sábado, 5 de janeiro de 2019

A psicologia da Fé nas conversões

Texto extraído da obra do padre Leonel Franca "A Psicologia da Fé", onde o mesmo analisa a psicologia daqueles que se convertem à Fé católica. As conclusões do Autor podem ser observadas em todos aqueles que abraçaram nossa Fé. A psicologia da Fé nas conversões.

A conquista da verdade religiosa encontra numerosos obstáculos, uns de ordem intelectual, outros de carácter moral. Na realidade viva das almas, a acção de uns e de outros, discernida por um esforço de análise, funde-se na síntese de um todo solidário e complexo. As ignomínias do coração procuram sempre a cumplicidade da inteligência. Os extravios intelectuais raras vezes deixam de reflectir-se na desordem dos costumes. Erro de vício colaboram de frequente em afastar o homem da verdade total. Destas dificuldades triunfam as almas rectas e sinceras. O estudo desta conquista final da fé é uma confirmação valiosa das nossas análises anteriores.
Neste drama palpitante, aparece a acção subjugadora da verdade que vence todas as resistências, não como as abstracções áridas e incompletas de um torneio dialéctico, mas como a luz integral que invade, com suas claridades, uma existência humana a fim de orientá-la definitivamente para a grandeza de sua finalidade pacificadora. Não há tragédia que, pela transcendência dos interesses em jogo, pela profundidade e intimidade dos afectos que excita, pelas dilacerações indescritíveis da agonia interior, se possa comparar a esta luta heróica em que as grandes almas debatem, com o problema da verdade dos seus destinos, a causa da própria felicidade.
Estudemos mais de perto este fenómeno admirável. São muitas e misteriosas as vias que levam os homens a Deus. De fato, cada conversão tem a sua história que não se repete. Qualquer tentativa de classificação exige um trabalho simplificador que é quase sempre um empobrecimento da realidade.
Com a ressalva desta observação, analisaremos os casos concretos, no que apresentam de comum para deles inferir algumas lições de alcance geral.
Há almas que vêm de longe. Partem da negação, da dúvida, do erro; são conversões para a verdade; chamemo-las dogmáticas. É o caso de Santo Agostinho, de um Newman, ou de um Papini.
Em outras, o trabalho espiritual consiste mais num esforço da vontade que retoma o governo perdido da vida para elevá-la ao nível da fé, até ali não extinta, mas fria e inoperante. São conversões para o bem; denominemo-las morais. Entre elas nem sempre é idêntica a distância vencida; umas vão do mal ao bem, outras do bom para o melhor. Inácio de Loyola, Margarida de Cortona, ou Luísa de La Vallière deixam uma vida de futilidades mundanas, de ambições terrenas ou de dissipações cortesãs para se dedicar à severidade da vida claustral ou ao apostolado das almas. Teresa de Jesus fala-nos humildemente de sua conversão aos 40 anos como do grande passo que a tirou da "morte para a vida". Foi a ruptura com certas complacências seculares, a passagem de uma generosidade intermitente e limitada que mede e pesa o que dá, para a generosidade absoluta na doação de si mesma a Deus, completa, total e irrevogável.
Fixamos até aqui a nossa atenção sobre o ponto de partida e o termo de chegada: é o critério que especifica qualquer movimento. Se observarmos a duração empregada para vencer as distâncias percorridas, achamo-nos diante de conversões lentas e progressivas, que se estendem às vezes por anos e anos, como a de um Agostinho ou de um Newman, ou de conversões fulminantes que, em poucos segundos, destroem um passado inteiro para, sobre suas ruínas, reconstruir imediatamente um futuro inteiramente novo. Aqui a acção da graça, a percepção dos motivos de credibilidade, a resolução definitiva da vontade fundem-se na unidade de um ato instantâneo. O exemplo de Paulo que, nos caminhos de Damasco, cai fariseu e perseguidor, para levantar-se cristão e apóstolo não é o único na história do cristianismo. No século XIX Afonso Maria Ratisbona, futuro fundador das religiosas do Sion, entra em Roma numa Igreja para comprazer a um amigo que o deixa por alguns instantes só na imensa nave silenciosa, para encontrá-lo, pouco depois, debulhado em lágrimas ante um altar da Virgem.
O judeu mundano e escarnecedor do cristianismo levanta-se radicalmente transformado, vai
ajoelhar-se aos pés de um sacerdote, recolhe-se num retiro e orienta radicalmente a sua vida para novos horizontes espirituais. Fulmíneas foram ainda quase em nossos dias as conversões de um Paulo Ginhac, de um Herman Cohen ou de um Claudel.1 Sob qualquer de suas inumeráveis modalidades individuais, a conversão apresenta-se-nos sempre como um drama interior em que os dois grandes atores são Deus e a alma. No princípio de toda a conversão está Deus com as graças de sua infinita misericórdia. A volta do homem à fé é sempre um mistério de seu amor inefável.
1 CALVET, Le Pere Ginhac, 1901, p. 18; CH. SYLVAIN, Vie du R. P. Hermann, 4 Paris, 1909, pp. 1-52; PAUL CLAUDEL, Ma Conversion, na Revue des Jeunes, 10 Oct. 1913, pp. 28-34; E. SAINTE-MARIE-PERRIN, Introduction à l'oeuvre de P. Claudel, p. 124.


A graça excita, estimula, ilumina, conforta, para depois triunfar na paz da vitória.
A sua acção torna-se algumas vezes manifesta, quase diríamos sensível à alma que se debate nas ansiedades de uma luta indescritível; outras, é suave, latente, imperceptível, guiando, com a delicadeza de seus toques, o curso dos acontecimentos, dos encontros, das leituras e das reflexões, sem que a urdidura admirável do entrecho manifeste a sua finalidade senão depois do último desfecho. É assim que Deus trabalha continuamente na profundidade das consciências, atraindo-as a sim por vias misteriosas, Ele que quer sinceramente "venham todos os homens ao conhecimento da verdade", como
diz São Paulo, qui omnes homines vult salvos fieri et ad agnitionem veritatis ventre, I Timóteo. 2, 4,2 ou, como ensina São Pedro, "é longânime connosco não querendo que alguns se percam senão que todos venham a arrepender-se", patienter agit propter vos, nolens aliquos perire sed omnes ad penitentiam reverti, II Petri, III, 9.3
A esta acção divina que nunca falta, pode o homem prestar ou negar a sua colaboração. Ao convite do alto pode responder sim ou não, e, na liberdade desta alternativa, assumir toda a responsabilidade de suas consequências.
O estudo deste trabalho interior da alma ­ actividade racional que investiga e discute, acção da vontade que escolhe, aceita, ou recusa, ressonâncias emotivas com suas alternações de entusiasmo e abatimento, de coragem e desânimo ­ tudo isto cai no domínio da consciência e constitui o que modernamente tanto se tem estudado sob o nome de psicologia da conversão. Alguns crentes, assustadiços, retraem-se desconfiados ante estas investigações como se a determinação mais exacta dos fatos psíquicos que
preparam uma volta da alma a Deus importara numa negação da graça, desnecessária ou inverificável. Digamos, de passo, uma palavra sobre a questão.
Ensina a sã teologia que a graça não elimina a natureza, não a destrói nem dela prescinde, mas a supõe para elevá-la à ordem sobrenatural. No processo interior de uma conversão, como em toda a vida religiosa normal, observam-se, portanto, as leis naturais que regem toda a nossa actividade psíquica. Acompanhar e analisar o jogo complexo de todos estes factores, as suas acções e reacções, as que se manifestam à plena luz da consciência como talvez as que se organizam nas penumbras da subconsciência, é evidentemente do domínio e da competência, da psicologia experimental.
2 O qual quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.
3 Não tarda o Senhor a sua promessa, como alguns pensam, mas usa de paciência para convosco, não querendo que nenhum pereça, ma que todos se convertam à penitência.

Há, porém, além destas causas naturais, registadas pela observação científica, uma intervenção de ordem sobrenatural? Para responder a esta pergunta já não tem competência a psicologia. A graça, como tal, não cai no domínio da consciência; a introspecção não pode atingi-la como uma realidade experimental sui generis ou como uma modalidade empírica especial, susceptível de ser discernida pela análise psicológica. Por isso mesmo, pronunciar sobre a sua existência ou inexistência não é da alçada da psicologia positiva, cujos métodos de atingir o seu objecto se limitam à simples observação, interna ou externa. Aqui a decisão final pertence, de direito, à outra ciência, à teologia, que, nos seus processos de conhecimento, possa atingir a ordem sobrenatural.
Aplicamos simplesmente ao nosso caso particular o princípio geral de separação ou distinção dos domínios científicos. O fisiólogo, como tal, não nos pode dizer cousa alguma sobre a alma humana nas suas manifestações superiores. Ele poderá acompanhar de perto todas as transformações orgânicas paralelas ao exercício das faculdades psíquicas, mas além de todas estas oxidações e reduções, assimilações e desassimilações, além de todo o metabolismo cerebral, existe uma actividade superior, de outra ordem? A fisiologia não o sabe nem o pode saber. O seu método é o da observação externa, acompanhada, onde possível, da experimentação, e este método não pode alcançar um fenómeno psíquico no que tem de específico.
Só a introspecção nos revela a existência desta nova espécie de realidade; só a razão analisando as suas propriedades poderá concluir a sua redutibilidade ou irredutibilidade aos fenómenos de ordem puramente orgânica, mas aqui já deixamos o campo da fisiologia para entrarmos no da psicologia racional. Um surdo-mudo diante de um piano estaria em situação idêntica; poderia com a vista acompanhar o movimento das teclas, as vibrações das cordas, investigar e formular todas as leis mecânicas que regem esta complexidade de movimentos. Sobre os sons, porém, sobre a impressão agradável ou desagradável das suas harmonias, sobre a impressão estética, da música não lhe será possível dizer-nos palavra: falta-lhe o sentido que lhe permitiria atingir estas realidades inacessíveis aos seus meios de investigação.
Não tenhamos, portanto, nem receios nem desconfianças de todas as investigações psicológicas no domínio religioso. O que importa é que se respeitem as fronteiras de cada ciência. Como o fisiólogo não deve dirimir questões de psicologia e decretar a inexistência da alma porque não a encontrou, como uma glândula resistente, no fio do seu bisturi, assim não deve o psicólogo, em nome de sua ciência, afirma ou excluir intervenções de ordem superior aos seus processos analíticos de conhecimento. Não neguemos a existência da música quando só com os olhos e sem ouvidos observamos a movimentação de uma orquestra.

Há, pois, uma psicologia da conversão; podemos construí-la com o material, hoje, de uma riqueza extraordinária, acumulado por inumeráveis depoimentos de almas que nos foram legando a narração de suas experiências religiosas. Aqui nos será permitido acompanhar de perto a colaboração do homem no interesse empolgante de suas vicissitudes dramáticas. E é precisamente no seu aspecto psicológico que a conversão nos aparece, não só como uma confirmação prática das nossas conclusões anteriores, senão ainda como um testemunho, em favor da fé, de valor excepcional. Tentam, por vezes, os incrédulos diminuir-lhe a importância, simplificando a seriedade do problema com uma desenvoltura ridícula ­ Caquexia senil, enfraquecimento do cérebro, involução para o estado primitivo teológico ­ da humanidade incipiente. E com esta vacuidade sonora de palavras pensam haver resolvido uma das questões mais graves da psicologia religiosa.
Romanes, amigo de Darwin, materialista nos seus primeiros anos, foi, com estudos mais profundos, reformando as primeiras ideias até voltar integralmente ao cristianismo de seus pais. A sua obra póstuma, "Pensamentos sobre religião. Evolução religiosa de um naturalista do ateísmo ao cristianismo", traça as diferentes estações de seu itinerário espiritual. Ao saber do fato, Haeckel, agastou-se profundamente. Seu primeiro ímpeto foi negá-lo. "Quando pela primeira vez", escreve ele, "tive conhecimento desta conversão por um dos seus amigos, zeloso teólogo anglicano, inclinei-me a crer numa mistificação deste último; porque é notório que os defensores fanáticos das superstições eclesiásticas não escrupulizam em voltar a verdade às avessas quando se trata de salvar os seus dogmas". Mas, "infelizmente", o fato era verdadeiro; o patriarca de Iena consolou-se então com uma explicaçãozinha "científica". "Mais tarde averiguei que se tratava neste caso [Von Bayer também se tinha convertido havia não muito] de uma interessante metamorfose psicológica de que tratei no capítulo 6 do Welträtsel. Nos últimos anos Romanes estava enfermiço"... Foi "debilidade patológica. Para o uso livre e puro do conhecimento racional, a primeira condição é a disposição normal do seu órgão, o Fronema".4
 E como quase todos os grandes naturalistas crêem em Deus, e dos primeiros colegas de juventude do professor de Iena, os mais notáveis lhe abandonaram o materialismo grosseiro, a fraqueza cerebral é a triste condição da maior e da melhor parte da humanidade.
4 Cfr. J. Donat, Die Freiheit der Wissenschaft, Innsbruck, 1925, PP. 273-274. Podemos aplicar ao nosso assunto o que já foi dito de outra atitude do patriarca do monismo alemão. "De uma capacidade mental tão mesquinha como a que se revela nos Enigmas do Universo, de Haeckel, que em sua ingenuidade considera como um gás tudo o que há de invisível na Natureza, não podemos exigir naturalmente que seja capaz, ainda de longe, de seguir os pensamentos aqui expostos". Jacob Von Uexkull, Ideas para uma concepción biológica Del mundo, trad. esp. do alemão. Madrid, Calpe, 1932, p. 47. Pouco antes a obra de Haeckel era severa, mas justamente averbada de "charlatanaria superficial".

Bourget vê as cousas com mais elevação e objectividade. "A conversão de um espírito que, à luz das lições da vida, reconhece o seu primeiro erro, é um dos espectáculos mais belos que nos seja dado contemplar".
5 Sim! A volta de uma alma a Deus oferece outro interesse, outra importância, outra transcendência. É mister estudá-la com mais atenção e simpatia. Não a desvirtuemos puerilmente com uma displicência intolerante e satisfeita de sua superficialidade ou ainda com a vacuidade altissonante de uma palavra grega: desarranjo de fonema! No drama interior da conversão não é difícil distinguir três actos ou fases sucessivas.
A primeira, que prepara e desperta a alma, é geralmente caracterizada por uma impressão profunda de descontentamento, de tédio insatisfeito, de vazio indescritível. A alma entra a sentir vivamente a sua miséria interior, o seu desamparo, a insuficiência de tudo o que a rodeia para fazê-la feliz. O inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te de Santo Agostinho vai-se repetindo sob mil formas diferentes na história misteriosa dos corações. Nesta impressão forte da própria miséria, Deus ainda não percebido se vai aproximando: ego fiebam miserior et tu propinquior, dirá mais tarde o grande africano convertido.
"Vós me fizeste sentir um vazio doloroso", escreve Charles de Foucauld, "uma tristeza até ali nunca experimentada por mim;... ela voltava todos os dias pela tarde quando me achava só no meu aposento... durante as que chamam festas, emudecia-me os lábios e acabrunhava-me; eu as organizava, mas em lhes chegando o momento, era um mutismo, um desgosto, um tédio infinito".
6 O neto de Renan, oficial do exército francês como o nobre Charles de Foucauld, experimentava na solidão dos desertos africanos esta impressão de tédio incurável. Arrancado às mentiras e hipocrisias da vida artificial nos grandes centros urbanos e posto em contacto com a natureza rude e agressiva do Saara, Psichari desce ás profundezas da alma e aí encontra vivos os grandes problemas humanos que a dissipação dos teatros dissimula mas não resolve. A voz de Deus fala-lhe à consciência, como outrora a Santo Agostinho ou a Pascal: "Tu me procuras e eu aí estou neste desgosto de ti mesmo que te
salteou, neste peso da tua alma cativa e até no pesadelo horrendo dos teus pecados".
7- 5 P. Bourget, Oeuvres completes, I, Práface, VIII. 6 Ch. Foucauld, Ecrits spirituels, p. 76. 7 E. Psichari, Le Voyage Du centurion, Paris, 1911, p. 196.

Para a jovem Marie Jaqueline Favre, filha do presidente do parlamento da Savóia, a percepção viva das vaidades terrenas não se fez sentir na solicitude de ermas paragens, mas no mais vivo das agitações e divertimentos mundanos. Índole vivaz e independente, repelia tudo o que pudesse constituir uma ameaça à sua autonomia. A própria direcção de São Francisco de Sales houve de manter-se por muito tempo numa atitude de respeito e reserva prudente. Foi num salão de festas, brilhante e fascinador, que se lhe cravou n'alma a impressão viva das caducidades mundanas. "A jovem Favre dançava maravilhosamente. Indo sua mãe a Chambéry tratar de negócios, as senhoras da cidade que tinham ouvido falar dos talentos de Marie Jaqueline, ofereceram um grande baile para ter o prazer de vê-la dançar. A senhorita Favre lá foi radiante de alegria com o desejo de justificar a sua fama. À primeira nota da orquestra, o governador da região veio oferecer-lhe o braço para romper a dança. Neste momento Deus a esperava. Uma seta divina trespassou-lhe o coração. "Pobre Favre", dizia ela consigo enquanto os outros aplaudiam as suas graças, "que recompensa terás de teus passos ritmados? Que frutos colherás? Dirão: esta menina dançou bem ­ eis tua recompensa". Uma confusão profunda envolveu-a. A ideia da morte, do juízo, a vergonha de ter malbaratado a sua juventude em prazeres fúteis penetraram-lhe profundamente n'alma. Saiu do baile transformada e resolvida a consagrar-se a Deus".
8 Mais tarde foi uma das companheiras de Santa Francisca Fremiot de Chantal, fundadora da Visitação.
Gratry é um jovem de 17 anos. Volta das férias ao colégio onde tirara o segundo prémio. Os colegas deitam-se; ele põe-se a reflectir. Todo o futuro de rosas desfila ante a sua imaginação ardente. Serão novos louros no ano que começa; mais tarde, por que não? Também o prémio de honra na Faculdade de Direito; não lhe falta nem talento nem amor ao trabalho. Depois escreverá e será um autor aureolado de glória como os que mais o foram. Fundará uma família, feliz na pureza de um grande amor... Mas, depois! Depois1 Virá a morte; a morte dos pais, a morte dos amigos que o rodeiam, a própria morte; a vida toda desfeita como um sonho. E assim se vão, umas após outras, todas as gerações humanas a precipitarem-se no abismo fatal. E toda a vida será isto e só isto!... Ocorre-lhe então o pensamento de Deus. Mas Deus existe! E o jovem desce comovido às profundezas de sua alma e de lá brada angustioso: "Deus! Deus! Luz! Socorro! Explicai-me o enigma...meu Deus! Prometo-vos e juro-vos, oh meu Deus! Fazei-me conhecer a verdade e eu lhe consagrarei toda a minha vida". 9
Deus não foi surdo aos seus chamados. O P. Gratry foi um dos mais zelosos apóstolos da juventude francesa na segunda metade do século XIX.
8 Bougaud, Histoire e Saint-Chantal, Paris, 1892,t. I,p. 351.9 A. Gratry, Souvenirs de ma jeunesse, Paris, 1917, p. 40. É preciso ler no original toda a descrição desta crise de alma, PP. 32-40 ­ Como estudo psicológico dos sentimentos que inquietam e dilaceram a consciência nos momentos que precedem as grandes resoluções decisivas, é célebre a página em que A. Manzoni nos pinta a noite agitada do Innominato, Cfr. I promessi sposi, cap. XXI.
 
Em Adolfo Retté é uma questão de honestidade intelectual que lhe crava no coração o primeiro espinho da inquietude. Socialista irredutível, feroz nos seus ataques contra a Igreja, fala um dia a um auditório de vermelhos em Fontainebleau. O assunto fácil de o adivinhar, o materialismo de Haeckel e de Büchner: Deus "exorcizado" definitivamente do Universo, pelas conquistas da "ciência". Terminada a palestra, "quatro convencidos" acercaram-se do orador e pedem-lhe explicações mais minuciosas. Uma vez que o mundo não foi criado por ninguém "como é que tudo começou". A. Retté repugnava afirmar o que não conhecia; balbucia, hesita. E o pequeno incidente lhe pôs em foco o problema das origens que a ciência positiva não resolve.
"Estava profundamente perturbado; sentia-se mal; tinha necessidade de reflectir, a sós, com a minha consciência". Interna-se na floresta. "Mas já não apreciava o encanto da sombra e do silêncio. O coração pesava-me no peito; tinha vontade de chorar; um remorso estranho e insólito parecia tumultuar dentro de mim".10
Foi o primeiro passo na sua conversão; três anos volvidos, A. Retté era católico convicto.
Os motivos que despertam imediatamente esta inquietação adaptam-se quase sempre ao contexto psicológico do futuro convertido e, por isso, variam ao infinito.11
 Num temperamento de puro intelectual é a ânsia de resolver o mistério da existência, de achar o último porquê onde possa descansar tranquila a razão que se não resigna ao suicídio do absurdo.
Numa organização de esteta, a quem a pura beleza seduz, é a desproporção entre as formosuras criadas ou as obras-primas d'arte e o ideal inatingível que o fascina e tortura: Eterna aspiração insatisfeita de uma eterna beleza mais perfeita Que define o sentido do dever.
A uma alma mística que, longe da Igreja, aspira, na sua impotência a uma união mais íntima com Deus ­ caso frequente entre protestantes de boa fé é a vida sacramental católica que atrai, abrindo, no horizonte das esperanças humanas, perspectivas infinitas. 10 A. Retté, Du diable à Dieu, Paris, 1907, p. 15. 11 "Il y aurait... um beau livre à ecrire, et donc le titre serait: La Psychologie de la Conversion, auquel on donnerait pour fondement cette idée si simple et se vrai, qui ni La vérité n'attire à soi toutes lês intelligences par ale même cote d'elle-même, ni La religion ne touche tous lês coeurs au même endroit, ni toutes conversions ne s'opèrent donc pour lês mêmes raisons ou ne procédent de La même origine". F. Brunetière, Discours de combat, Nouvelle série, Paris, 1907, PP. 8-9 Tradução: Não haveria... um bom livro para escrever, cujo título seria: A psicologia da conversão, o que seria a base para essa ideia é tão simples e verdadeira, que nem a verdade atrai para si todas as mentes por escolha dela mesma, nem a religião toca cada coração no mesmo lugar, nem todas as conversões se realizam pelas mesmas razões, ou não derivam da mesma origem. "


Aos que sondam as profundezas misteriosas do nosso coração é esta imensa capacidade de amor que nenhuma criatura é capaz de saciar. Taine, jovem ainda, todo saturado de Spinoza, experimenta esta desproporção radical entre tudo o que nos envolve e o a que aspira a grandeza da nossa alma. Aos 23 anos, escrevia a Prévost-Paradol: "Seriamente, pode amar com toda a tua alma outra cousa afora das cousas perfeitas que nos manifestam a ciência e a reflexão interior? Não sentes que, quando damos este amor a uma criatura finita e real, só o damos por ilusão, imaginando que este ser é perfeito e vestindo-o de toda a excelência que nos depara este modelo divino? Não sei se as cousas se passam em ti como em mim, mas confesso que o amor infinito, que trago, como todos os homens, no fundo do coração, se acha continuamente tolhido no seu surto, quando se orienta para as realizações finitas da essência perfeita; não sei que desventurada previdência me adverte que lhes falta isto ou aquilo e por isso não podem dar corpo ao amor. De mim digo a mesma cousa, sinto que tampouco mereço ser completamente amado".12
Em qualquer destas disposições basta às vezes um fato, por vezes insignificante, para sacudir a alma e desencadear a crise interna. É a dor, divina mensageira a bater-nos à porta, uma destas dores fundas que desmoronam para sempre o frágil edifício de uma felicidade construída sobre a contingência caduca das criaturas ­ fortuna, saúde, amor, glória ­ que para sempre nos fogem. A alma desarvorada debate-se no escuro das agonias interiores. Mais tarde há de raiar a luz e das penas e angústias que tanto a torturaram dirá com F. Coppée: Dor bendita! La Bonne Souffrance!
É a morte com a sua lição austera da brevidade da vida. Diante de um cadáver ­ principalmente se as suas formas lívidas, hoje imobilizadas na fria rigidez sem esperança foram outrora aviventadas por uma alma querida ­ diante de um cadáver surgem em toda a sua ansiedade as grandes interrogações dos nossos destinos definitivos.
O primeiro passo para a conversão representa, pois, um esforço de elevação humana. A inteligência aspira a um conhecimento da verdade integral das cousas; a vontade insatisfeita procura a posse duradoura de um bem real que seja digno do seu amor; a vida, subtraindo-se à dispersão fútil da multiplicidade de insignificâncias, concentra-se em suas profundezas num esforço de realização total de si mesma. Se a maior dignidade da natureza humana é a razão, convém dar à existência um porquê, às suas tendências mais altas uma resposta, aos seus anelos mais íntimos e insofreáveis um objecto condigno. Ânsia de verdade, de razão e de ordem; sentimento desinteressado do dever; lealdade absoluta com a própria consciência; aspiração a um ideal mais puro, a uma beleza mais perfeita, sede insaciável de infinito, numa palavra, o despertar mais vivo de todas as grandes realidades sem as quais o homem cai abaixo de si mesmo ­ eis o que se encontra na raiz desta inquietude sublime, desta nostalgia de perfeição que constitui o primeiro estado d'alma dos que, muitas vezes, sem o saberem, já partiram em busca de Deus. 12 Correspondence d'Hyppolite Taine, t. I, carta de 20.3.1849.


A crise religiosa está declarada.
No segundo ato do drama contemplamos o esforço da alma que deseja resolvê-la: trabalho da inteligência para elevar-se ao conhecimento da verdade religiosa, lutas da vontade para desembaraçar-se do mal e aderir ao bem.
A investigação intelectual orienta-se quase sempre na direcção dos estudos anteriores. Onde a inteligência se tornou, pelo exercício, mais robusta, por aí envereda a fim de resolver as suas dúvidas.
Newman é teólogo, o mais abalizado dos teólogos anglicanos do seu tempo, e talvez a inteligência mais vigorosa que fulgiu na Inglaterra do século XIX. Em torno deste astro de primeira grandeza, gravita, como coroa de satélites, uma plêiade de talentos privilegiados: Mannning, Fabber, Ward. Ele é o chefe incontestado do maior movimento religioso depois da Reforma, o chamado movimento de Oxford, no qual o anglicanismo do Reino Unido colocara as suas mais bem fundadas esperanças de regeneração intelectual e espiritual.
Eis, porém, que, no correr dos seus estudos, lhe salteia uma dúvida angustiosa: será a igreja anglicana a continuadora autêntica da Igreja de Cristo, a herdeira genuína dos ensinamentos do Evangelho? Para um filho respeitoso da Igreja estabelecida, educado em todos os velhos preconceitos da Reforma Roma, não podia haver perplexidade mais dolorosa. A fim de dirimir pessoalmente a questão, era mister, aliado a uma competência de especialista, um estudo positivo e aturado das fontes primitivas do cristianismo.
A um scholar, a um oxfordman de envergadura excepcional, como Newman, não faltava nem uma nem outra cousa. A investigação durou cinco longos anos; as claridades foram-se intensificando com o tempo, e o grande livro sobre o Desenvolvimento da doutrina cristã que ele iniciara como ritualista, assinou, concluído, como católico. "Cheguei a tal evidência", dizia, "que conservar-me fora da Igreja católica, me pareceu um pecado mortal".
Em 1845, depois de agonias interiores cuja intensidade se deixa facilmente adivinhar, o grande Newman abjurara o anglicanismo. "O ano de 1845", escreveu então Gladstone, "marcou a maior vitória alcançada pela Igreja de Roma desde a Reforma".13 13 Cfr. Paul Thureau-Dangin, La renainassance catholique en Angleterre au XIX siècle, Paris, t. I, p. 327.


Brunetière, formado no positivismo evolucionista, ocupara-se de preferência com questões sociais e literárias. Um dia, percebeu que o positivismo levava ao individualismo e este, à dissolução da vida social. A doutrina, a organização, a influência histórica do catolicismo começam a atrair-lhe a atenção e neste rumo orienta os seus estudos e as suas reflexões. Passo a passo, vai conquistando o terreno e em grandes conferências que repercutiam em toda a Europa, o grande professor ia assinalando a evolução das suas ideias sur les chemins de la croyance. Como Le Play, Taine, Balzac e Bourget, chega também ele, de consequência em consequência, à conclusão derradeira de que a questão social é sobretudo uma questão ético-religiosa e só o cristianismo tem nas mãos a chave de uma solução eficaz e completa.
A Lenormant, a Von Ruville e a Pastor foi a história que os reconduziu ao grémio da Igreja. Deus, escreveu Fontenelle, é a encruzilhada para a qual convergem todas as alamedas do pensamento. Do mais insignificante pulvísculo que baila no ar, os olhos, seguindo nas suas reflexões a trajectória do raio luminoso, podem elevar-se até o sol, fonte de toda a luz. De qualquer realidade, material ou espiritual, individual ou social, pode a inteligência altear-se até Deus, princípio de todo o ser, razão que o explica, fundamento fora do qual cousa nenhuma pode ter consistência. E não deixa de ser altamente instrutivo como estas inteligências partidas de todos os rumos do horizonte científico se encontram na afirmação final da mesma verdade. É uma convergência de feixes luminosos que vão, condensando-se, intensificar o esplendor do grande foco. A fé não teme a investigação racional; exige que seja feita com a mais absoluta sinceridade. As almas que podem dizer com Newman: "nunca resisti à luz", ou com Brunetière "tenho consciência desde que escrevo e penso de, em todas as ocasiões, me ter deixado plasmar pela verdade", cedo ou tarde chegam à plenitude da luz.
Paralela ou posterior ao trabalho de investigação intelectual é a luta interna da vontade, mais viva, mais agitada, mais profundamente dramática. A conversão e, em última análise, um ato da liberdade à qual compete imprimir à vida humana a orientação eficaz para a sua finalidade conhecida pela inteligência. Mas a viagem du diable à Dieu é uma marcha ascensional e o homem não se eleva sem esforço. "A verdade é uma eminência", escreveu Le Play, "todos os caminhos que sobem, a ela nos levam".14 Mas o subir, se promete a visão panorâmica dos horizontes amplos, exige a coragem, a audácia e a perseverança dos fortes. Importa romper com hábitos anteriores, submeter-se a uma disciplina, dizer adeus ao diletantismo que só vê na vida um passei pela existência, sem consequências nem responsabilidades e com o direito de colher, à ventura, todas as flores que no caminho lhe solicitam o 14 Le Play, carta ao P. Roullot, na Réforme sociale, 1881, p. 369.



desejo do momento. Esta ruptura é dolorosa, e a luta que a precede, indescritível. Mais que qualquer outro aspecto da conversão é este um drama todo individual que não se representa, idêntico, em duas consciências.
Em Agostinho é o peso das paixões sensuais que ainda prendiam a inteligência já iluminada pela verdade. As páginas das Confissões em que se nos descrevem estas dilacerações íntimas são de um colorido trágico, de uma vivencia psicológica, de um interesse humano que dificilmente poderão ser igualado. "O inimigo tinha nas suas mãos a minha vontade, dela fizera uma cadeia com que constringia. A vontade perversa criara a paixão; a paixão, servida, transformara-se em costume; o costume a que se não resistira tornara-se necessidade. Destes anéis enlaçados se forjara a cadeia de minha dura escravidão.
A vontade nova que em mim nascia de vos servir desinteressadamente, de fruir de vós, oh meu Deus, única alegria verdadeira, era ainda muito fraca para vencer a outra, enraizada pelo hábito. Assim, duas vontades, uma antiga, outra nova, uma carnal, outra espiritual, digladiavam-se e nesta luta se dispersava a minha alma... Estava no ponto de agir e não agia.
Mas já não caía no abismo da minha vida passada, estava de pé na orla e respirava um pouco. Depois, outro esforço, ia atingir, ia chegar, mas não atingia nem chegava, hesitando em morrer para a morte e viver para a vida.
Deixava-me dominar mais pelo mal, companheiro de infância, do que pelo melhor, recém-chegado. Quanto mais se aproximava o instante em que ia mudar, mais se me enchia a alma de horror. Estas bagatelas de bagatelas, estas vaidades de vaidades, amigas minhas de outrora, prendiam-me. Puxando pela minha veste de carne, sussurravam: tu nos deixas! Desde este momento nunca mais estaremos contigo! Desde este momento, isto e aquilo não te será permitido para sempre!...
De outro lado, a casta majestade da continência, serena, digna, estendia-me as mãos piedosas, cheias de bons exemplos – de meninos e moças, juventude numerosa, todas as idades, viúvas venerandas, virgens que haviam chegado à velhice... E parecia dizer-me com ironia insinuante: Como! Não poderás tudo o que puderam estes e estas!... E era um duelo no meu coração, de mim contra mim!"15
No jovem Claudel era o medo dos companheiros, do que dirão, que por longo tempo lhe paralisou o passo decisivo. "Farei esta confissão? No íntimo, o sentimento mais forte que me impedia de declarar as minhas convicções era o respeito humano. A ideia de anunciar a todos a minha conversão, de dizer aos meus pais que não comeria carne às sextas feiras, de me proclamar um destes católicos tão ridicularizados, fazia-me suar frio".16
No caso mais complexo de Newman é a sua situação social na Igreja anglicana, a sua posição de chefe religioso e intelectual de um grande 15 S. Agostinho, Confissões, 1. VIII, c. V e XI. Todo este livro VIII deve ser lido. 16 Les témoins du Renouveau catholique, p. 68.



movimento  que agitava toda a Inglaterra. Abandonar tudo ­ situação financeira, estima dos correligionários, a sua cara universidade de Oxford, - para ir, aos 45 anos, bater à porta de uma Igreja, contra a qual militavam os mais enraizados preconceitos nacionais e em cujo grémio não passaria de um neófito, sujeito às disposições ignoradas de uma autoridade eclesiástica que poderia talvez acolhê-lo com reservas e submeter a provas penosas a sinceridade de suas novas atitudes ­oh!, como isto, na realidade viva das almas, é árduo e custa o sangue do coração! "Meus olhos", escrevia ele, "banham-se de lágrimas quando penso em todas as cousas queridas que deverei abandonar". "Meu coração e meu espírito estão exaustos de cansaço, como os nossos membros quando sobre os ombros pesa um grande fardo". A sua irmã, enumerava os sacrifícios que mais lhe custavam: "Gozo de um bom nome no conceito de muitos, sacrifico-o deliberadamente; mais numerosos são os que me desestimam, vou satisfazer-lhes os piores desejos e dar-lhes o triunfo que mais ambicionam. Farei infelizes aos que amo, irei desorientar quantos instruí ou auxiliei. Vou para quem não me conhece e de quem bem pouco espero. Farei de mim um exilado, e, isto na minha idade! Oh, que é que me poderá levar a esta resolução senão uma necessidade poderosa?" 17
Era a necessidade poderosa e intransigente da verdade que acabou vencendo na sua grande alma.
Manning, contemporâneo de Newman e, como ele, um dos grandes convertidos ingleses do século XIX, teve de lutar com dificuldades semelhantes. Ao iniciar os estudos que o haviam de levar ao catolicismo, ainda anglicano convicto, escrevia:"Todos os laços do nascimento, do sangue, das lembranças, da afeição, da felicidade e do interesse, todos os motivos capazes de abalar e inclinar a minha vontade, prendem-me à minha crença. Pô-la em dúvida, fora duvidar e tudo o que me é caro. Renunciá-la, para mim equivaleria a morrer".18
Iniciados os estudos, enquanto a evidência prosseguia nas regiões superiores do espírito a sua marcha triunfal, o coração continuava cada vez mais dilacerado. No dia 8 de Dezembro de 1850 deixava para sempre a sua paróquia anglicana de Lavington. "Não há palavras", escrevia pouco depois, em carta de 14 de Janeiro de 1851, "capazes de exprimir ou pintar o que sofreu o meu coração ao desapegar-se do único home e do rebanho em que eu despendera 18 anos de minha vida de homem". 19
Os sacrifícios afectivos com a conversão tornaram-se mais penosos. O seu irmão mais velho, Frederico, não o quis ver mais; Gladstone, seu íntimo, rompeu as antigas relações e quase todos os amigos de juventude o abandonaram. Mais tarde, quando Manning faleceu, em 1892, o Times soube prestar homenagem à sua grandeza d'alma e ao seu amor incondicionado à verdade. "Uma das glórias mais fúlgidas do clero anglicano", dizia então o grande jornal londrino, "deixou a Igreja de sua 17 Cfr. Thureau-Dangin, La Renaissance catholique, etc.,t. I, p. 310. 18 E. S. Purcell, Life of Cardinal Manning, London, Macmillan, 1896, t. I, p. 472. 19 Op. Cit. p. 598



Infância. A sua saída não a motivou a ambição, certo, como estava, de chegar pelo menos à dignidade episcopal, nem o amor-próprio melindrado como disseram de Newman os que não conheciam a pureza d suas intenções. Manning não sofreu nenhuma injustiça. Agiu por pura convicção e contrariamente aos seus interesses humanos". 20
Que contraste entre conversões assim e estas apostasias que atiram fora da Igreja tantos desventurados! Aqui nenhum interesse humano, nenhuma tirania de paixões sensuais, nenhuma irritação de orgulho exacerbado por conflitos entre a autoridade e a liberdade, mas uma inteligência de escol, que, durante anos a fio, se aplica desapaixonadamente à investigação da verdade, uma vontade leal, que, a preço de sacrifícios heróicos, eleva toda a vida à altura de suas exigências morais.
O último acto deste drama interior é o encontro final da alma com Deus, num amplexo de paz.
O sacramento da reconciliação, penoso ao nosso orgulho, mas eminentemente pacificador, vem responder às aspirações mais profundas do convertido que deseja aproximar-se de Deus, dar-lhe à justiça infinita uma satisfação de seus extravios e fruir, com a certeza do perdão, o consolo inefável da amizade divina reconquistada. Para a alma religiosa que sente o peso de sua miséria e quer sinceramente voltar à casa paterna, não se descreve a consolação que se experimenta ao ouvir, pronunciado em nome de Deus, o ego te absolvo a peccatis tuis. "Se há paz no céu", escreve Charles de Foucauld, "à vista de um pecador que se converte, houve certamente quando entrei neste confessionário!... Que dia bendito! E desde este dia toda a minha vida tem sido uma cadeia de bênçãos".21
"Recebida a absolvição", diz-nos outro convertido Charles de Bordeu, "- Como Deus deve ser bom! ­ senti a sua paternidade restituída, a alegria de ter reencontrado no seu povo, uma confiança pacífica. A inteligência tornou-se maravilhosamente lúcida. As dúvidas, as objecções caíram no fundo, já não as remexo. Os esplendores deram sua prova... Temera ficar apertado como Credo... Movo-me nele como no infinito... Quisera conservar livre o meu espírito e o conservo, mais e melhor que outrora, porque aderi à verdade, porque soube querer e obedecer".22
Joaquim Nabuco voltou à prática da sua fé, em Londres, no ano de 1892. No dia da confissão, a 28 de Maio, nota em seu diário: "No Oratório. Com o Padre Gordon no Confessionário... Levantei-me alegre, contente de mim 20 Cit. por H. Hemmer, Vie du Cardinal Manning, Paris, 1893, p. 77 21 Ch. De Foucauld, Ecrits spirituels, p. 82 22 L. Rouzic, Le Renouveau catholique, Paris, 1919, p. 89.


mesmo, a vida parecendo-me digna de se viver, e o verde da folhagem do Parque radiante de simpatia comigo. A impressão é divina, pode apagar-se (mas está em mim renová-la sempre), mas, enquanto dura, a alma sente-se alada. Foi na capela de mármore perto de Nossa Senhora das Dores, que a coragem me veio de aproximar-me do confessor. Essa Capela é para mim a nova Fonte de lágrimas porque eu tinha rezado para poder chorar". Poucos meses depois, já no Rio de Janeiro, quis renovar a primeira impressão, voltou ao Confessionário, e, com um pensamento delicado, atribuiu às orações dos escravos a sua purificação consoladora. "Confessei-me hoje", reza o seu Diário a 22 de Dezembro de 1892, "na Matriz de São João Batista com o Padre Macnamara, irlandês, coadjutor da Lagoa... Quem sabe se as orações dos escravos não concorreram...para dar-me a coragem de purificar-me assim?
Mesmo quando tinha perdido a fé, eu admirava a grande concepção do Confessionário. O Padre Gordon atribuía à oração dos seus antepassados católicos a sua conversão. Eu quero crer que foram os escravos que ofereceram a Deus por mim algumas de suas amarguras".23
A confissão não é ainda a união íntima com a divindade, é apenas a purificação interior que a condiciona. Toda a religião é uma orientação da vida em harmonia com uma explicação completa do Universo. O Universo não é compreensível nem pensável senão numa dependência completa e total de Deus. A vida religiosa será portanto o reconhecimento desta dependência com todos os corolários que dela derivam e o ato fundamental da religião consistirá no dom completo de si mesmo a Deus, na oblação total da criatura ao Criador.
E eis por que a Eucaristia, em que realiza esta oferta, em união com a oferta de Cristo, é o centro da vida cristã. O verdadeiro encontro, que, no itinerário da alma a Deus, une e sela a reconciliação definitiva é a comunhão eucarística. Só quem passou por esta experiência inefável começa a compreender o mistério de amor infinito que instituiu a presença real do Deus-Redentor no seio da humanidade pecadora.
O convertido fica então integrado na vida da Igreja, sente-se membro real da família cristã. Os mistérios da fé, vistos do interior, aparecem-lhe sob outra luz, como os vitrais das nossas igrejas: de fora, não passam de grandes manchas cinzentas, irregulares, recortadas por divisões de chumbos; de dentro transfiguram-se inteiramente, os desenhos ressaltam na harmonia das suas linhas, as tintas iluminam-se na vivencia da sua esplêndida policromia. A comunhão, a vida religiosa prática, a experiência viva do cristianismo dissipa as últimas dúvidas, esclarece e conforta.
Joaquim Nabuco, no dia da sua primeira comunhão de convertido, escreve em suas notas íntimas: "Hoje comunguei com o Padre Bos, na capela das Irmãs de Caridade. Pela primeira vez; porque as comunhões do colégio 23 Carolina de Nabuco, Vida de Joaquim Nabuco, 1928, p. 338.


eram em idade em que eu não podia compreender o ato. Graças a Deus, das cinzas da minha fé pude tirar a pequena lâmpada que hoje acendi em honra de Cristo em meu coração e que alumiará a minha forte. Estou grato pelo recolhimento com que recebi o sagrado corpo de Deus e espero que ele se disseminará como alento por todo o meu ser desanimado e como luz pelo abismo que ele trazia dentro de mim. As minhas dúvidas hoje empalideceram todas, fugindo como as corujas do campanário ao raiar do dia". O trabalho de reconstrução de sua fé prosseguiu serena e intensamente. "Dia a dia, o vergar
da minha razão perante a doutrina católica foi-se tornando mais fácil, enquanto o sentimento de minha liberdade se dilatava em vez de se contrair ao encontro da nova disciplina. O ajustamento do meu pensamento individual ao pensamento comum dos católicos se realiza como que por um puro fenómeno de afinidade. Era-me grato trocar as mil perguntas insolúveis, que são a riqueza inútil do céptico, pelo simples ­ omnia mea mecum porto do crente".24
Lacordaire já nos havia descrito como o seu estilo cintilante esta transfiguração interior. "Incrédulo ontem, crente hoje, certo de uma certeza invencível, não era a renúncia de minha razão encadeada de repente numa servidão incompreensível; era, pelo contrário, a dilatação de suas claridades, uma visão de todas as cousas num horizonte mais amplo e numa luz mais penetrante. Não era tampouco o curvar-se subitâneo do carácter sob uma regra estreita e glacial, senão o desenvolvimento de sua energia por uma acção vinda de mais alto que a natureza. Não era enfim a renúncia às alegrias do coração mas a sua plenitude e exaltação. O homem todo ficara; nele só havia a mais Deus que o fizera. Quem não conheceu este momento, não conheceu a vida do homem". 25
A. Von Ruville refazia, pouco depois, as mesmas experiências consoladoras. A comunhão foi para ele uma fonte de revelações inesperadas. "Com excepção das diferenças dogmáticas, eu havia considerado a Santa Comunhão mais ou menos como a ceia protestante... Mas como foi diferente a realidade! A boa vontade de crer, o recolhimento, já se vê, eram necessários. Mas em benefício e em graça recebi muito mais, intimamente mais, do que dava. Da primeira comunhão emanava uma força mística que revolucionava até o íntimo todo o meu ser e elevava minha alma a uma felicidade até então desconhecida e incompreensível".26
O ilustre professor de história moderna tinha vindo à fé no termo de prolongados estudos. "Quis crer, porque qualquer outra atitude me parecia ilógica... As revelações fundamentais do cristianismo... tornaram-se para mim, verdades incontestáveis".27
Uma vez no grémio da Igreja, - coincidência notável 24 Op. Cit. p. 339. 25 Lacordaire, Mémoires, cfr. Chocarne, Le R. P. H. D. Lacordaire, Paris, 1866, t. I, PP. 58-59. 26 Albert Von Ruville, Retour à La Sainte Église, Paris, 1911, p. 42. 27 Op. Cit. , p. 11.



­ experimenta  esta mesma impressão de liberdade intelectual de que há pouco nos falava Nabuco. "Depois de minha conversão ao catolicismo penetrou-me todo o ser um sentimento agradável? "eis-me livre, enfim", exclamei... Aos olhos de seus adversários, nossa Igreja passa por uma penitenciária, onde os seus membros são submetidos à mais intolerável tirania de consciência, onde a palavra, o pensamento, a inteligência no seu trabalho, qualquer que seja, não se podem mover senão num círculo acanhado. E no entanto o meu sentimento era o verdadeiro; a alegria de me ver livre, longe de diminuir pelo tempo adiante, não fez senão aumentar".28
Assim é; a verdadeira liberdade não está com os que a cada instante se ufanam de "livres" pensadores, escravos, na realidade, de suas paixões, de seu orgulho, de seus preconceitos, de seus sistemas; a liberdade genuína só se encontra nos que têm a coragem de ver a verdade inteira e realizá-la animosamente: veritas liberabit vos.
Mas não é só este sentimento de libertação ou esta consolação religiosa que produz n'alma a volta a Deus. É muito mais profunda a mudança determinada por esta orientação radicalmente nova, impressa à inteligência, à vontade e à acção. A conversão ao cristianismo é acompanhada de uma pacificação interior total, de um repouso inefável de todo o ser na tranquilidade de uma ordem essencial restabelecida. Ouçamos alguns dos depoimentos que, há 20 séculos de cristianismo, se sucedem numa unanimidade impressionadora.
Quem percorre nos princípios da nossa era a literatura pagã, tem a impressão de um cansaço, de um esgotamento senil; achamo-nos realmente em face de um mundus senescens. Em contraste com esta decrepitude, ressalta, num relevo fortemente vincado, a juventude d'alma, a alegria, moderada nas suas expressões, mas profunda nas suas raízes, da sociedade regenerada pelo baptismo cristão. Os nossos hinos primitivos são cantos de acção de graças, ritmados com hossanas e aleluias. "Meu coração exulta e rejubila; creio, achei o meu repouso, porque é fiel Aquele no qual eu depositei a minha fé... Exultemos na alegria do Senhor".29
Clemente de Alexandria frisa o contraste em antíteses elegantes: "O quinhão dos gentios é a volúpia; dos hereges, o espírito de contradição; da Igreja, a alegria".30 São Cipriano, advogado e orador, depois bispo e mártir: "Errava às cegas nas trevas da noite, balouçado no mar agitado do mundo... ignorando a minha vida, estranho à verdade e à luz... julgava impossível desembaraçar-me dos vícios de que era escravo, desesperara do melhor, tanto 28 Op. Cit. p. 157. Todo este capítulo 5 é consagrado a um estudo muito perspicaz sobre a liberdade intelectual na Igreja. 29 Odes de Salomão, O de XXVIII. Estas odes, de origem ainda não bem esclarecida, são cânticos espirituais, cuja composição remonta provavelmente à primeira metade do século II. Todos eles exprimem, sob as mais variadas formas, a grande felicidade de ser cristão. 30 Strom, VII, 16, 101,3.


me comprazia nos meus males que se me haviam tornado companheiros familiares... Mas a água regeneradora lavou as nódoas de minha vida anterior... uma luz do alto difundiu-se no coração purificado... achei fácil o que antes me parecera difícil, possível o que julgara impossível".31
E poderíamos escrever um volume sobre tristezas pagãs e alegrias cristãs. Hoje, no meio do nosso mundo repaganizado, e por isso a ocultar sob as aparências de uma alegria ruidosa a melancolia, o tédio, a tendência para o suicídio, para a destruição do ser, para o nada, a juventude imortal do cristianismo produz nas almas os mesmos efeitos de dilatação, de paz e de plenitude.
Teodoro de La Rive, depois de lutas interiores indizíveis, abjura o calvinismo em que havia mais de três séculos vivia a sua família e volta à Igreja antiga. Pouco depois de abjurar o protestantismo, escrevia: "Os últimos dias que passei em Roma foram de uma alegria e de uma paz perfeitas. Estava maravilhado e feliz de ver que era tão fácil ser católico, e começava a descobrir na prática do catolicismo tesouros de graças e belezas que nunca suspeitara".
"Melhor que nunca compreendia que o catolicismo é a religião natural das almas livres, generosas e fortes".32
Outro protestante ilustre que já tivemos ensejo de citar várias vezes, o prof. Von Ruville assim exprime as suas impressões: "Todas estas experiências deliciosas, sobre as quais não me parece deva insistir, convenceram-me não só na inteligência mas ainda no mais íntimo d'alma que, a fim de chegar a possuir a tranquilidade, a verdadeira felicidade e um juízo seguro em todas as dificuldades da vida, é necessário ter fé nas verdades dogmáticas, que esta fé encerra em si o desejo da perfeição moral e sem ela não é possível chegar a uma verdadeira moralidade".33
Assistimos, há pouco, as dilacerações profundas que agitaram a grande alma de Newman. O passo decisivo foi dado; o sacrifício, completo. Com a resolução heróica entrou-lhe para sempre a paz no coração. Quase 20 anos depois, ele podia afirmar com verdade: "Desde que me fiz católico tenho vivido numa paz e num contentamento perfeitos... Nunca experimentei uma só dúvida... Era como um viajante que entra no porto depois da tempestade. E o gáudio deste repouso dura até hoje sem interrupção".34
Sentimentos análogos em Manning. Ao seu companheiro de abjuração, Hope Scott, escrevia a 21 de Outubro de 1851, poucos meses depois de 31 Ad Donatum, 3 sqq. 32 Theodore de La Rive, De Genève à Rome, Paris, 1895, PP. 178-181. 33 Alb. Von Ruville, Retour à La Sainte Église, Paris, 1911. 34 Newman, Apologia pro vita sua, 5ª. Parte.



convertido: "Que resultado feliz! Como a alma, no paraíso dizia a Dante: e da martírio venni a questa pace".35
"O que até ali não passara de uma conclusão da razão pura", confessa ainda Manning, "tornou-se de então para cá uma convicção íntima d'alma. Uma concepção da verdade, baseada numa certeza sobrenatural e verdadeiramente divina encheu-me de tal maneira o coração e a alma, que nunca mais, nem por um só instante, se elevou a sombra sequer de uma dúvida no meu espírito e na minha consciência. Admirava-me, pelo contrário, que uma verdade, agora para nós evidente, houvesse podido por tanto tempo escapar ao nosso conhecimento. Tudo o que eu podia dizer resume-se nisto: sei uma cousa, é que antes era cego e agora vejo".36
No ano seguinte ao da sua conversão escrevia ao Times: "Na Igreja católica encontrei tudo o que procurava, e até mais do que eu poderia ter imaginado antes de lhe pertencer".37
 Esta paz inalterável que acompanha a doação completa das grandes almas a Deus foi também o prémio de Charles de Foucauld: "Vivo numa grande paz interior... sou feliz e nada me falta... sou o mais feliz dos homens".38
O conde de Schouvaloff chegou também aos cimos luminosos da fé depois de longas e árduas ascensões. Na plena madureza dos anos, volvendo um olhar retrospectivo, assim apreciava as peripécias de sua existência agitada: "Tenho 53 anos. Cheguei a este período da vida... em que a realidade aparece enfim em sua nudez, de ordinário tão repugnante e tão triste Sim, a experiência está feita; para mim a verdade é bela... Subi de verdade em verdade, de claridade em claridade; achei o lugar do meu repouso na vida religiosa, nestes cimos que se elevam acima da região das tempestades...
Satisfeito com o presente, esperando mais do futuro, não suspiro pelo passado... Desde o dia da minha conversão, a ideia do infinito, da perfeição de Deus, nunca ma abandonou; tornou-se-me a companheira necessária e contínua da existência". E lembrando-se dos seus caros compatriotas russos, aos quais desejara comunicar a sua ventura, exortava-os nestes termos: "A verdade merece ser conquistada a preço de qualquer sacrifício... rezai pela nossa cara pátria; pedi e recebereis; e na alegria de vossas almas sentireis que só uma convicção verdadeira dá a paz e a serenidade, e que Deus recompensa sempre o sacrifício com a felicidade".39
Na geração dos Retté, dos Huysmans e dos Coppée, e na mais recente dos Péguy, dos Psichari, e dos Joergensen poderiam colher-se a mãos cheias 35 Rob. Ornsby, Memoirs of James Robert Hope-Scott, London, 1884, II, p. 93. 36 Hedley, Oração fúnebre, Tablet, 1892, I, 124. 37 Madaune, Histoire de La Renaissance du Catholicisme en Angleterre au XIX siècle, Paris, 1896, p. 470. E um grande convertido alemão: "Paz completa só se encontra na Igreja Católica. É o que experimento todos os dias". Langbehn, Der Geist dês Ganzen, Freib. I, Br, 1930, p. 225. 38 Ch. De Foucauld, Écrits spirituels, Paris, 1925, pp. 233-234. 39 Schouvaloff, Ma conversion et ma vocation, Paris, 1901, PP. 257-258, p. 354.


Expressões de sentimentos semelhantes. Cada um, segundo o seu temperamento, externa esta satisfação indizível de haver encontrado, por entre as misérias da vida, a luz da fé que salva. Comentam todos a seu modo estas palavras de um deles, J. Maritain: "Oh luz santa, os que vêem a ti do fundo do abismo amam-te porventura com um entusiasmo mais impetuoso que os outros, quando tu te manifestaste; mas a preço de ma intensidade de miséria de que não podem fazer ideia os que tiveram a graça de nascer e crescer na fé". 40
Todos estes depoimentos convergentes, que se poderiam multiplicar sem grande esforço, são de uma importância psicológica fundamental.
Lembramo-nos ainda do ponto de partida de toda a conversão: uma inquietude nascida do desejo de dar à vida um significado, de satisfazer as aspirações profundas do que há, em nós, de mais nobre e elevado. A estes brados da angústia humana, a fé, abraçada e vivida, vem dar a sua resposta tranquilizadora.
Na inteligência, à perplexidade e à dúvida sucede a segurança da certeza. É a entrada no reino luminoso da verdade. O homem mente e vive de mentiras. É a mentira da palavra com que tantas vezes, por vaidade ou interesse, se disfarça a realidade sob o véu de expressões falazes. É a mentira da vida: afivela-se a máscara de uma personagem e no teatro social se representa um papel que não corresponde à sinceridade do que é. O mundo está cheio destas hipocrisias e deste convencionalismo artificial. É a mentira da consciência pela qual nos escondemos a nós mesmos, as nossas deformidades morais, dissimulamos os nossos defeitos, exageramos as nossas virtudes, "racionalizamos" as intenções torcidas. É principalmente a mentira humana por excelência, o engano fundamental sobre a nossa natureza.
Vivemos como se fôramos independentes na nossa essência e actividade. Esquecemo-nos que acima de nós há um Deus, a quem devemos adoração, reconhecimento, obediência e amor. Eritis sicut dii. Tentamos viver como se fôramos deuses e caímos abaixo da dignidade de homem. É de todas estas mentiras funestas que nasce o mal-estar profundo de quem está fora da ordem e delas é que começa a libertar-nos a conversão sincera. Com Deus entra n'alma a verdade que irradia a sua luz sobre a consciência e as cousas. A vida aparece-lhe com o seu destino supremo, e este porquê último harmoniza e subordina todas as finalidades secundárias. A razão sabe donde e para onde vai. Esquivar estas questões é indigno de um ser racional; orientar a própria actividade, sem as resolver, impossível. A dor tem a sua explicação e a sua utilidade. O sacrifício, inseparável do dever que condiciona toda a dignidade, encontra, com a sua razão de ser, a força misteriosa que lhe alimenta as energias inesgotáveis. A fé transfigura a visão da existência. Não é ainda a plenitude da luz, ma já é a posse das certezas essenciais, sem cuja claridade o 40 J. Maritain, Antimoderne, Nouv. Edition, Paris, 1922, p. 237.



universo é uma contradição, a vida, indigna de ser vivida, e o homem, o mais infeliz dos seres.
Segurança na inteligência; unidade na vida. Foi-se aquela dissipação que angustia e esteriliza. As actividades, antes desagregadas, flutuantes, dispersas, concentram-se e solidificam-se em torno de um ideal definido. "Fui cortado em pedaços, oh meu Deus! No dia em que me separei da vossa unidade para dispersar-me numa multidão de objectos; Vós vos dignastes recolher os pedaços de mim mesmo".41
Das profundezas d'alma emergem novas energias que se ignoravam. A tonalidade geral da vida eleva-se expandindo-se harmoniosamente do sentimento de uma unidade que se reconquistou. A uma existência desorientada e vazia sucede a síntese de todas as actividades polarizadas para Deus; uma fidelidade generosa ao dever substitui-se ao livre borboletear por todos os prazeres lícitos e ilícitos; a caridade, a dedicação, o desinteresse que sabe realizar o dom de si mesmo tomam o lugar do egoísmo que faz gravitar homens e cousas ao redor de uma minúscula individualidade. A consciência de que a vida assim se concentra, se unifica para realizar-se integralmente e expandir-se em toda a sua fecundidade eis a origem da alegria e da paz dos convertidos.42
A paz é a tranquilidade da ordem, é o bem inseparável do dinamismo normal das actividades humanas. Cada acto de uma faculdade que atinge normalmente o seu objecto é fonte de gozo; cada dever cumprido traz uma satisfação de consciência. O dever primeiro do homem, o mais importante e essencial, é tender sinceramente para o seu fim último ­ conhecer e amar a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma. O convertido que conheceu esta verdade capital, que para realizá-la não recuou ante a exigência de
nenhum sacrifício, sentirá a mais profunda e indescritível das alegrias que é dado ao homem experimentar na terra. O bem-estar é o prémio inseparável do bem-pensar e do bem-fazer. Agora, para ele, a vida já não será este tributo forçado pago, em cada instante, à destruição, à morte, ao nada. A história de uma existência humana não se resume na destruição progressiva e definitiva do próprio ser. Deus recolherá o que o tempo dissipa, e dos materiais efémeros construirá um edifício eterno. Os seus arrependimentos e os seus propósitos, as suas resistências ao mal e os seus esforços para o bem, a multidão infinita dos pequeninos sacrifícios com que assegurou o cumprimento do dever de cada dia, - todas estas parcelas infinitésimas de um imenso trabalho de aperfeiçoamento moral, que os arquivos da nossa memória não guardam com tenacidade completa, o Primeiro Amor conservará com indefectível fidelidade a 41 "Colligens me a dispersione in qua frustatim discissus sum dum ab uno te aversus, in multa avanui". S. Agostinho, Confissiomes, 1, II, e. I. 42 William James pôs em relevo todos estes efeitos ­ que ele chama biológicos ­ do sentimento religioso: iluminação interior, satisfação lógica e fecundidade prática. Uma boa parte da sua obra capital, Varieties of Religius Experience, é consagrada ao seu estudo.



fim de dar-nos, um dia, para sempre, o nosso ser definitivo, na sua plenitude de realidades que não passam.
Toda esta grandeza do plano divino, digno do homem e inspirado numa Bondade infinita, objecto da nossa fé, entra na alma do convertido como verdade, como esperança, como solução completa do enigma da existência. E a paz que lhe inunda a alma é o fruto espontâneo de uma ordem realizada, de uma vida que se elevou na verdade dos seus destinos.
Destarte, à voz dos crentes, que nunca tiveram a desdita de perder a luz da fé, os que voltaram tarde à casa paterna vêm acrescentar o seu testemunho, comovedor, entusiasta, por vezes trágico, à verdade daquela palavra que há 20 séculos promete e dá o por que mais anelam os homens: a luz da vida e a paz da alma. Habebit Lumen Vitae! Invenietis réquiem! ("A Psicologia da Fé" ­ Obras Completas do Pe. Leonel Franca, SJ ­Livraria Agir Editora ­ 1952 ­ págs. 195/227).

Texto integral do livro


Nenhum comentário:

Postar um comentário