domingo, 18 de novembro de 2018

ENTREVISTA TSF DN Manuel Alegre: "A questão das touradas é uma questão de liberdade"

Manuel Alegre é o convidado da entrevista TSF/DN desta semana.

Manuel alegre regressa às polémicas para defender o IVA mais baixo nas touradas, que, diz, é o preâmbulo para outras proibições que atentam contra a liberdade. Acha que que o PS devia afirmar-se mais e não ter medo nem do PAN nem fazer favores à esquerda urbana.
Porque é que resolveu envolver-se nesta polémica do IVA nas touradas?

Porque é uma questão de liberdade, é uma questão do direito das pessoas gostarem ou não gostarem e, porque, quer se queira quer não, é uma tradição portuguesa. Eu sei que a tradição - diz o Eduardo Lourenço - resume-se a um criador do adquirido, e sei que pode haver evolução e adaptação. Mas a ministra teve uma afirmação, no meu entender, infeliz. Ela fundamentou essa decisão num problema de civilização.

Foi essa forma como a ministra colocou a questão...

Foi, foi isso e outras coisas. Eu, na carta a António Costa, nem chegava a dizer se gostava ou não de touradas. Aqui posso fazê-lo. Nem vou muito às touradas, vejo na televisão, sobretudo a corrida à espanhola, o toureio a pé de que gosto muito. Gosto muito de alguns poemas sobre toiros - os mais belos foram escritos por um poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto. Senti-me mal com aquilo, com a discriminação que é feita em relação à tauromaquia. Porquê? Negociada com o PAN? Porquê?

Acha perigosa essa posição?

Acho que assim como os outros partidos defendem a sua identidade, o Partido Socialista tem de defender a sua. Sobretudo numa questão tão essencial ao PS como é a da liberdade e do pluralismo. Depois, também, a lei da caça de que se tem falado pouco. Há uma redação do PAN que acaba com a caça toda. Ora, a história do homem começou com a caça. A primeira vez que as tribos se reúnem é para caçar, é aí que fabricam os primeiros instrumentos. Se calhar, a fala nasce com a caça. A narrativa, a poesia, a oração, a mímica, o teatro, se calhar tudo nasce com a caça. Faz parte da relação do homem com a natureza. E há qualquer coisa nisso que me fez dizer: sinto a minha liberdade ameaçada.

Porquê?

Não gosto de engenharias sociais ou artificiais messiânicas. Isso tem uma carga totalitária muito perigosa. Hoje vem uma notícia sobre um grupo de mascarados, o IRA, eventualmente ligado ao PAN... Muita doçura com os animais, eu acho bem, eu sou autor de um livro, Um cão como nós, que é um best seller, tem mais de 100 000 exemplares vendidos, gosto muito de cães e gosto muito de animais, mas não ponho os animais acima das pessoas.

Acha perigoso que o PS acolha essas preocupações?

Se isso põe em causa direitos e liberdades, acho perigoso.

Consegue perceber a posição do PS sobre esta questão?

Não sei, vamos ver. Porque o primeiro-ministro veio dizer que o Orçamento não é um problema de consciência. Em princípio defendo a liberdade de voto e o direito de consciência salvo em quatro matérias: moções de censura e de confiança, o programa do Governo e o Orçamento. Mas esta questão é uma questão residual, é uma questão na especialidade. O Orçamento é aprovado para permitir a consecução do programa do Governo e isto não põe em causa o programa do Governo.

Portanto, acha que não deveria haver disciplina de voto?

Acho que não devia haver por essa razão, e por outra: é que há mesmo um problema de consciência. Ao fundamentar esta decisão numa questão de civilização, está posto o problema de consciência. Qual é a outra questão do Orçamento que se fundamenta num problema de civilização? Porque de que civilização estamos nós a falar? Não é a ministra que define o que é ou não é civilização. Eu não estou fora da civilização, escrevi poemas sobre touros, o Lorca não está fora, o João Cabral de Melo Neto não está fora, o Ortega y Gasset não está fora, o Goya não está fora, o Picasso não está fora. A Guernica é o quadro símbolo da Guerra Civil de Espanha. Sabem quais são os dois grandes símbolos que lá estão? O cavalo e o toiro. Portanto, cuidado quando vamos falar de civilização. Eu sei que há evolução, sou contra os maus-tratos aos animais, não haja dúvida nenhuma sobre isso. Mas sou pelas pessoas e sou por qualquer coisa de sagrado que há na corrida, qualquer coisa de sagrado muito antigo. Quem não percebe isso também não percebe a poesia, não percebe a literatura. É difícil explicar isso a quem tem uma posição sectária e fanática. E isto está a fraturar o país.

Como?

Fratura geracionalmente, fratura Lisboa e o resto do país e fratura a cidade e o campo. Os políticos que tenham cuidado, um dia o campo pode-se revoltar. Foi sempre um país uno porque respeitou a sua diversidade. Eu apoio o Governo, apoio o PS e sou genuíno quando falo da minha liberdade. Eu gosto de caçar, enquanto não for proibido pelo deputado do PAN com o apoio do Partido Socialista... Aí há um partido a que tenho de prestar homenagem, que é fiel às tradições e que tem outro enraizamento, que é o Partido Comunista Português. Tenho que lhe prestar a minha homenagem, não tem medo do PAN, não tem medo do politicamente correto.

Acha que o PS tem medo do PAN?

Acho que há deputados do PS que têm medo do PAN. E membros do Governo.

Cedem à sua agenda política?

Quem vota no PS não vota na agenda política do PAN. Eu sei que há quem considere que o deputado do PAN pode a vir a ser muito útil em determinadas circunstâncias, de maioria, não maioria.

António Costa, naquela carta aberta...

Escreveu um bocado à pressa, num registo de cordialidade e camaradagem, mas um bocado à pressa. O Dr. António Costa escreve melhor e pensa melhor do que aquilo.

Não chegou a responder a essa carta?

Não.

Não merece resposta?

Não é isso. Uma carta dele merece sempre. Agora, se lhe escrever será uma carta pessoal, não vamos agora andar a escrever através dos jornais. Escrever-lhe-ei uma carta pessoal. A carta dele, é um nim. Ele não proíbe, não gosta mas não proíbe. Manifesta uma questão de gosto, mas isso é aquilo que eu digo no meu artigo.

Não é a proibição da tourada que está em causa, é apenas uma baixa de IVA...

Mas as coisas estão todas ligadas. Já ouvi falar que o Pan ia propor a proibição da tauromaquia e, sobretudo, a caça.

Acha que o PS comprou esta guerra para conquistar essa esquerda urbana que vota, por exemplo, Bloco de Esquerda e PAN?

Eu acho que anda tudo com muito medo do urbano ou da esquerda urbana [risos]. Estão muito enganados, porque as pessoas gostam de pensar pela sua cabeça, são livres. Tenho recebido muitas mensagens de gente que não gosta de touros e que me apoia. Porque acham que ninguém tem de se meter na vida dos outros, nos gostos dos outros, ninguém tem de me vir aquilo de que eu gosto ou não gosto, se posso comer alheira ou não posso comer alheira, se posso comer enchidos ou não posso comer enchidos. Mas que raio de história é esta? Isto é entrar no domínio da privacidade e da liberdade mais pessoal, mais íntima.

Mas quem é que está enganado e porquê?

Estão enganados os políticos. Eu participei em muitas coisas fraturantes que foram boas. Fui eu eu que incendiei o Congresso do PS, com a Maria Belo, a propósito da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, porque era um direito. Como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a procriação medicamente assistida, etc. Tudo isso foram avanços civilizacionais. Agora, as coisas têm o seu limite. Senão vêm os Bolsonaros, vêm mesmo. Estamos a assistir neste momento a uma onda no mundo, começou nos Estados Unidos pelas mesmas razões, em quase todos os países da Europa. Agora, a revolta contra o sistema não está do lado da esquerda, está do lado da direita. As pessoas deixaram de acreditar porque os partidos do centro-esquerda e do centro-direita não estão a dar resposta ao desemprego, à deslocalização, à precariedade. Fogem para estas coisas.

Para as questões fúteis?

Para as questões fraturantes, não digo que são fúteis.

Curiosamente, a líder do Bloco de Esquerda, a Catarina Martins, disse que o senhor, neste caso, se apresentou como um defensor do conservadorismo.

Ela não me vai dar lições de conservadorismo, porque não tem a história revolucionária e de resistência que eu tenho. Conservar as tradições, eu conservo. Por exemplo, agora pôs-se em causa, a propósito do Museu das Descobertas, as Descobertas. Isto é uma coisa absurda - a História não tem um julgamento moral, Karl Marx dizia isso. Quem descobre também é descoberto. É um dos momentos mais altos da História da Humanidade e da nossa História. É o primeiro fenómeno de mundialização que tirou o mundo aqui deste bocadinho centrado no Mediterrâneo. Vivam as Descobertas! E viva o espírito de Quinhentos! E o Bartolomeu Dias! E o Luís de Camões! Se isso é ser conservador, eu sou conservador e estou disposto a bater-me por isso outra vez, apesar dos meus 82 anos. Porque não quero outra vez fascismo, isto agora nem é bem fascismo. É pior, é uma coisa caótica. De banditismo, de canalha na rua e de canalha no poder. E, depois, nas horas de estalar quero ver se a Catarina Martins lá está ou quem é que lá está. Porque nestas coisas são quase sempre os mesmos.

Já agora, a geringonça aguentou-se, achava que isso seria possível?

Eu fui um dos apoiantes da geringonça. Na noite das eleições houve duas pessoas que disseram que tinha que haver convergência, um foi o Jerónimo de Sousa que disse que o PS só não fazia Governo se não quisesse e eu que falei em convergência. Escrevi uma carta ao Costa naquela altura, dizendo que o PS tinha mais poder agora do que se tivesse ganho as eleições, dada aquela abertura de poder haver uma maioria na Assembleia da República, e que isso ia recentralizar o papel do Parlamento - como aconteceu -, a democracia deixava de estar coxa como esteve. Houve aqui um grande equívoco durante muito tempo, não havia eleições legislativas, não se estava a eleger deputados, estava-se a votar diretamente no primeiro-ministro.

Qual é a sua avaliação deste Governo?

Acho que houve um avanço. A troika e o outro Governo, a pior coisa que fizeram foi tirar a esperança às pessoas. Agora houve reposição de direitos, garantias, etc. Na minha opinião, devia haver mais ambição, mais consistência. Como homem de esquerda digo que gostaria que se fosse mais longe, mas também vejo que há dificuldades e que se quisesse ir longe demais, também se calhar não se ia a lado nenhum. O que tem defendido isto, é que os partidos conservam a sua identidade. O PCP é o que é, diz o que entende que deve dizer, o Bloco de Esquerda também, mas o PS nem sempre. Tem, por vezes, uma posição muito defensiva, leva muita bordoada também dos próprios parceiros e, às vezes, devia defende-se. Porque tem de defender a sua autonomia, a sua natureza própria, que não é coincidente com as dos outros em muitas matérias. Isso também me preocupa, embora considere que sou da ala esquerda do Partido Socialista, estou à esquerda do Governo do PS, e em muitas matérias estou com certeza muito à esquerda da Catarina Martins...

Há quem olhe para António Costa como um político mais tático e mais hábil do que propriamente um político que tem um projeto para Portugal. O problema é de António Costa ou é do facto de o PS estar amarrado a esta solução de governo?

Ele teve uma visão que é a de um político, criar este governo e restituir ao parlamento a sua centralidade. E de ter mostrado também à Europa que, sem fazer aquilo que fez a Grécia, era possível fazer diferente. Reduziram o défice tendo reposto muitos direitos e muitas das coisas que tinham sido perdidas. Agora, essa situação é por si muito complicada, implica muita negociação, condiciona os comportamentos. Diziam que era quase um milagre, gritaram que vinha aí o diabo e não veio diabo nenhum.

Por onde acha que pode entrar o populismo em Portugal?

Portugal é uma exceção hoje na Europa. É o único país onde há um governo do Partido Socialista, apoiado pela esquerda, onde não há nenhuma força de extrema-direita, o que não quer dizer que não haja um populismo larvar, inorgânico - vemos disso até no futebol e nas redes sociais. Se não houver cuidado, esse populismo adquire uma expressão política. Ninguém sabia quem era o Bolsonaro, e, de repente, é presidente do Brasil. O populismo pode entrar se os problemas não forem resolvidos. E há descontentamentos vários. E determinado tipo de fraturas dentro das pessoas - norte/sul, cidade/campo, etc. - podem abrir caminho ao populismo.

O PS não se deve bater por uma maioria absoluta nas próximas eleições?

Um partido bate-se sempre por obter o melhor resultado possível. Isso não é uma estratégia, porque um partido não tem maioria absoluta pelo facto de a pedir. Umas vezes merece-se e não se tem, outras vezes não se merece e tem-se.

Era melhor para o país um Governo com o PS sozinho ou uma geringonça?

Eu acho que esta solução é boa. Ou seja, mesmo que o PS viesse a ter a maioria absoluta, eu acho que esta solução é boa. As maiorias absolutas levam frequentemente os partidos a caírem em tentações desagradáveis e indesejáveis. Em todos os partidos acabaram por dar mau resultado. O que não quer dizer que não seja legítimo que o PS se bata por isso. Mas o Partido Socialista deve bater-se para que esta solução se mantenha, e com outra consistência e com outra ambição, e, também, com uma definição mais clara de um projeto para o país.

Qual a sua opinião sobre o atual estado da direita em Portugal?

Era quase inevitável, foi duro. Mas eu sou democrata e acho que a democracia precisa da esquerda e da direita, do Governo e da oposição. Preocupa-me o estado da direita porque pode abrir o caminho a uma direita populista. A ausência de uma direita democrática ou de um centro-direita que seja alternativo pode abrir caminho a uma direita populista. E já estivemos mais longe.

Quando diz "preocupa-me o estado da direita" quer dizer o quê?

Quero dizer isso mesmo. Há uma crise no PSD porque este perde mais tempo na sua guerra civil interna do que a fazer oposição. Eu não me regozijo com isso. A situação pode ser cómoda para quem tenha apenas uma visão de poder. Para o PS funcionar bem tem que ter uma oposição forte.

Nesse sentido qual é o papel de Marcelo Rebelo de Sousa? Ele foi um candidato que se apresentou como de largo espectro, mas que veio da direita.

A minha visão é positiva. Há gente na esquerda que não gosta, mas também há muita gente que gosta. Marcelo Rebelo de Sousa tem tido uma cooperação institucional irrepreensível, depois de um período muito duro, de desafeição, de desesperança, ele trouxe afetos aos portugueses. Talvez exagere às vezes, mas é da natureza dele. As pessoas gostam das selfies, gostam de um Presidente que seja próximo, gostam mesmo de afetos, e até ele talvez precise desses afetos. Ele desempenha um papel importante, até para conter o aparecimento de uma expressão política do tal populismo orgânico. Com os contactos que tem com as pessoas, com esta proximidade, com os abraços e beijos contém o populismo. Pode fazer o seu próprio populismo, mas o populismo dele é democrático, é afetuoso, é bom. Ele é uma força de contenção do populismo perigoso.

Vai votar nele?

Eu não sei em quem vou votar, nem sei se vou votar, mas não me repugna votar nele se ele se recandidatar.

O que é que tem falhado neste projeto europeu?

O projeto europeu nasce de um propósito, que é construir a paz na Europa depois de duas guerras que a devastaram. Isto andou bem durante um certo tempo, depois quis-se andar tão depressa que passou a andar mal. No meu entender, o Tratado de Maastricht foi um erro porque consagrou a derrota do modelo social europeu e consagrou um modelo financeiro que se sobrepõe a tudo e todos, e aos próprios Estados. É isso que está na causa da falência dos governos de centro-direita e de centro-esquerda. O problema mais complicado da Europa neste momento, se calhar, nem é o Reino Unido, se calhar é a Itália. A Itália é um país fundador, é uma das economias mais fortes, e não vai ceder facilmente àquilo que pretende o Eurogrupo. Portanto, isso pode ser um grande sarilho. Preocupa-me a Europa neste momento. Penso que é preciso encontrar um acordo com a senhora May que está numa situação difícil, é preciso reconhecer, porque ela nem foi das partidárias mais enragées, e muitos dos principais responsáveis pelo referendo do brexit, a começar por Cameron, agora lavaram as mãos. Penso que da parte da Europa deve haver também um esforço para que as coisas se resolvam a bem com a Inglaterra, porque não concebo a Europa contra a Inglaterra, nem a Inglaterra contra a Europa. Recordo uma coisa da minha infância: recordo a Inglaterra a resistir sozinha ao Hitler e aos bombardeamentos do Hitler. Todos nós devemos.

Fonte: TSF

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