Carlos Castilho
Pesquisador no projeto GPSJor, pós doutor em Mídia e Conhecimento
Uma nova forma de exploração colonial começa a ganhar corpo na medida em que baixa a poeira do fascínio tecnológico e aumentam as preocupações com as consequências sociais, politicas e econômicas da massificação das inovações na área da comunicação e informação.
A ideia de uma nova forma de colonialismo, agora na era digital, surge a partir da constatação das mega fortunas acumuladas por empresas que captam, arquivam, processam e vendem dados obtidos, sem custo, de usuários da internet. Segundo pesquisadores como o britânico Nick Couldry, estamos começando a vislumbrar também uma nova modalidade de capitalismo alimentada não mais por bens materiais como minérios, petróleo e alimentos, mas pela comercialização de dados do quotidiano das pessoas.
A literatura acadêmica anglo saxã usa a expressão “data colonialism”, que ainda não tem uma equivalente consensual em português mas pode ser traduzida como colonialismo de dados, ou colonialismo baseado em dados. Por enquanto o tema ainda está restrito a algumas universidades europeias, mas o debate começa a transferir-se também para outras regiões como Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos.
A fascinação globalizada pela descoberta de fenômenos como os “grandes dados” (big data em inglês) e “internet das coisas” (internet of things –IoT) é alimentada pelas fantásticas possibilidades surgidas em consequência do que os especialistas definiram como datificação, ou seja, o registro digitalizado de quase todas as atividades humanas, transformadas em combinações de zeros e uns.
Nosso quotidiano já está sendo registrado de forma contínua em bancos de dados. É o que acontece com nossas compras no supermercado, nossos relacionamentos em redes virtuais, preferencias políticas, ideológicas, literárias, cinematográficas, teatrais, gastronômicas, afetivas, turísticas , sem falar nas nossas consultas médicas, seguro saúde , compras na farmácia etc etc.
Tudo isto forma o fenômeno que ficou conhecido como “grandes dados”, uma avalancha de dados nunca vista na historia da humanidade, e que se expande de forma continua graças a aperfeiçoamentos como a interação entre algoritmos incorporados a artefatos usados por seres humanos nas suas atividades diárias em casa, no trabalho, no estudo, transito e lazer, para mencionar só as mais frequentes. Esta conversa entre algoritmos é a base de outro fenômeno chamado “internet das coisas”, onde uma geladeira troca dados de seu dono como o proprietário da mercearia, ou o seu carro manda informações diretamente para o montadora ou para a oficina.
Inevitavelmente, um capital informativo desta magnitude passou a movimentar empresários interessados em obter lucros por meio da venda de produtos e serviços desenvolvidos partir de dados deixados por usuários da internet em pesquisas, compras e relacionamentos. A empresa Google, por exemplo, oferece desde 1998 um serviço gratuito de buscas na internet, e usa os dados deixados pelos usuários para desenvolver uma gama enorme de outros serviços que ao serem comercializados geram um faturamento global de 105 mil dólares por minuto. Em 2017 , o faturamento da Google em todo o mundo foi de 109,65 bilhões de dólares. E estamos falando apenas numa das cinco maiores empresas do mundo digital (Amazon, Microsoft, Apple, Facebook e Google), cujas receitas anuais são estimadas em pouco mais de meio trilhão de dólares norte-americanos.
Toda esta montanha de dinheiro, fundamentalmente, teve origem em dados obtidos de usuários, configurando um novo tipo de mais valia diferente daquela consagrada por Karl Marx no seu livro O Capital. Nick Couldry, que vai lançar no início do ano que vem o seu livro The Cost of Connections (O custo da conectividade), afirma que a expressão data colonialism explora uma nova dimensão do capitalismo agora num contexto digital, por meio da conversão da vida diária dos cidadãos num fluxo constante e universal de dados. Trata-se de uma matéria prima imaterial que é hoje tão valiosa quanto o petróleo.
Numa apresentação do livro, feita agora no começo de outubro, em Montreal, no Canadá, Couldry afirmou:
“As pesquisas sobre a internet precisam incluir também a análise de como as formas contemporâneas de extração e processamento de dados reproduzem o modo colonial de exploração. Usando uma macro sociologia do capitalismo como procedimento de pesquisa, apresentamos o conceito de “data colonialism” como uma ferramenta para analisar formas emergentes de controle politico e exploração econômica…Nossa análise envolve disciplinas como crítica da economia política, sociologia da mídia, estudos pós-coloniais e sobre tecnologia para estabelecer a continuidade da histórica apropriação colonial de territórios e recursos materiais até a atual datificação de nossa vida cotidiana. Afirmamos que embora as modalidades, intensidades, escalas e contextos tenham mudado, o principio básico continua o mesmo: apropriar-se de recursos dos quais se pode extrair valor econômico. Da mesma forma que o colonialismo histórico pavimentou o caminho para o capitalismo industrial, o colonização dos dados digitais prepara o caminho para uma nova ordem econômica”…
O professor e pesquisador mexicano Ulisses Mejias, co-autor do livro The Cost of Connections, defende a necessidade de iniciar o que chamou de “descolonização dos grandes dados” por meio da negação da ideia de que a apropriação e utilização de dados obtidos de usuários da internet é um procedimento “natural e inevitável” na produção de conhecimento humano, quando na verdade é uma forma comercial de extração de dados movida por interesses econômicos e políticos.
O argumento de Couldry e Mejias se baseia na justificativa usada pelos colonizadores europeus na América Latina, África e Ásia nos séculos XV e XVI de que era irracional deixar inexploradas as riquezas naturais existentes nestes continentes. Seguindo a mesma lógica, na era digital, também seria irracional deixar inexplorada a avalancha de informações sobre o quotidiano das pessoas. Para os dois pesquisadores, a descolonização dos dados visa evitar que os seres humanos acabem vítimas do que já está sendo qualificado como uma “ditadura baseada em dados”.
Fonte: objethos
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