2019. Já entrámos noutros anos mais optimistas, e noutros mais pessimistas. E para além das resoluções de Ano Novo que eventualmente os leitores desta newsletter tenham tomado, a verdade é que 2019 se apresenta sob o signo da incerteza, como muitas regiões do mundo a passarem por processos de mudança de consequências difíceis de prever. Por cá tudo vai parecendo relativamente calmo, mas como qualquer constipação à nossa volta pode provocar-nos uma pneumonia, vale a pena estar atento. Por isso mesmo deixo-vos neste primeiro Macroscópio de 2019 um conjunto de sugestões de leitura que abrem pistas de reflexão sobre algumas das incertezas que temos pela frente.
E como não há nada como dar alguma profundidade histórica aos eventos que vivemos começo precisamente por um texto muito curioso do El Mundo, El siglo XXI cumple 40 años: por qué todo lo que ocurre hoy tiene su origen en 1979. É curioso ver como estas duas ideias se cruzam, começando pela defesa da tese de que “Los 7.700 millones de seres humanos que poblamos la Tierra vivimos a la sombra de lo que pasó en 1979. Y eso también se aplica a los 2.400 millones de personas que aún no habían nacido. Prácticamente todas las noticias internacionales de los últimos seis meses tienen su origen directo en acontecimientos que se produjeron en ese año: la retirada unilateral de EEUU de Siria y Afganistán, la negociación del Brexit, los disturbios de los chalecos amarillos en Francia, la guerra comercial entre EEUU y China, el asesinato y descuartizamiento en el consulado de Arabia Saudí en Estambul del periodista Jamal Khashoggi, y el bloqueo de las exportaciones de petróleo de Donald Trump a Irán.” É natural que a maioria dos meus leitores não se recorde do que se passou assim de tão importante em 1979, uma vez que a data que habitualmente é mais referida como sendo a da grande viragem histórica é 1989, o ano da queda do Muro de Berlim e, como ele, do sistema soviético. Na verdade 1989 não teria sido possível sem 1979, pois foi nesse ano que Thatcher chegou ao poder no Reino Unido; que Reagan anunciou a sua candidatura presidencial; que ocorreu a primeira revolução islâmica telúrica, a iraniana; que em Meca se assistiu ao primeiro ataque de fundamentalistas; que começou no Afeganistão a guerra que se transformaria no Vietname da URSS; e que, por fim, Deng Xiao Ping começou a libertar a China do pesado legado do maoismo e a abrir a sua economia ao mercado e ao mundo. Por isso, recorda-se neste artigo, “La idea de 1979 como fecha clave no es nueva. El historiador conservador Niall Ferguson ya la ha planteado. Y el jefe de la sección de Opinión del diario The Washington Post, Christian Caryl, le dedicó en 2014 un libro, Strange Rebels: 1979 and the Birth of the 21st Century”.
40 anos depois do triunfo de Deng, a China conquistou um lugar no mundo inimaginável à época – um lugar que já lhe permite realizar feitos tecnológicos pioneiros, como aquele que anunciou este semana, ao fazer aterrar uma nave na face oculta da Lua, algo que nem os Estados Unidos, nem a URSS haviam jamais feito. É isso impostante? Claro que é, e por muitas razões, como explica Marina Koren na The Atlantic em Why the Far Side of the Moon Matters So Much – “China’s successful landing is part of the moon’s long geopolitical history”. Com efeito, “China’s space accomplishments are as symbolic and strategic as the Apollo and Vostok programs were in the 1960s, especially now, when space agencies in Europe, Russia, India, and, most recently, the United States have put a big focus on lunar exploration. “We are building China into a space giant,” Wu said.” E os chineses não deixam de o assinalar, num artigo citado pelo The Washington Post: “Unlike mankind’s mania in the past, the Chinese people ultimately harbor the dream of shared human destiny and practices open cooperation. We choose to go to the back of the moon not because of the unique glory it brings, but because this difficult step of destiny is also a forward step for human civilization!” Ou seja, como sublinha Marina Koren, “A “forward step for human civilization,” indeed. But the “unique glory” is certainly nice, too.”
Para contrabalançar um pouco a avalanche de artigos sobre o novo “perigo amarelo”, agora materializado na forma de hegemonia económica e tecnológica da China, recomendo a leitura de The future might not belong to China, uma análise de Martin Wolf no Financial Times onde, como a ajuda de muita informação económica, se defende a ideia de que o crescimento dos últimos anos não tem condições para se projectar no futuro. São muitos os argumentos, a conclusão é que “China may well fail to replicate the success of other east Asian high-growth economies, in becoming a high-income country in short order. It will surely be far harder for it to do so, because the distortions in its economy are so large and the global environment is going to be so much more hostile.” Para o principal colunista económico do FT haverá assim razões para que “Disheartened liberal democrats must not despair. The euphoria and hubris of the “unipolar moment” of the 1990s and early 2000s were grave mistakes. But the triumph of despotism is still far from inevitable. Autocracies can fail, just as democracies can thrive. China confronts huge economic challenges. Meanwhile, democracies must learn from their mistakes and focus on renewing their politics and policies.”
De resto um bom sinal de que podemos estar mesmo num daqueles momentos em que é mesmo difícil prever o futuro, porque alguma coisa pode estar para acontecer que mude as regras do jogo, é o dado pelas dificuldades da Apple, que esta semana anunciou piores resultados económicos do que o esperado e tem vindo a perder capitalização bolsista. Uma reflexão bem interessante sobre o que podem significar estas dificuldade da Apple é a de Kara Swisher no New York Times, Is This the End of the Age of Apple? A sua tese é que estamos num daqueles momentos em que tem de ocorrer uma qualquer disrupção tecnológica para toda a indústria dar um novo salto em frente: “The last big innovation explosion — the proliferation of the smartphone — is clearly ending. There is no question that Apple was the center of that, with its app-centric, photo-forward and feature-laden phone that gave everyone the first platform for what was to create so many products and so much wealth. It was the debut of the iPhone in 2007 that spurred what some in tech call a “Cambrian explosion,” a reference to the era when the first complex animals appeared. There would be no Uber and Lyft without the iPhone (and later the Android version), no Tinder, no Spotify. Now all of tech is seeking the next major platform and area of growth. Will it be virtual and augmented reality, or perhaps self-driving cars? Artificial intelligence, robotics, cryptocurrency or digital health? We are stumbling in the dark.”
Enquanto esperamos para perceber de que lado virá o próximo salto na inovação convém não esquecer que sempre que estas mudanças rápidas ocorrem há vencedores e perdedores. Falou-se muito dos perdedores quando se procurou entender as raízes do fenómeno dos coletes amarelos em França, repetiu-se muito a ideia de que estaríamos perante os “perdedores da globalização”. Como sempre sucede a história é um pouco mais complicada, e a realidade mais complexo, como se depreende da leitura de Fifty Shades of Yellow, um texto de Jean Pisani-Ferry para The Project Syndicate. Eis uma passagem que achei interessante precisamente por sublinhas aspectos que geralmente são esquecidos ou subestimados: “Part of the explanation is demographic: aging and the rise of single-person or single-parent households have increased the number of consumption units and decreased their individual purchasing power. Part is sociological: middle-class consumption standards – mobile phones, restaurant dinners, and beach holidays – have risen in line with the income of the well-off and have become hard for the middle class to afford. Part is geographic: since 2000, the metropolitan areas have done quite well, whereas smaller cities have struggled. House prices have risen in the former but fallen in the latter, making their owners poorer. No wonder there have been many more Yellow Vests in cities with 50,000 inhabitants than in Lyon or Toulouse.” Seja lá como for, algo é certo, e é certo em França como um pouco por todo o mundo desenvolvido: “The deeper issue is that many middle-class people feel that the social contract is broken.”
Um dos temas inevitáveis de 2019 será a nova realidade política nos Estados Unidos, já que o Presidente Trump terá agora de lidar com uma Câmara dos Representantes dominada pela oposição democrata, e a sua vida não se adivinha fácil, como explicou João de Almeida Dias no especial do Observador Vai começar o cerco a Trump — e é com estes casos que os democratas vão apertá-lo. Nesse texto elencam-se as diferentes frentes em que decorrem investigações que podem comprometer um Presidente que, agora, já não estará protegido por uma maioria amiga (se bem que ainda conte com uma maioria no Senado, esta até reforçada). Esta semana este também era o tema de capa da The Economist, que escrevia o seu primeiro editorial sobre What to expect from the second half of Donald Trump’s first term. Depois de recordar como, com o seu estilo, Trump conseguiu partir muita louça mas mesmo assim ainda conseguiu alguns sucessos políticos, e de prever que tudo indica que os próximos dois anos serão mais difíceis, a revista conclui com a seguinte previsão: “After two chaotic years, it is clear that the Trump Show is something to be endured. Perhaps the luck will hold and America and the world will muddle through. But luck is a slender hope on which to build prosperity and peace.”
A fechar regresso ao Financial Times para referenciar um texto de Tim Harford contra-corrente: Why there is no need to panic about fake news. Como imaginam, na qualidade de jornalista, este é um tema sobre o qual tenho lido e reflectido muito, sendo que me identifico muito com esta análise. Primeiro, por considerar que a sobrevalorização da importância das fake news não só não tem sustentação na evidência empírica dos estudos já realizados, como corresponde a uma menorização da inteligência das pessoas: “Here is the final reason to calm down about fake news: it feeds into the tempting but smug assumption that the world is full of idiots. People are sometimes taken in by lies, and some spectacular falsehoods have gained more traction on social media than one might hope. But if we persuade ourselves that Mr Trump was elected by people who wanted to be on the same side as the Pope, we’re not giving voters enough credit.” Depois porque, tal como Tim Harford, acho que o principal problema é mesmo outro, e desse muito menos gente fala: “I worry (partly selfishly) that it is harder than ever to sustain a business that provides serious journalism. I worry that politicians around the world are doing their best to politicise what should be apolitical, to smear independent analysis and demean expertise. (...) The free press — and healthy democratic discourse — faces some existential problems. Fake news ain’t one.”
Resta-me despedir-me não apenas com votos de um bom fim-de-semana (mesmo que frio para os que estiverem por Portugal continental), mas sobretudo com votos de um bom 2019.
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