Por:
Zilah Meirelles e Regina Herzog
A
violência na adolescência constitui matéria de reflexão de
diversas áreas do saber. Quando dizemos que hoje em dia muito se
fala sobre o assunto, isto não significa que só recentemente a
violência passou a fazer parte de nosso cotidiano. É inegável que
ao longo da História o fenómeno sempre esteve presente. Porém,
dependendo das circunstâncias, os actos de violência podiam ser
justificados em nome de uma causa maior ou considerados uma
transgressão a ser punida.
Actualmente,
a violência está de tal forma disseminada, assumindo as mais
variadas formas, que se tornou quase impossível precisar suas causas
e propor medidas eficazes para sua extinção. Esta questão se torna
ainda mais complexa quando as agressões dirigem-se à população
infanto-juvenil. A acção violenta envolvendo crianças,
adolescentes e jovens - em fase de crescimento e desenvolvimento -
pode deixar sequelas que os acompanham em sua vida adulta, impedindo
o sujeito de estabelecer para si próprio critérios que lhe facultem
o exercício de sua liberdade e o respeito pela liberdade alheia.
A
violência contra crianças e adolescentes é bastante abrangente.
Pode-se apontar um quadro de situações desfavoráveis como o
abandono; o extermínio; os maus tratos; os abuso físico, sexual e
psicológico; a exploração do trabalho infanto-juvenil; entre
outros. Mas afinal por que nos dias de hoje violência e adolescência
apresentam um vínculo tão forte? É a questão que este capítulo
procura analisar.
A
violência nas relações humanas
O
homem possui capacidades que o distinguem de todas as outras
espécies, entre elas a de discernimento, que o permite julgar,
apreciar, optar, tornando-o sujeito do processo histórico-social e
dotado de um valor essencial: a liberdade. A grande questão é como
entender o exercício dessa liberdade, levando em conta a liberdade
de seu semelhante? E, nesta perspectiva, como avaliar uma acção
violenta sob o prisma de uma quebra de um contrato entre duas partes?
A
história dos povos e da sociedade tem sido permeada por violações
dos direitos humanos, porque nela se observa, segundo Veronese
(1998), “...uma tendência de se reprimir as necessidades das
pessoas, dos agrupamentos humanos ou mesmo de povos inteiros”. Na
medida em que o homem é impedido de se desenvolver plenamente, dá-se
início a um processo de violência, que se pode manifestar nas mais
variadas formas, servindo-se de diferentes meios. A violência atinge
a integridade da pessoa, a sua moral e o seu corpo, em outras
palavras, atinge a estrutura psíquica mais profunda do ser humano.
O
termo violência refere-se à vida de relação do ser humano:
relação com o mundo, com os outros e consigo próprio. Provém do
latim vis, que comporta a ideia de ‘força’, ‘vigor’,
‘potência’, podendo também designar o ‘emprego da força’.
De acordo com Dadoun (1998, pg. 10), “vis serve para marcar o
‘carácter essencial’, a ‘essência’ de um ser”. Nesta
última acepção, é possível dizer que a violência é algo
inerente ao ser humano, ou seja, faz parte da natureza humana, o que
leva o referido autor a defender a ideia de um homo violens. Em
contrapartida, também se fala da violência como algo externo ao
homem, algo que lhe é impingido, sendo que toda resposta, mesmo que
violenta, passa a ser vista como uma reacção ou forma de defesa,
por parte do homem, às tentativas de cerceamento de sua liberdade.
Assim, por um lado fala-se do homem como agressor nato e, de outro,
como vítima.
O
problema que ambas posições apresentam decorre do fato de se
atribuir à violência uma essencialidade, em lugar de vê-la como um
fenómeno que implica uma relação. Não se trata de considerar uma
relação simples com papéis bem definidos - o violentador e o
violentado - mas de pensar o que não funciona na relação entre
dois sujeitos, ou mesmo do sujeito consigo próprio quando emerge uma
situação de confronto, sem emitir, de modo apressado, juízos de
valor. Porém, quando se situa a violência em um ou em outro pólo,
a única preocupação parece ser a de “conter”, ‘educar’ ou
mesmo ‘reprovar’, sem se efectuar uma reflexão maior sobre o
que, num primeiro olhar, se presentifica com uma força ou um vigor
que pareça injustificado.
Por
um lado, factores políticos, económicos, sociais e culturais criam
situações em que a violência é perpetrada aos seres humanos, mas
não se pode negar que o ser humano age com impulsividade em
determinadas situações. Ou seja, não é tão simples precisar a
origem e os motivos da violência. Nessa perspectiva, este fenómeno
requer uma avaliação cuidadosa antes que se rotule um comportamento
ou uma situação como violentas. Por que, na sociedade
contemporânea, violência e adolescência mantêm um vínculo tão
forte?
A
violência contra adolescentes e jovens é mais visível hoje devido
aos meios de comunicação, que são velozes em apresentar os fatos
violentos, potencializando este fenómeno de forma tão negativa.
Todavia, como observa Veronese (1998), a violência tem sido de tal
modo banalizada, que a população acaba deixando-se levar, cada vez
mais, pela acção violenta. A violência que deveria assombrar,
conduzindo a acções positivas, abrindo um espaço de resistência
para estimular atitudes construtivas e não punitivas, acaba por
tornar omisso o ser humano. E assim, a indignação inicial dá lugar
à passividade, ao descaso ou, no outro extremo, pode conduzir a uma
atitude sombria, de revolta contra tudo e contra todos.
Com tantos sofrimentos e
mortes de adolescentes e jovens, o futuro do nosso país parece
envolto em um imaginário de violência que revela um modelo social
perverso. Situações antes consideradas excepcionais passam a ser
vistas como corriqueiras: “coisas do cotidiano”. Esta constatação
pode nos levar aos seguintes questionamentos: que
mundo queremos? Que juventude estamos formando? Que tipo de
impacto a violência vem causando nos corpos e nas mentes daqueles
que serão os adultos do Brasil do amanhã?
Adolescentes
e jovens: entre perpetradores e vítimas
Falta
de preparo, estrutura organizacional deficitária, modelo económico
concentrador e excludente, situação de pobreza; todos estes
factores têm uma importância fundamental na análise da situação
com que nos defrontamos nos dias de hoje. Acrescente-se a isso as
transformações vertiginosas que vêm ocorrendo em todos os sectores
da sociedade: a questão da globalização, por exemplo, suscita,
entre os profissionais de várias áreas, uma discussão acalorada
sobre o futuro da sociedade e, mais especificamente, do adolescente.
Aqui
cabe uma ressalva: apesar da pertinência de considerações de
carácter social, económico e político, que levam a uma
intensificação da violência na adolescência, não podemos dizer
que as sociedades mais “justas” se encontrem livres desta
questão, ou mesmo, que tenham a questão sob controle. Se olharmos
para a nossa própria realidade, vamos nos deparar com situações de
violência na população adolescente de classe média e alta. Por
exemplo, o caso do grupo de adolescentes em Brasília que ateou fogo
no índio Galdino, da tribo Pataxó. Casos como este nos obrigam não
a relativizar os aspectos socioeconómicos, mas indagar o que há
para além deles, ou juntamente com eles, que possa nos ajudar a
compreender melhor a questão da violência na adolescência.
Por
outro lado, o reconhecimento da categoria “adolescência” pela
sociedade é recente. Até então, dividia-se o desenvolvimento
humano entre infância, maturidade e velhice, ficando o adolescente
ora identificado com a criança, ora com o adulto. Neste sentido, só
há pouco tempo o adolescente passou a ter um lugar na sociedade e
podemos dizer que, enquanto a violência, na actualidade, se
alastrou, perdendo uma determinada circunscrição, em contrapartida
o adolescente passou de direito a ocupar um lugar na sociedade. Cabe
perguntar que lugar é esse. Nas transformações vertiginosas que
caracterizam os tempos atuais, a sociedade parece ter perdido
referências fundamentais para o convívio social, que lhe permitiam
legislar e estabelecer modelos de justiça, igualdade e fraternidade.
A sensação de desterritorialização, de uma ausência de certezas
sobre si próprio e sobre o mundo, de falta de perspectivas futuras,
é tão intensa que o ser humano tem dificuldade de sustentar seus
valores e passar para as novas gerações um sentido para a vida. De
certo modo este quadro acaba estabelecendo um solo fértil para o
agravamento da situação de violência.
Numa
definição, bem simples, a adolescência se caracteriza por um
período de grandes transformações biopsicossociais. O que marca
este processo é uma busca de identidade que, paradoxalmente, se
pretende distinta, diferente de tudo que esteja instituído. Talvez
seja mais apropriado dizer que se trata, para o adolescente, de uma
busca de singularidade, busca que comporta uma ambiguidade. Estamos
habituados a considerar o adolescente como um transgressor em virtude
de sua recusa em aceitar normas e limites. Parafraseando uma velha
canção, diz-se que o adolescente é “um rebelde sem causa”.
Estas designações não são destituídas de sentido se entendemos
este processo como uma busca de singularidade. Contudo, tornam-se
problemáticas quando o sentido dado tem um carácter negativo.
O
adolescente não se fixa em nenhum modelo, acompanhando com aparente
facilidade as mudanças que ocorrem no mundo. É esta aparente
labilidade emocional que faz com que o adolescente seja percebido
pela sociedade como alguém sem um papel definido, em última
análise, como um irresponsável de quem muito se exige e, para quem,
pouco se concede. Mesmo que não seja preconceituosa, esta designação
deixa implícita a necessidade de medidas educativas que, na maior
parte das vezes, não levam em conta a labilidade emocional como
constituinte do próprio processo em que se encontra inserido o
adolescente, além de ser de fundamental importância em sua busca de
identidade.
As
medidas educativas têm como objectivo maior adaptar o adolescente à
realidade, tornando-o responsável e propiciando a inserção no
universo adulto. Dois aspectos merecem consideração: em primeiro
lugar, a grande contradição é que o que se denomina como realidade
comporta um elevado grau de violência social. Na prática, é como
se alguém ordenasse ao adolescente que aprenda a conviver em
sociedade segundo determinadas regras, sendo-lhe oferecido como
modelo uma sociedade onde o que impera é uma ausência de
referências. Em segundo lugar, a tarefa de educar, formar um
adolescente, exige que se tenha presente não só sua capacidade de
aprender mas, fundamentalmente, seu potencial afectivo, principal
condição para que o adolescente estabeleça laços que
possibilitem, no futuro, uma inserção mais criativa na sociedade.
Uma
saída seria conscientizar a população adulta a ocupar, com mais
propriedade, este lugar de modelo com o qual o adolescente deveria
identificar-se. Trata-se de uma proposta pertinente, mas a
desigualdade que se acentua cada vez mais dificulta a viabilização
de tal projecto. Apesar disso, não devemos desistir da empreitada.
A
questão da violência é de tal complexidade que leva aqueles que se
dedicam ao tema a distinguir suas variadas formas de apresentação a
partir dos aspectos que conformam determinadas situações. Assim,
por exemplo, podemos falar de violência urbana para mostrar como um
crescimento desordenado das cidades propícia a violência; ou de
violência intradomiciliar, procurando circunscrever, no convívio
familiar, as causas da violência. Ações sociais e políticas nas
áreas do trabalho, da saúde e da educação certamente reduzem os
conflitos existentes. Devemos ter presente que normas, preceitos e
leis não são instituídos de modo independente da própria
sociedade. Quando o que se denomina violência se caracteriza por um
excesso ou um desvio daquilo que é a norma, corre-se o risco de
forçar a obediência a leis que, muitas vezes, estão a serviço de
uns poucos.
Com
relação à necessidade de escutar as reivindicações afectivas do
adolescente, podemos detectar nas situações de violência (urbana,
intradomiciliar, social e outras) a ausência deste aspecto. Conforme
assinalamos acima, violência significa ‘força’, ‘potência’,
‘vigor’, palavras que certamente servem para definir a
adolescência. Isto porque, se podemos detectar no adolescente uma
labilidade emocional, não podemos esquecer que ela expressa, antes
de tudo, sua potência para investir sua emoção, mesmo que
momentaneamente, em tudo o que faz e em todos com quem lida. A
liberdade, para o adolescente, diz respeito à possibilidade de
deixar fluir seu afecto. Longe de ser negativo, o que se chama de
irresponsabilidade tem muito mais a ver com o fato de que esta força
afectiva ainda não encontrou onde se fixar.
Neste
quadro todas as normas, preceitos, limites impostos são vivenciados
pelo adolescente como impeditivos da expressão de seus anseios e
desejos. Na medida em que esses anseios e desejos são difusos, a
busca se torna desordenada, visando tão somente a uma satisfação
imediata. Em sua relação com o mundo, com os outros e consigo
próprio, nenhum critério de avaliação é levado em conta. Para
ele, pensar, ponderar, aguardar uma ocasião mais propícia são
palavras vazias e toda acção precede a avaliação, fazendo com que
a satisfação momentânea de seus desejos acabe por acarretar um
conflito. Em outras palavras, o impulso para a realização de um
desejo é de tal intensidade que torna difícil, para o adolescente,
levar em conta a realidade. Por este motivo, toda análise sobre a
questão da violência, em suas várias modalidades - urbana, social,
intradomiciliar, institucional -, e que envolve a adolescência, deve
dar relevo ao aspecto afectivo constituinte de sua formação.
Conforme
sublinhamos acima, o processo de busca de uma identidade comporta uma
ambiguidade, pois se nos referimos à necessidade de o adolescente se
distinguir entre os demais, verificamos, em contrapartida, que uma
das características mais marcantes é sua identificação com grupos
de sua faixa etária ou, segundo seus próprios termos, o
pertencimento a sua “tribo”. Nesta identificação ocorre um
apagamento das diferenças e uma idealização sem crítica daquele
ou daqueles que dentro das “tribos” são os “mais
bem-sucedidos”, segundo a perspectiva do adolescente.
Se
por um lado esta situação corresponde a um processo normal de
desenvolvimento, também pode derivar de dificuldades emocionais no
espaço familiar. Quando a falta de habilidade da família em lidar
com o adolescente e as próprias dificuldades de ordem económica
despertam nos pais um comportamento agressivo, o conflito de gerações
dificulta o adolescente a enxergar em casa um modelo com o qual possa
se identificar. Aí ele se volta para sua “tribo”. O que se
depreende da fala dos adolescentes é uma carência afectiva que
acabará por comprometer seu desenvolvimento. Além disso, uma
situação como esta também pode gerar, da parte do adolescente,
atitudes violentas na medida em que se sente respaldado por seu
próprio grupo.
Esta
situação é paradigmática do que se caracteriza como violência
social. O ser humano está inserido num universo onde a relação
entre os pares é vital. Ou seja, é fundamental que no processo de
desenvolvimento o adolescente estabeleça laços sociais que lhe
permitam fazer parte de um grupo. Se ele não encontra um espaço no
seio da família, certamente irá procurar em outros lugares. Na
actualidade, o modelo com o qual o adolescente irá se identificar
está tão destituído de referências seguras, tão banalizado em
termos de quaisquer valores, que se torna difícil forjar sua própria
identidade. Além do mais, o social implica, por definição, uma
renúncia de satisfação imediata na medida em que é preciso levar
em conta o outro. Se não é fácil para o ser humano, de uma forma
geral, concordar em abrir mão da satisfação imediata, para o
adolescente, que se vê e se sente como ‘dono do mundo’, esta
tarefa é muito mais árdua. Nesta dimensão, as exigências da vida
em sociedade são percebidas, pelo adolescente, como uma violência.
A
formação do adolescente precisa considerar que a própria
construção da identidade pressupõe que um outro - os pais, os
educadores, a sociedade - funcione ao mesmo tempo como agente
propiciador (modelo) e como aquele que impõe limites. Exercer este
duplo papel requer, antes de tudo, sensibilidade. Por outro lado,
sabemos que aquele que serve de modelo também tem uma expectativa em
relação ao adolescente. E esta expectativa pode estar comprometida
com os próprios ideais do adulto, sonhos irrealizados, desejos
frustrados, impedindo, muitas vezes, o adolescente de dar voz a seus
anseios. Se esta atitude não é devidamente dimensionada, certamente
podemos estar diante de uma relação que se configura como violenta.
Deste modo, se por um lado é bastante difícil para o adulto exercer
este duplo papel, por outro o trabalho do adolescente também não é
simples. O vigor que o adolescente imprime, em sua busca de
identidade, vai exigir que este processo de identificação com o
outro não implique uma destruição de si.
A
violência se caracteriza por uma relação onde se verifica uma
quebra de contrato entre duas partes. Na questão da adolescência,
outro factor se soma a isso: trata-se do aspecto afectivo que permeia
suas relações e que, no processo de busca de identidade, precisa
ser levado em consideração.
Violência,
Juventude e Políticas Públicas
A
violência é um tema corrente na vida da população
infanto-juvenil. Pode-se situar uma rede de acções violentas a que
este segmento populacional está sujeito: o abandono social; a
agressão física, psicológica e sexual; a exploração no mercado
informal de trabalho; a exclusão do sistema educacional; o tráfico
de drogas.
São
situações que vão de encontro aos direitos humanos mais
elementares e que exigem uma reacção não apenas do Estado mas de
toda a sociedade, visto que o adolescente se constitui no elo mais
fraco do sistema de poder. Daí surge a questão de como garantir que
esta população seja ouvida e defendida quando tiver seus direitos
violados ou ameaçados. Os conselhos tutelares, hoje presentes em
quase todos os municípios brasileiros, procuram responder a essa
demanda. Contudo, sua estrutura organizacional ainda é bastante
deficitária para dar conta das complexidades sociais que giram em
torno desse segmento populacional. O combate à violência contra
crianças e adolescentes reflecte a preocupação com a posição
frágil que eles ocupam na sociedade, merecendo cuidados e acções
especiais a serem promovidos não só pelo Estado mas, também, pela
sociedade como um todo.
A
despeito de todo o esforço e das atuais directrizes que conferem um
direito inalienável a este segmento populacional, a violência
contra crianças e adolescentes continua aumentando assustadoramente.
Para a ONU, o modelo económico brasileiro é definido como
“concentrador e excludente”, responsável pela violência que
abate os mais pobres, principalmente nos grandes centros urbanos. O
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana afirma que
o Brasil ainda não encontrou o caminho para a implantação de
políticas sociais que atendam devidamente às crianças e
adolescentes.
“Torna-se
urgente a formulação de políticas sociais para o cumprimento de
normas, princípios e legislações, no sentido de fazer valer o
Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento prioritário
para a atenção integral e equidade (...). Os estereótipos que
existem sobre a infância e a adolescência pobre constituem uma
inversão de abordagem com cruéis reflexos de estigma na sua vida
cotidiana, criando mitos imutáveis e naturais, que geram
indiferenças nos sectores sociais quanto ao significado e a
magnitude do problema, além de interferir na elaboração e no
cumprimento das políticas sociais”. (Souza, 1993, p.14).
Na
verdade, incomoda à sociedade trazer à tona a miséria cotidiana de
um país marcado pela crescente desigualdade social. O adolescente de
camadas desfavorecidas no meio urbano passa a fazer parte de um grupo
que apresenta diversos estereótipos aos olhos da sociedade. Embora o
índice de jovens com práticas infracionais corresponda, no universo
dos jovens em situação de risco, a uma fracção pequena, é a
partir deles que a sociedade reage. É o grupo que se encontra mais a
descoberto em termos de rede de apoio, ficando portanto sujeito a
violências sociais. Por outro lado, a situação de pobreza das
famílias de grupos populacionais cada vez mais numerosas,
especialmente em área urbana, faz com que os mecanismos necessários
às famílias para criar suas crianças e formar seus adolescentes
sejam cada vez mais precários.
Yunes
se refere a este aspecto, salientando:
“(...)
as condições de extrema pobreza, o abandono ou a expulsão de
crianças e adolescentes, faz com que este grupo, se encontre em
vulnerabilidade social. O fenómeno representado pelas crianças e
adolescentes na rua, especialmente da rua, representa, quem sabe, a
maior expressão do fracasso de qualquer projecto macro social”.
(Yunes, 1993, pg.5).
O
mesmo autor esboça alguns pontos de discussão, que reforçam esta
lógica, tais como a falta de políticas que valorizem a criança e o
adolescente; o conjunto de valores da sociedade que acaba não
garantindo um desenvolvimento favorável deste grupo e, por último,
a indiferença existente em todos os sectores sociais quanto à
magnitude do problema, que pode trazer danos não só para o grupo
afectado, de crianças e adolescentes, como para toda a sociedade.
Evidentemente,
o processo de constituição da cidadania de crianças e jovens não
se dá sem engendrar contradições e ambiguidades. Lavinas (1997,
pg. 21) aborda este aspecto ao afirmar que a ambivalência “é a
expressão de que as velhas contradições entre gerações ganharam
novos conteúdos e novas configurações, necessitando, hoje, de
novas formas de regulação para serem legitimadas pelo Estado”. Em
síntese, muito ainda se tem a percorrer na luta pelos direitos da
infância e adolescência das camadas mais pobres de nossa população.
Toda
sociedade é responsável pela tarefa de reagir contra o avanço da
violência e do descaso com os direitos humanos. A ideia de
responsabilidade social, isto é, de que todos somos indispensáveis
neste processo de reacção, não apenas consolida a concepção de
que não mais devemos esperar que o Estado paternalista seja o único
solucionador de conflitos, mas nos conduza a uma reflexão sobre a
integração co-participativa. Daí a importância de acções de
engajamento, de investimentos na não-violência, visando investir
profundamente na confiança no ser humano, nas suas riquezas e
potencialidades de edificação de uma sociedade mais humanitária,
justa e solidária.
Não
podemos esquecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente
considera, desde 1990, a criança e o adolescente como cidadãos, com
direitos. As instituições devem assumir o compromisso de romper com
a “Cultura” que coisifica este grupo etário, retirando-o da
condição de objecto - passível de exploração e violência - e
elevando-o à condição de autores da própria história, o que
implica, necessariamente, uma mudança de valores, ideias e condutas.
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