também "preocupadíssimo" com o problema, que considera igualmente de saúde pública, e diz-se disposto a avançar "com todas as medidas que possam contribuir para a sua resolução". 
Para desincentivar o abandono de cães durante as férias, o autarca diz ter projectada a criação de um hotel para animais de estimação a preços mais acessíveis que o habitual. Quanto às campanhas para que os donos apanhem os dejectos na via pública, Pedro Feist admite que não têm surtido o efeito esperado. Mas afirma-se disposto a continuar, só que de forma diferente. 

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Desta vez pretende pedir o auxílio das juntas de freguesia e colectividades, para que se promovam acções de sensibilização junto da população. 

Enquanto isso, nas escolas de ensino básico continuam também as acções destinadas a promover o civismo nas crianças.Pedro Feist vê com agrado a ideia do estudo sobre a contaminação dos solos, e diz-se disposto a entrar numa parceria para a sua elaboração. "A sociedade também se tem de envolver na resolução deste problema, deixar de ser egoísta e de viver voltada só para si. 
Os munícipes, mesmo os que não possuem animais, têm de perceber que o problema também os afecta. E por isso que devem começar a exercer os seus direitos, questionando os vizinhos sobre as atitudes que põem em risco a saúde de todos", defende. A.M.Ninguém gosta de ser chamado à atenção de que é necessário apanhar as fezes do bichinho, nem questionado sobre se costuma fazê-lo. 
Na zona de Benfica, profundamente castigada por este problema, o insulto foi a resposta mais frequente dos donos de animais que o PòBLICO abordou. Uma mulher apanhada com o cachorro em pleno acto não foi de meias medidas: "Meta-se na sua vida. se a preocupa tanto porque não apanha você? Se quiser posso deixá-lo ir a sua casa". 
Foi assim que respondeu, exaltada, à pergunta sobre se ia apanhar o que o cão acabara de fazer no passeio e se sabia que estava a cometer uma infracção punível com multa. A outros donos, muitos dos quais idosos - alguns não se tinham mesmo esquecido de colocar capinhas de lã nos seus bichos de estimação - não agradaram as perguntas sobre os seus deveres cívicos. 
"Não tem nada com isso" e "meta-se na sua vida" foi o mais respondido, mas houve também quem tivesse recorrido ao palavrão. O único dono de saco de plástico nessa manhã em Benfica era um adolescente. Que, um pouco perplexo, deu a resposta óbvia: "Então, é isto que se deve fazer!".

ANABELA MENDES
13/02/2003 - 00:00


Fonte: Público

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