Moedas discursou num palco partilhado com génios de várias áreas - e ainda teve tempo para dar boleia a uma estrela do rock
A recepção de abertura do festival Starmus, em Trondheim, na Noruega, aproximava-se do fim. Carlos Moedas, o comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação, esperava pela chegada do táxi que o iria levar ao hotel quando se cruzou com um homem alto, vestido de negro da cabeça aos pés que, com brincos nas orelhas e correntes ao pescoço, destoava das centenas de cientistas e convidados VIP para a festa organizada na residência do arcebispo da cidade. O português não fazia ideia de quem era. Mas quando um membro da comitiva lhe disse que aquele era Steve Vai, um dos mais conceituados guitarristas do mundo e cabeça-de-cartaz da componente cultural do encontro, não resistiu: "Importa-se de tirar uma fotografia?"
O músico não estranhou. Já com o retrato tirado, sem saber com quem estava a falar, quis saber onde poderia arranjar um táxi. Com o seu próprio transporte - uma carrinha de sete lugares - à espera, Carlos Moedas perguntou ao músico para onde ia. Ao perceber que estavam no mesmo hotel, nem hesitou: "Venha connosco, damos-lhe boleia."
Enquanto o comissário entrava no carro, Steve Vai chamou a mulher e o amigo que tinha chegado com eles à recepção e que se apresentou apenas como Devin. Já em movimento, o músico americano ficou curioso.
- Então, e o que você faz exactamente?
- Sou uma espécie de ministro para a inovação e ciência da Europa.
- Uau. Mas representa a Noruega?
- Não. Os 28 países, agora 27 com o Brexit.
O português teve então de dar uma explicação rápida sobre o funcionamento da União Europeia e o Horizonte 2020, o programa de 80 milhões de euros para apoiar projectos ligados à ciência, tecnologia e indústria sob a sua responsabilidade.
- Uau. Você tem um belo trabalho.
- É muito interessante.
- Tenho de dizer. São coisas como estas que deviam estar nas notícias. Isto é inspirador. Está a polinizar e não a promover o seu país. É um esforço colectivo e isso é poderoso!
Depois foi a vez de Carlos Moedas fazer perguntas. Ficou a saber que Steve Vai tinha sido convidado por Brian May para a direcção musical da reunião internacional que junta cientistas, artistas, músicos, escritores e empresários para debater a ciência. E que por isso pôde convidar alguns amigos para tocar com ele na Noruega - incluindo os guitarristas Devin Townsend (o Devin sentado ao lado do português), Grace Potter e Nuno Bettencourt, com quem tinha terminado uma digressão pela Ásia. Moedas aproveitou:
- Sabia que ele é descendente de portugueses?
- Claro.
- Gostava de o conhecer. Acha que era possível encontrarmo-nos?
- Claro. Envie-me uma mensagem amanhã e vem ter connosco.
Foi um final alegre de domingo, um dia que tinha começado a 1.893 km de distância, em Bruxelas, com a notícia de uma tragédia: a morte de dezenas de pessoas no incêndio de Pedrógão Grande. Assim que acordou e viu as notícias, Carlos Moedas enviou um SMS a António Costa. "Estou chocado com isto. Não parece verdade", diz à SÁBADO a bordo do avião rumo a Trondheim, quando o número provisório de mortos ainda estava nos 25. Já tinha também falado com Christos Stylianides, o comissário cipriota responsável pela Gestão de Crises e Ajuda Humanitária. "Ele estava acordado desde as 5h a tratar do assunto, para enviar aviões para Portugal", conta. Na escala em Copenhaga aproveita para actualizar a informação com o chefe de gabinete em Bruxelas, António Vicente, e informá--lo de que já falou com Stylianides e Costa para saber o que podia fazer para ajudar. "Mas não vale a pena incomodar demasiado. Se for preciso vamos falar com o Juncker. Isto é uma coisa inacreditável", diz.
O destino final da viagem era Trondheim, na Noruega, onde, ao longo desta semana, se realizou o festival Starmus, uma reunião anual, na quarta edição e que reuniu 11 prémios Nobel, cientistas de todo o mundo e artistas de diferentes áreas. Moedas era um dos convidados principais. Seria o responsável por um breve discurso na recepção que antecedeu o festival, no domingo, e no dia seguinte participou num simpósio associado na universidade local e fez o discurso de abertura do Starmus.
Nos últimos dois anos e meio, viajar e falar em público tornaram-se rotinas. "Em 2016 fiz 64 viagens em 52 semanas", conta. Faz-se acompanhar por um staff mínimo. Para Trondheim seguiu apenas a chefe de gabinete adjunta, a italiana Giulia Del Brenna. Ao aterrar tinha à sua espera a embaixadora da UE na Noruega, a britânica Helen Campbell. Seguiu directamente para uma reunião num centro de tecnologia marítima, mas antes de sair da zona de chegadas perguntou à diplomata se os interlocutores eram "pessoas de gravata". Só então decidiu pô--la - em pleno terminal.
Nas deslocações, além das reuniões com empresas e cientistas, tem sempre aparições públicas. Os discursos são preparados com antecedência pelo seu gabinete (composto por 18 pessoas de nove nacionalidades), que lhe entrega uma pasta com separadores amarelos com o que deve dizer em cada reunião e com fichas sobre as pessoas que vai encontrar. No entanto, na maioria das vezes, o comissário português acaba por mudar (quase) tudo: "Acho que as pessoas estão fartas dos discursos dos políticos, redondos e técnicos. Sou muito observador e tento adaptá-los aos locais e às audiências inserindo histórias reais, com as quais as pessoas se possam relacionar."
Foi buscar inspiração a um livro que leu recentemente, Sapiens, História Breve da Humanidade, de Yuval Noah Harari. "Ele conta a história do Neandertal e do Sapiens que viveram na mesma época. Mas o Sapiens conseguiu eliminar o Neandertal, que era mais forte, porque conseguiu reunir as comunidades e fazê-las cooperar através do storytelling."
Em todos os encontros tenta passar a mensagem de que é necessária uma maior colaboração entre cientistas e políticos. "A ciência é fundamental para a democracia. Através dela podemos vencer os extremismos e os populismos deste mundo da pós-verdade", disse no discurso de abertura do festival. Quer que os cientistas deixem de falar entre eles e que comuniquem com a comunidade. "É preciso que as pessoas saibam que os cristais líquidos que fazem os telefones funcionar existem porque alguém se lembrou de os criar", diz. Não só para impedir a propagação de crenças como a de que as vacinas são nocivas para a saúde, mas também para combater aquilo que acha que se perdeu e que, pelas funções que ocupa, lhe diz respeito: a ligação entre a população e a UE.
"A UE foi criada para não dar nas vistas e não causar problemas aos governos", diz. Isso reflecte-se não só nos discursos técnicos e burocráticos, mas também na forma de as instituições (não) comunicarem aquilo que de bom é patrocinado pela Europa. Nos encontros que tem dá dois exemplos concretos. Um é o anúncio recente por parte da NASA da existência de um sistema com sete planetas, três deles potencialmente habitáveis. A descoberta, feita pelo belga Michaël Gillon, foi possível graças a uma bolsa de 1,5 milhões de euros atribuída pelo European Research Council (ERC), tutelado por Carlos Moedas. Mas quando foi anunciada, o papel da UE foi omitido.
O outro exemplo é algo de que Carlos Moedas se orgulha particularmente. "Quando cheguei, em 2014, no pico da crise do ébola, consegui reunir agentes privados e farmacêuticos e pôr 200 milhões na mesa que resultaram na primeira vacina contra a doença. Foi criada por nós, na Europa", diz. O problema é que ninguém sabe disso.
Esta necessidade de maior comunicação parece ser bem acolhida pelos cientistas. No fim de um encontro com oito bolseiros ERC, na universidade NTNU, de Trondheim, o norueguês Kjetil Storesletten, que criticou a forma como o dinheiro é distribuído, mostrava-se satisfeito. "Estou impressionado com ele. Além do que nos disse, contaram-me que os directores das petrolíferas queriam um encontro com ele e ele disse que estava mais interessado em conhecer os cientistas e perceber o que os preocupa e como pode melhorar. Isso é muito fixe", diz à SÁBADO à saída do encontro.
Duas horas depois, no fim do discurso de Carlos Moedas na recepção de abertura do festival, o oceanógrafo americano John Delaney aproximou-se do português, cumprimentou-o e disse-lhe: "Adorei o seu discurso." Depois acrescentou: "Você é um político, mas espero que acredite no que disse."
Carlos Moedas garante que sim. Tal como afirma convictamente que não está a preparar um regresso à política activa em Portugal para quando terminar o mandato, no fim de 2020.
Ainda tem a sua imagem colada àquele período do ajustamento ou acha que as pessoas começam a vê-lo de forma diferente?
Acho que talvez já me vejam de forma diferente. Da forma que sempre fui. Durante o programa de ajustamento não me viam a mim, viam uma pessoa que tinha de estar a cumprir um determinado papel: de um actor político que tinha de respeitar e chegar a um determinado objectivo. Acho que talvez hoje me conheçam melhor.
Isso preocupa-o, a imagem?
Se me preocupasse teria feito outra coisa na vida nesses anos. Quem passou por aquilo não podia pensar na imagem.
Dito de outra forma: preocupa-se em manter a porta aberta para o regresso à política activa em Portugal?
Não é esse o meu objectivo. Disse-o várias vezes, tenho o objectivo de representar bem Portugal. Há actores políticos nacionais e outros internacionais. Vejo-me como actor internacional. Tenho feito isso nestes dois anos e meio. Faço-o com gosto e ambição. No futuro voltarei à vida privada, farei outras coisas.
Vê-se a liderar o seu partido?
Não. De maneira nenhuma. Nunca.
António Costa também disse que não queria ser primeiro-ministro.
Estou a falar de mim, não dos outros. Estou na política para ajudar a que as coisas se concretizem. Não me vejo numa liderança política nem agora nem no futuro.
Viaja para Portugal uma vez por mês. Fora do País, em todas as aparições acaba por falar das suas origens, dá exemplos de empresas nacionais de sucesso ou das dificuldades por que o País passou: "Acho que a associação à ciência e à inovação ajuda Portugal. Vivi muitos anos fora. E alguém que já foi imigrante sente necessidade de mostrar que é português. Não sei explicar porquê mas sinto uma necessidade estranha de o fazer."
Foi assim durante a boleia a Steve Vai. Como combinado, no dia seguinte Carlos Moedas enviou-lhe um SMS. O músico cumpriu a palavra. Às 16h40 o comissário português entrou, sozinho, na sala de espectáculos onde Vai ensaiava com a orquestra sinfónica local. Nuno Bettencourt chegou pouco depois. O americano apresentou-o ao luso-descendente como "o meu amigo Carlos". Foi uma conversa breve em que não se falou de ciência nem de Europa. E em que quem destoava entre as dezenas de músicos era o comissário português - o único na sala que vestia fato.
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