domingo, 2 de abril de 2017

OPINIÃO Opinião. A responsabilidade social e a sustentabilidade na era do populismo

O papel da responsabilidade social corporativa enfrenta interessantes e importantes desafios Financiamento para a área do ambiente

As últimas décadas, a responsabilidade social assumiu-se como nuclear na estratégia das grandes empresas, guiada pela preocupação dos stakeholders: consumidores, colaboradores, Estado, organizações não governamentais, instituições internacionais e até investidores sustentáveis, com os desafios de sustentabilidade social e ambiental com que se depara o mundo. 

Na génese deste movimento está uma forma de autorregulação do setor corporativo originada pelo reconhecimento da incapacidade do Estado de cumprir na plenitude a sua função de regulador da atividade corporativa, sobretudo nas regiões menos desenvolvidas, e pelo risco de uma intervenção muitas vezes pouco eficaz. 

Neste contexto, stakeholders e empresas preferem assumir uma parte das responsabilidades que caberiam ao Estado, pois é melhor gastar alguns recursos para perseguir uma agenda sustentável, promovendo a imagem e a marca, do que correr o risco de uma regulação pesada e ineficiente. 

Hoje, o papel da responsabilidade social corporativa, e da sua contribuição para a sustentabilidade social e ambiental do capitalismo, enfrenta interessantes e importantes desafios. Por um lado, apesar de a crise e a diminuição da atividade económica terem aligeirado os índices de poluição no mundo, os desafios que põem em causa a sobrevivência do planeta estão longe de estarem resolvidos. Por outro, e talvez com maior atualidade, apesar de o desafio da pobreza global ter notado progressos notáveis, a polarização socioeconómica das sociedades ocidentais atingiu nos últimos anos níveis preocupantes e assume- se hoje como a grande preocupação para as próximas décadas. 

Esta polarização socioeconómica tem origem em vários fenómenos, alguns de natureza económica, como a globalização e a deslocalização da produção dos setores menos qualificados para os países menos de-senvolvidos, outros de natureza tecnológica, como o extraordinário movimento de inovação tecnológica das últimas décadas e a sua dinâmica de digitalização e robotização, outros ainda de natureza geopolítica, como o aumento dos fluxos de imigração na Europa ou nos EUA. 

Os eventos do último ano deixaram, e continuam a deixar, claras as consequências sociopolíticas destes fenómenos, com o crescimento do populismo nacionalista, nomeadamente a votação do brexit e a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA. Caso a tendência continue, teremos governos com uma visão crítica sobre o capitalismo internacional, com uma atitude de confronto com as empresas internacionais e multinacionais e com políticas que poderão prejudicar o comércio e o investimento internacionais que geraram, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o maior período de crescimento e de redução da pobreza no mundo.

Lidar com os desafios socioeconómico e políticos dos países industrializados tornou-se o maior dos desafios da sustentabilidade do nosso modelo económico. Nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, das Nações Unidas, a referência no objetivo 10: “Reduzir as desigualdades” é insuficiente. Mais ênfase devia ser dado ao “aumento da adaptabilidade”, isto é, da capacidade das sociedades e das pessoas se ajustarem a uma economia mundial de inovação acelerada e disruptiva e de choques de competitividade constantes. 

Do ponto de vista corporativo, a questão é como as estratégias das grandes empresas devem reagir a esta tendência que pode, a prazo, prejudicar o seu potencial de crescimento. Em particular, será possível repensar a agenda de responsabilidade social das empresas para uma dimensão mais marcadamente sociopolítica, com foco no combate à polarização, que contribua para a sustentabilidade do capitalismo mundial? 

Para definirmos essa agenda temos de entender que a atividade corporativa contribui hoje para a polarização sobretudo pelo seu papel na globalização e na inovação tecnológica. Estes dois fatores têm contribuído para a exclusão precoce do sistema produtivo nos países industrializados dos trabalhadores menos qualificados e mais velhos, menos capazes de se ajustarem à tecnologia ou de transitarem para novos setores, ao mesmo tempo que, por criarem um mercado em constante mudança, geraram um ambiente de precariedade para os mais jovens. 

Assim, as relações laborais modernas têm tendência a ser menos duradouras e mais ténues, transferindo a responsabilidade pela gestão de carreira das organizações para os trabalhadores que, por várias razões, e sobretudo nos menos qualificados, têm dificuldade em assumi-la. A exclusão crescente destes grupos tem fornecido a energia que alimenta o populismo. A reação do ponto de vista da política económica não se fez esperar, com um movimento crescente a favor do protecionismo, nomeadamente na administração Trump, e contra a inovação tecnológica, com propostas de tributação da utilização de robôs recentemente assumidas num relatório do Parlamento Europeu e apoiadas por Bill Gates e pelo Prémio Nobel Robert Shiller. 

Do ponto de vista das empresas, parece- me claro que a estratégia de sustentabilidade tem, a muito curto prazo, de assumir esta nova componente na sua dimensão humana e na relação com os colaboradores. A teoria de shared value proposta por Robert Porter e Mark Kramer em 2011 na Harvard Business Review, segundo a qual a responsabilidade social devia ser vista numa lógica estratégica de criação de valor partilhada com os stakeholders, pode sugerir algumas pistas. 

No caso da sustentabilidade socioeconómica do capitalismo, caberá às empresas assumir plenamente a sua função de desenvolvimento de capital humano, numa lógica de adaptabilidade e de competências técnicas, criando valor que será partilhado (shared) com os próprios colaboradores para a sua carreira, mesmo que não permaneçam na organização. Isto é, cumprirá às empresas ajudar no reajustamento dos trabalhadores mais velhos e no desenvolvimento dos trabalhadores mais jovens, para além da lógica puramente económica. 

A teoria económica das relações laborais sugere uma receita simples: cabe às empresas pagar formação que gera capital humano específico à empresa, isto é, que não tenha valor fora da organização, e cabe ao trabalhador financiar a formação geral, que pode ter retorno noutras organizações. Na economia moderna, muitas empresas investem no desenvolvimento de competências gerais dos seus colaboradores, quer por exigências regulatórias quer pela esperança de conseguirem reter os colaboradores. 

Na lógica da sustentabilidade sociopolítica do capitalismo, caberia às empresas assumir a responsabilidade social pelo desenvolvimento de competências dos seus colaboradores, mesmo que a probabilidade de retenção seja reduzida, com base do shared value criado entre a empresa, o colaborador e a sociedade em geral. Por exemplo, a criação de programas alargados de formação, inclusive para os quadros externos, pode ser enquadrado neste contexto. 

Não sendo isenta de dificuldades, como são todas as iniciativas associadas à sustentabilidade, assumir uma dimensão de desenvolvimento de pessoas para ajustar ao capitalismo moderno torna-se absolutamente crítico. Sem o assumir dessa responsabilidade, não apenas pelo Estado, mas também pelas organizações socialmente responsáveis, está em risco, no mínimo, o enquadramento que tem assegurado a capacidade de geração de valor para os acionista das últimas décadas e, eventualmente, como a história ensina, os valores mais básicos da liberdade e da paz. Que maior incentivo para uma nova agenda de sustentabilidade? 

Fonte: Dinheiro Vivo

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