domingo, 18 de novembro de 2018

A violência na vida de adolescentes e jovens



Por: Zilah Meirelles e Regina Herzog

A violência na adolescência constitui matéria de reflexão de diversas áreas do saber. Quando dizemos que hoje em dia muito se fala sobre o assunto, isto não significa que só recentemente a violência passou a fazer parte de nosso cotidiano. É inegável que ao longo da História o fenómeno sempre esteve presente. Porém, dependendo das circunstâncias, os actos de violência podiam ser justificados em nome de uma causa maior ou considerados uma transgressão a ser punida.

Actualmente, a violência está de tal forma disseminada, assumindo as mais variadas formas, que se tornou quase impossível precisar suas causas e propor medidas eficazes para sua extinção. Esta questão se torna ainda mais complexa quando as agressões dirigem-se à população infanto-juvenil. A acção violenta envolvendo crianças, adolescentes e jovens - em fase de crescimento e desenvolvimento - pode deixar sequelas que os acompanham em sua vida adulta, impedindo o sujeito de estabelecer para si próprio critérios que lhe facultem o exercício de sua liberdade e o respeito pela liberdade alheia.

A violência contra crianças e adolescentes é bastante abrangente. Pode-se apontar um quadro de situações desfavoráveis como o abandono; o extermínio; os maus tratos; os abuso físico, sexual e psicológico; a exploração do trabalho infanto-juvenil; entre outros. Mas afinal por que nos dias de hoje violência e adolescência apresentam um vínculo tão forte? É a questão que este capítulo procura analisar.

A violência nas relações humanas
O homem possui capacidades que o distinguem de todas as outras espécies, entre elas a de discernimento, que o permite julgar, apreciar, optar, tornando-o sujeito do processo histórico-social e dotado de um valor essencial: a liberdade. A grande questão é como entender o exercício dessa liberdade, levando em conta a liberdade de seu semelhante? E, nesta perspectiva, como avaliar uma acção violenta sob o prisma de uma quebra de um contrato entre duas partes?

A história dos povos e da sociedade tem sido permeada por violações dos direitos humanos, porque nela se observa, segundo Veronese (1998), “...uma tendência de se reprimir as necessidades das pessoas, dos agrupamentos humanos ou mesmo de povos inteiros”. Na medida em que o homem é impedido de se desenvolver plenamente, dá-se início a um processo de violência, que se pode manifestar nas mais variadas formas, servindo-se de diferentes meios. A violência atinge a integridade da pessoa, a sua moral e o seu corpo, em outras palavras, atinge a estrutura psíquica mais profunda do ser humano.

O termo violência refere-se à vida de relação do ser humano: relação com o mundo, com os outros e consigo próprio. Provém do latim vis, que comporta a ideia de ‘força’, ‘vigor’, ‘potência’, podendo também designar o ‘emprego da força’. De acordo com Dadoun (1998, pg. 10), “vis serve para marcar o ‘carácter essencial’, a ‘essência’ de um ser”. Nesta última acepção, é possível dizer que a violência é algo inerente ao ser humano, ou seja, faz parte da natureza humana, o que leva o referido autor a defender a ideia de um homo violens. Em contrapartida, também se fala da violência como algo externo ao homem, algo que lhe é impingido, sendo que toda resposta, mesmo que violenta, passa a ser vista como uma reacção ou forma de defesa, por parte do homem, às tentativas de cerceamento de sua liberdade. Assim, por um lado fala-se do homem como agressor nato e, de outro, como vítima.

O problema que ambas posições apresentam decorre do fato de se atribuir à violência uma essencialidade, em lugar de vê-la como um fenómeno que implica uma relação. Não se trata de considerar uma relação simples com papéis bem definidos - o violentador e o violentado - mas de pensar o que não funciona na relação entre dois sujeitos, ou mesmo do sujeito consigo próprio quando emerge uma situação de confronto, sem emitir, de modo apressado, juízos de valor. Porém, quando se situa a violência em um ou em outro pólo, a única preocupação parece ser a de “conter”, ‘educar’ ou mesmo ‘reprovar’, sem se efectuar uma reflexão maior sobre o que, num primeiro olhar, se presentifica com uma força ou um vigor que pareça injustificado.

Por um lado, factores políticos, económicos, sociais e culturais criam situações em que a violência é perpetrada aos seres humanos, mas não se pode negar que o ser humano age com impulsividade em determinadas situações. Ou seja, não é tão simples precisar a origem e os motivos da violência. Nessa perspectiva, este fenómeno requer uma avaliação cuidadosa antes que se rotule um comportamento ou uma situação como violentas. Por que, na sociedade contemporânea, violência e adolescência mantêm um vínculo tão forte?

A violência contra adolescentes e jovens é mais visível hoje devido aos meios de comunicação, que são velozes em apresentar os fatos violentos, potencializando este fenómeno de forma tão negativa. Todavia, como observa Veronese (1998), a violência tem sido de tal modo banalizada, que a população acaba deixando-se levar, cada vez mais, pela acção violenta. A violência que deveria assombrar, conduzindo a acções positivas, abrindo um espaço de resistência para estimular atitudes construtivas e não punitivas, acaba por tornar omisso o ser humano. E assim, a indignação inicial dá lugar à passividade, ao descaso ou, no outro extremo, pode conduzir a uma atitude sombria, de revolta contra tudo e contra todos.

Com tantos sofrimentos e mortes de adolescentes e jovens, o futuro do nosso país parece envolto em um imaginário de violência que revela um modelo social perverso. Situações antes consideradas excepcionais passam a ser vistas como corriqueiras: “coisas do cotidiano”. Esta constatação pode nos levar aos seguintes questionamentos: que mundo queremos? Que juventude estamos formando? Que tipo de impacto a violência vem causando nos corpos e nas mentes daqueles que serão os adultos do Brasil do amanhã?

Adolescentes e jovens: entre perpetradores e vítimas

Falta de preparo, estrutura organizacional deficitária, modelo económico concentrador e excludente, situação de pobreza; todos estes factores têm uma importância fundamental na análise da situação com que nos defrontamos nos dias de hoje. Acrescente-se a isso as transformações vertiginosas que vêm ocorrendo em todos os sectores da sociedade: a questão da globalização, por exemplo, suscita, entre os profissionais de várias áreas, uma discussão acalorada sobre o futuro da sociedade e, mais especificamente, do adolescente.
Aqui cabe uma ressalva: apesar da pertinência de considerações de carácter social, económico e político, que levam a uma intensificação da violência na adolescência, não podemos dizer que as sociedades mais “justas” se encontrem livres desta questão, ou mesmo, que tenham a questão sob controle. Se olharmos para a nossa própria realidade, vamos nos deparar com situações de violência na população adolescente de classe média e alta. Por exemplo, o caso do grupo de adolescentes em Brasília que ateou fogo no índio Galdino, da tribo Pataxó. Casos como este nos obrigam não a relativizar os aspectos socioeconómicos, mas indagar o que há para além deles, ou juntamente com eles, que possa nos ajudar a compreender melhor a questão da violência na adolescência.

Por outro lado, o reconhecimento da categoria “adolescência” pela sociedade é recente. Até então, dividia-se o desenvolvimento humano entre infância, maturidade e velhice, ficando o adolescente ora identificado com a criança, ora com o adulto. Neste sentido, só há pouco tempo o adolescente passou a ter um lugar na sociedade e podemos dizer que, enquanto a violência, na actualidade, se alastrou, perdendo uma determinada circunscrição, em contrapartida o adolescente passou de direito a ocupar um lugar na sociedade. Cabe perguntar que lugar é esse. Nas transformações vertiginosas que caracterizam os tempos atuais, a sociedade parece ter perdido referências fundamentais para o convívio social, que lhe permitiam legislar e estabelecer modelos de justiça, igualdade e fraternidade. A sensação de desterritorialização, de uma ausência de certezas sobre si próprio e sobre o mundo, de falta de perspectivas futuras, é tão intensa que o ser humano tem dificuldade de sustentar seus valores e passar para as novas gerações um sentido para a vida. De certo modo este quadro acaba estabelecendo um solo fértil para o agravamento da situação de violência.

Numa definição, bem simples, a adolescência se caracteriza por um período de grandes transformações biopsicossociais. O que marca este processo é uma busca de identidade que, paradoxalmente, se pretende distinta, diferente de tudo que esteja instituído. Talvez seja mais apropriado dizer que se trata, para o adolescente, de uma busca de singularidade, busca que comporta uma ambiguidade. Estamos habituados a considerar o adolescente como um transgressor em virtude de sua recusa em aceitar normas e limites. Parafraseando uma velha canção, diz-se que o adolescente é “um rebelde sem causa”. Estas designações não são destituídas de sentido se entendemos este processo como uma busca de singularidade. Contudo, tornam-se problemáticas quando o sentido dado tem um carácter negativo.

O adolescente não se fixa em nenhum modelo, acompanhando com aparente facilidade as mudanças que ocorrem no mundo. É esta aparente labilidade emocional que faz com que o adolescente seja percebido pela sociedade como alguém sem um papel definido, em última análise, como um irresponsável de quem muito se exige e, para quem, pouco se concede. Mesmo que não seja preconceituosa, esta designação deixa implícita a necessidade de medidas educativas que, na maior parte das vezes, não levam em conta a labilidade emocional como constituinte do próprio processo em que se encontra inserido o adolescente, além de ser de fundamental importância em sua busca de identidade.

As medidas educativas têm como objectivo maior adaptar o adolescente à realidade, tornando-o responsável e propiciando a inserção no universo adulto. Dois aspectos merecem consideração: em primeiro lugar, a grande contradição é que o que se denomina como realidade comporta um elevado grau de violência social. Na prática, é como se alguém ordenasse ao adolescente que aprenda a conviver em sociedade segundo determinadas regras, sendo-lhe oferecido como modelo uma sociedade onde o que impera é uma ausência de referências. Em segundo lugar, a tarefa de educar, formar um adolescente, exige que se tenha presente não só sua capacidade de aprender mas, fundamentalmente, seu potencial afectivo, principal condição para que o adolescente estabeleça laços que possibilitem, no futuro, uma inserção mais criativa na sociedade.

Uma saída seria conscientizar a população adulta a ocupar, com mais propriedade, este lugar de modelo com o qual o adolescente deveria identificar-se. Trata-se de uma proposta pertinente, mas a desigualdade que se acentua cada vez mais dificulta a viabilização de tal projecto. Apesar disso, não devemos desistir da empreitada.

A questão da violência é de tal complexidade que leva aqueles que se dedicam ao tema a distinguir suas variadas formas de apresentação a partir dos aspectos que conformam determinadas situações. Assim, por exemplo, podemos falar de violência urbana para mostrar como um crescimento desordenado das cidades propícia a violência; ou de violência intradomiciliar, procurando circunscrever, no convívio familiar, as causas da violência. Ações sociais e políticas nas áreas do trabalho, da saúde e da educação certamente reduzem os conflitos existentes. Devemos ter presente que normas, preceitos e leis não são instituídos de modo independente da própria sociedade. Quando o que se denomina violência se caracteriza por um excesso ou um desvio daquilo que é a norma, corre-se o risco de forçar a obediência a leis que, muitas vezes, estão a serviço de uns poucos.

Com relação à necessidade de escutar as reivindicações afectivas do adolescente, podemos detectar nas situações de violência (urbana, intradomiciliar, social e outras) a ausência deste aspecto. Conforme assinalamos acima, violência significa ‘força’, ‘potência’, ‘vigor’, palavras que certamente servem para definir a adolescência. Isto porque, se podemos detectar no adolescente uma labilidade emocional, não podemos esquecer que ela expressa, antes de tudo, sua potência para investir sua emoção, mesmo que momentaneamente, em tudo o que faz e em todos com quem lida. A liberdade, para o adolescente, diz respeito à possibilidade de deixar fluir seu afecto. Longe de ser negativo, o que se chama de irresponsabilidade tem muito mais a ver com o fato de que esta força afectiva ainda não encontrou onde se fixar.

Neste quadro todas as normas, preceitos, limites impostos são vivenciados pelo adolescente como impeditivos da expressão de seus anseios e desejos. Na medida em que esses anseios e desejos são difusos, a busca se torna desordenada, visando tão somente a uma satisfação imediata. Em sua relação com o mundo, com os outros e consigo próprio, nenhum critério de avaliação é levado em conta. Para ele, pensar, ponderar, aguardar uma ocasião mais propícia são palavras vazias e toda acção precede a avaliação, fazendo com que a satisfação momentânea de seus desejos acabe por acarretar um conflito. Em outras palavras, o impulso para a realização de um desejo é de tal intensidade que torna difícil, para o adolescente, levar em conta a realidade. Por este motivo, toda análise sobre a questão da violência, em suas várias modalidades - urbana, social, intradomiciliar, institucional -, e que envolve a adolescência, deve dar relevo ao aspecto afectivo constituinte de sua formação.

Conforme sublinhamos acima, o processo de busca de uma identidade comporta uma ambiguidade, pois se nos referimos à necessidade de o adolescente se distinguir entre os demais, verificamos, em contrapartida, que uma das características mais marcantes é sua identificação com grupos de sua faixa etária ou, segundo seus próprios termos, o pertencimento a sua “tribo”. Nesta identificação ocorre um apagamento das diferenças e uma idealização sem crítica daquele ou daqueles que dentro das “tribos” são os “mais bem-sucedidos”, segundo a perspectiva do adolescente.

Se por um lado esta situação corresponde a um processo normal de desenvolvimento, também pode derivar de dificuldades emocionais no espaço familiar. Quando a falta de habilidade da família em lidar com o adolescente e as próprias dificuldades de ordem económica despertam nos pais um comportamento agressivo, o conflito de gerações dificulta o adolescente a enxergar em casa um modelo com o qual possa se identificar. Aí ele se volta para sua “tribo”. O que se depreende da fala dos adolescentes é uma carência afectiva que acabará por comprometer seu desenvolvimento. Além disso, uma situação como esta também pode gerar, da parte do adolescente, atitudes violentas na medida em que se sente respaldado por seu próprio grupo.

Esta situação é paradigmática do que se caracteriza como violência social. O ser humano está inserido num universo onde a relação entre os pares é vital. Ou seja, é fundamental que no processo de desenvolvimento o adolescente estabeleça laços sociais que lhe permitam fazer parte de um grupo. Se ele não encontra um espaço no seio da família, certamente irá procurar em outros lugares. Na actualidade, o modelo com o qual o adolescente irá se identificar está tão destituído de referências seguras, tão banalizado em termos de quaisquer valores, que se torna difícil forjar sua própria identidade. Além do mais, o social implica, por definição, uma renúncia de satisfação imediata na medida em que é preciso levar em conta o outro. Se não é fácil para o ser humano, de uma forma geral, concordar em abrir mão da satisfação imediata, para o adolescente, que se vê e se sente como ‘dono do mundo’, esta tarefa é muito mais árdua. Nesta dimensão, as exigências da vida em sociedade são percebidas, pelo adolescente, como uma violência.

A formação do adolescente precisa considerar que a própria construção da identidade pressupõe que um outro - os pais, os educadores, a sociedade - funcione ao mesmo tempo como agente propiciador (modelo) e como aquele que impõe limites. Exercer este duplo papel requer, antes de tudo, sensibilidade. Por outro lado, sabemos que aquele que serve de modelo também tem uma expectativa em relação ao adolescente. E esta expectativa pode estar comprometida com os próprios ideais do adulto, sonhos irrealizados, desejos frustrados, impedindo, muitas vezes, o adolescente de dar voz a seus anseios. Se esta atitude não é devidamente dimensionada, certamente podemos estar diante de uma relação que se configura como violenta. Deste modo, se por um lado é bastante difícil para o adulto exercer este duplo papel, por outro o trabalho do adolescente também não é simples. O vigor que o adolescente imprime, em sua busca de identidade, vai exigir que este processo de identificação com o outro não implique uma destruição de si.

A violência se caracteriza por uma relação onde se verifica uma quebra de contrato entre duas partes. Na questão da adolescência, outro factor se soma a isso: trata-se do aspecto afectivo que permeia suas relações e que, no processo de busca de identidade, precisa ser levado em consideração.

Violência, Juventude e Políticas Públicas

A violência é um tema corrente na vida da população infanto-juvenil. Pode-se situar uma rede de acções violentas a que este segmento populacional está sujeito: o abandono social; a agressão física, psicológica e sexual; a exploração no mercado informal de trabalho; a exclusão do sistema educacional; o tráfico de drogas.

São situações que vão de encontro aos direitos humanos mais elementares e que exigem uma reacção não apenas do Estado mas de toda a sociedade, visto que o adolescente se constitui no elo mais fraco do sistema de poder. Daí surge a questão de como garantir que esta população seja ouvida e defendida quando tiver seus direitos violados ou ameaçados. Os conselhos tutelares, hoje presentes em quase todos os municípios brasileiros, procuram responder a essa demanda. Contudo, sua estrutura organizacional ainda é bastante deficitária para dar conta das complexidades sociais que giram em torno desse segmento populacional. O combate à violência contra crianças e adolescentes reflecte a preocupação com a posição frágil que eles ocupam na sociedade, merecendo cuidados e acções especiais a serem promovidos não só pelo Estado mas, também, pela sociedade como um todo.

A despeito de todo o esforço e das atuais directrizes que conferem um direito inalienável a este segmento populacional, a violência contra crianças e adolescentes continua aumentando assustadoramente. Para a ONU, o modelo económico brasileiro é definido como “concentrador e excludente”, responsável pela violência que abate os mais pobres, principalmente nos grandes centros urbanos. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana afirma que o Brasil ainda não encontrou o caminho para a implantação de políticas sociais que atendam devidamente às crianças e adolescentes.

Torna-se urgente a formulação de políticas sociais para o cumprimento de normas, princípios e legislações, no sentido de fazer valer o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento prioritário para a atenção integral e equidade (...). Os estereótipos que existem sobre a infância e a adolescência pobre constituem uma inversão de abordagem com cruéis reflexos de estigma na sua vida cotidiana, criando mitos imutáveis e naturais, que geram indiferenças nos sectores sociais quanto ao significado e a magnitude do problema, além de interferir na elaboração e no cumprimento das políticas sociais”. (Souza, 1993, p.14).

Na verdade, incomoda à sociedade trazer à tona a miséria cotidiana de um país marcado pela crescente desigualdade social. O adolescente de camadas desfavorecidas no meio urbano passa a fazer parte de um grupo que apresenta diversos estereótipos aos olhos da sociedade. Embora o índice de jovens com práticas infracionais corresponda, no universo dos jovens em situação de risco, a uma fracção pequena, é a partir deles que a sociedade reage. É o grupo que se encontra mais a descoberto em termos de rede de apoio, ficando portanto sujeito a violências sociais. Por outro lado, a situação de pobreza das famílias de grupos populacionais cada vez mais numerosas, especialmente em área urbana, faz com que os mecanismos necessários às famílias para criar suas crianças e formar seus adolescentes sejam cada vez mais precários.



Yunes se refere a este aspecto, salientando:

(...) as condições de extrema pobreza, o abandono ou a expulsão de crianças e adolescentes, faz com que este grupo, se encontre em vulnerabilidade social. O fenómeno representado pelas crianças e adolescentes na rua, especialmente da rua, representa, quem sabe, a maior expressão do fracasso de qualquer projecto macro social”. (Yunes, 1993, pg.5).

O mesmo autor esboça alguns pontos de discussão, que reforçam esta lógica, tais como a falta de políticas que valorizem a criança e o adolescente; o conjunto de valores da sociedade que acaba não garantindo um desenvolvimento favorável deste grupo e, por último, a indiferença existente em todos os sectores sociais quanto à magnitude do problema, que pode trazer danos não só para o grupo afectado, de crianças e adolescentes, como para toda a sociedade.

Evidentemente, o processo de constituição da cidadania de crianças e jovens não se dá sem engendrar contradições e ambiguidades. Lavinas (1997, pg. 21) aborda este aspecto ao afirmar que a ambivalência “é a expressão de que as velhas contradições entre gerações ganharam novos conteúdos e novas configurações, necessitando, hoje, de novas formas de regulação para serem legitimadas pelo Estado”. Em síntese, muito ainda se tem a percorrer na luta pelos direitos da infância e adolescência das camadas mais pobres de nossa população.

Toda sociedade é responsável pela tarefa de reagir contra o avanço da violência e do descaso com os direitos humanos. A ideia de responsabilidade social, isto é, de que todos somos indispensáveis neste processo de reacção, não apenas consolida a concepção de que não mais devemos esperar que o Estado paternalista seja o único solucionador de conflitos, mas nos conduza a uma reflexão sobre a integração co-participativa. Daí a importância de acções de engajamento, de investimentos na não-violência, visando investir profundamente na confiança no ser humano, nas suas riquezas e potencialidades de edificação de uma sociedade mais humanitária, justa e solidária.

Não podemos esquecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente considera, desde 1990, a criança e o adolescente como cidadãos, com direitos. As instituições devem assumir o compromisso de romper com a “Cultura” que coisifica este grupo etário, retirando-o da condição de objecto - passível de exploração e violência - e elevando-o à condição de autores da própria história, o que implica, necessariamente, uma mudança de valores, ideias e condutas.

Referências Bibliográficas

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