quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Filipa Martins: “Tenho uma certa desconfiança com os escritores que só escrevem”


O relógio marca 10h30. Filipa Martins chega pontualmente ao local
 marcado, o Botequim, em Lisboa, bar que foi aberto no final dos
 anos 60 por outra escritora, a célebre Natália Correia.



13/02/2018 às 10:21

Livros

Filipa Martins: “Tenho uma certa desconfiança com os escritores que só escrevem”

A escritora publicou o seu quarto romance, “Na Memória dos Rouxinóis”, e falou com a NiT.

O relógio marca 10h30. Filipa Martins chega pontualmente ao local marcado, o Botequim, em Lisboa, bar que foi aberto no final dos anos 60 por outra escritora, a célebre Natália Correia. “Até é estranho estar aqui durante o dia”, comenta com a NiT.
Se normalmente são os copos, os petiscos e os amigos que a levam a visitar aquele que é um dos espaços mais icónicos da Graça; desta vez o motivo é outro, uma conversa com a NiT a propósito do seu quarto romance.

Apesar de o lançamento oficial só acontecer no final do mês, no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, “Na Memória dos Rouxinóis” chegou às prateleiras das livrarias naquele dia, a sexta-feira de 9 de fevereiro. Custa 16,60€ e é uma edição da Quetzal com 216 páginas.

Costuma vir ao Botequim?
Sim, à noite. E vim cá mais [nos últimos tempos] porque estive a terminar o argumento para uma série para a RTP, que vai estrear no segundo semestre deste ano e se chama “Três Mulheres”. Remete-nos para o universo boémio literário dos anos 60. São três protagonistas femininas, uma delas é a Natália [Correia], a outra é a Maria Armanda Falcão, e a terceira é a Snu Abecassis. São 13 episódios e termina com a inauguração do Botequim — sendo que não foi filmado aqui, foi num décor que encontrámos no Poço do Bispo. É um período um bocadinho agridoce: a altura em que a Primavera marcelista já começou a semear as suas desilusões.

Ajuda estar neste ambiente para escrever sobre ele?
Acho que há alturas em que a envolvente importa, não acontece sempre. Quando tens de escrever um argumento tens de preocupar-te em pintares de alguma forma aqueles diálogos, perceberes como é que a personagem se sentava, em que tipo de cadeira, e isso às vezes só consegues chegar lá se tu próprio mimetizares aqueles gestos. Nesse aspeto é bastante diferente de escrever ficção.

E sobre o seu novo romance, a ideia surgiu numa viagem em Itália, não foi?
Tenho pensado sobre onde é que o escritor vai buscar referências, e a questão biográfica é inevitável. No Correntes d’Escritas eles costumam enviar uma frase para ser objeto de tertúlia e havia uma que era algo como: “Eu escrevo sobre o que não sei”. E pensei que iria bastante ao encontro da reflexão que já tinha vindo a fazer. As cidades influenciam-me muito no gatilho para a escrita.

Porque está fora do quotidiano?
Sim, tenho um parênteses na realidade. Cria-te mais disponibilidade mental: é uma zona protegida para encetares um pensamento sobre uma nova proposta literária, ganhares coragem para voltares a escrever. Já não sei quem é que dizia que o escritor é aquela pessoa que escreve com mais dificuldade. Deve ter sido uma pessoa inteligente qualquer: Mark Twain, se calhar. E quando queres ser válido nalguma coisa — já nem digo perfeccionista —, és assombrado. Escrever é sempre um ato de coragem. Independentemente de ser uma escrita panfletária ou revolucionária. Primeiro porque é um ato de exposição, e depois porque também é assumires que vais criar zonas necessárias de solidão. Quando tens de escrever é mais ou menos como estares no fundo de uma piscina. Porque muitas vezes estás em apneia.

Tem de se fechar para deixar libertar as palavras?
E às vezes deixar de respirar [risos]. As viagens criam esse espaço. Sou apaixonada por Florença e lá conheci um casal homossexual, que estava a atravessar uma crise óbvia de meia idade. Aquelas pessoas que, quando vais jantar à noite com os teus amigos, e tens um casal e eles estão constantemente a criar situações constrangedoras. E tu que és o terceiro elemento sentes ali um mal-estar, e há muitas memórias — eu chamo-lhes “foda-ses calados”. Há uma frase no livro que diz: “Não há pior úlcera do que a úlcera do tipo foda-se”. Que é aquela que se aloja cá dentro e nunca é verbalizada. E quando chegamos a uma fase da vida de casal acumulamos muitas dessas, porque inevitavelmente sabemos que, se as verbalizarmos, aquilo vai tender para o fim. E nesse casal, um era mais das matemáticas, e o outro das letras, e gostei muito dos dois. Gostei da racionalidade do intelecto de um, e do sentimentalismo romântico do outro. Achei que era um casal extremamente bonito. 

“Não sei se queria viver da escrita”


E também é isso que quer retratar nas suas histórias?
Sim, acho que foi uma evolução. Tanto no primeiro como no segundo livro optei por narradores omniscientes e omnipresentes. E nos últimos acabei por contar os livros na primeira pessoa.

E isso é mais difícil?
Eu sou jornalista de formação, por isso eduquei o meu olhar para uma espécie de imparcialidade. Os dois primeiros romances tinham esse traço de observador externo, que não fazia juízos de valor sobre aquelas personagens. É mais confortável. Mas é um pouco à semelhança dos grandes pintores de vanguarda: o Picasso, o Monet, o Manet. Percebes que iniciaram a sua carreira como pintores a manipularem de forma exímia o desenho, a pintura, o trabalho de materiais, às vezes até procurando um hiperrealismo. E acho que nos meus primeiros livros pus-me de fora para conseguir dominar a técnica com perfeição. Mas depois pensas, estes quadros da primeira fase do Picasso são extraordinários, mas ele é muito bom é nisto: na disrupção que quis criar, iniciando todo um movimento de vanguarda. Obviamente que não me estou a comparar ao Picasso. Mas o que sinto com este romance é que consegui criar algo singular. E esse é o melhor prémio para qualquer escritor, depois de estar aquele tempo todo em apneia, debaixo de água na piscina.

E quanto tempo é que durou esse tempo de apneia?
Foi uma gestação longuíssima. Este livro está dividido em capítulos curtos, que foi a forma de conseguir criar três tempos diferentes. O protagonista é um homem de meia idade, a atravessar uma crise quer no casamento, quer no próprio papel social, e é contactado pela sua editora para escrever uma biografia. E apercebe-se de que a biografia é de uma pessoa com quem já tinha privado anos antes, na mesma altura em que conhecera o seu companheiro. Porque esse futuro biografado é um familiar da pessoa com quem ele vive. Sendo que houve ali uma situação de rotura. Ou seja, ele inicia a escrita de uma biografia de uma pessoa que não é querida nem respeitada pelo companheiro dele. E o tema central é transversal a todos os meus livros, a questão da memória.

E porque é que é assim?
Não sei [risos]. Há alguns escritores que defendem que estão sempre a trabalhar com o mesmo barro, e sinto que o meu é a memória, mas de diferentes ângulos. No primeiro e segundo romance estamos a falar de memória história. A partir do momento em que deixas de ser narrador omnisciente e passas a ser personagem, deixa de ser a história da humanidade que te interessa e passa a ser a memória individual. Uma das curiosidades é que o biografado [nesta história] é um cientista que, ao longo de toda a vida, defendeu o esquecimento como uma das formas de evitar o erro humano, uma espécie de esquecimento seletivo. E é estranho que no final da vida encomende uma biografia, porque uma biografia é lembrar. E é isso que vai ser desvendado ao longo do livro: porque ambos percebem que não se trata de esquecer, mas de conversares e te sentires apaziguado com as tuas memórias.

Este período que deixa entre os seus livros, tem a ver com ter uma nova história ou com a sua vida profissional além desta?
Com as duas coisas [risos]. Acho que nunca vou ser uma escritora de publicar anualmente. Se calhar daqui a uns tempos…

Mas gostava de ser?
Não sei. Eu não vivo da escrita, não é? Há esse pragmatismo que temos de ter. Mas também não sei se queria viver da escrita. Ou seja, se vivesse da literatura, tinha uma dependência que não é só emocional, seria financeira. Tirar-me-ia liberdade. Eu escrevo com método, eu escrevo todos os dias ficção. Mais uma vez, a comparação com a pintura: a mão — que, neste caso, é o cérebro — tem de ser exercitada.

Mas tem uma rotina rígida para escrever?
Tenho muitos cadernos de capa preta. Na mala tenho dois, e eles perdem-se pela casa. Também escrevo muito ao computador. Às vezes escrevo para fazer intervalos da escrita [risos]. Ou seja, o meu trabalho profissional muitas vezes é escrever, e às vezes escrevo sobre coisas chatas, e tenho dois documentos [abertos no computador]. Vou abrindo um e outro, e é como ir beber um café, ou um copo de gin, para ver se tenho de coragem de fazer o resto. Mas se viver da escrita, deixo de ter dois Words abertos e passo só a ter um: deixo de ter um sítio de fuga.

É o que acontece quando o nosso hobbie favorito se torna uma obrigação profissional?
Eu não sei se a literatura é o meu hobbie, acho que é mais o meu desígnio. [Chamar-lhe] hobbie parece que estou a diminuir uma coisa que acho que é aquilo que de alguma maneira me define. Mas não é de certeza aquilo que me paga as contas [risos]. Eu trabalho na área da comunicação, e tenho trabalhado — também naquela de escrever sobre aquilo que não sei — com centros de engenharia. E teço de alguma forma caminhos entre a literatura e a área científica, isso é muito visível neste livro. Tem a ver com a minha outra vida. Tenho uma certa desconfiança com os escritores que só escrevem, porque como o meu objeto de escrita são as pessoas, no seu dia a dia, acho que há um perigo de seres um recluso da tua
própria recriação. ´

filipa martins
Costuma vir ao Botequim sobretudo à noite.

Tem algum guilty pleasure na leitura?
Tipo as breves do “Correio da Manhã”, esse nível de guilty pleasure [risos]? Eu ando sempre com um livro na mala, e tem a ver com os momentos de paragem. Nós todos temos intervalos de tempo que gastamos de forma um bocado parva.

Ocupa os seus a ler?

Normalmente é a ver coisas que não interessa a ninguém no Facebook. Deve ser esse o meu guilty pleasure [risos]. Mas às vezes irrito-me quando não saio para a rua com poemas na mala, porque devia.

Qual foi o último livro com que se irritou e deixou de ler a meio?

Zanguei-me muito com o [Mario] Vargas Llosa, no último dele. Eu gosto muito dele, fui no ano passado ao Peru, e estive na casa onde ele nasceu, que agora foi transformada numa casa-museu. E o último livro dele, que se chama “Cinco Esquinas”, é uma aberração. Só o último capítulo é que o salva.

Indo ao início de tudo, o que é que a levou a escrever livros? Sempre o quis fazer?

Sempre quis ler livros, acho que começa por aí. Depois, sempre quis pensar sobre o que lia e o que via. E o instrumento que encontrei foi a escrita e a ficção. Desde muito cedo tive a necessidade de criar através da palavra. Mas sou uma espécie de bug na minha família.

Bug?

Por várias razões. A minha geração foi a primeira a ter um curso superior na minha família. Ambas as minhas avós são analfabetas, e eu quando era miúda ensinava a escrever, estava na altura a aprender também. A minha irmã foi para Ciências, a minha mãe tirou o 12.º ano grávida de mim, e o meu pai tinha uma profissão técnica: era serralheiro, que, aliás, era a primeira profissão do Saramago. Se alguém se deitasse a adivinhar, era difícil surgir uma escritora na família. Mas a verdade é que, apesar de não ter nascido propriamente numa casa cheia de livros, este meu gosto — não sei se podemos dizer inato — sempre foi muito apoiado. O meu pai fazia-me as coleções todas dos clássicos. E também não estive em infantários, não tinha atividades pós-escola — também não havia muito dinheiro para ter —, naqueles momentos ocupava-me com livros.


E, mesmo antes de querer ser jornalista, já escrevia ficção. Na altura em que escreve o primeiro livro, com apenas 22 anos, houve pessoas à sua volta que achavam que era demasiado nova?

Foi o prémio revelação da Associação Portuguesa de Escritores [em 2004]. E era um prémio em que te candidatavas sob pseudónimo. Eles não sabiam se eu era alta, magra, baixa, mulher, criança, não faziam ideia. Foi uma escolha às cegas.


Qual foi o pseudónimo?

Não sei. Não era um nome de pessoa, não me lembro. E, depois, quando ligaram, uma das primeiras observações que fizeram, e na altura achei aquilo elogioso —  agora não acho [risos] — foi o que um dos elementos do júri me disse: “quando li o original, achei que eras um homem velho”.

E achou que era motivo de orgulho por causa da sabedoria que poderia demonstrar?

Não só mostrava que tinha uma certa maturidade, mas era a questão de ser um homem. Portanto, eu teria uma escrita masculina. Ou, então, abordei uma temática de forma masculina. Ou tinha um nível de qualidade só atingido por um homem. Não sei, não faço ideia. Mas acho que foi uma pequena traição que cometi em relação às mulheres nesse dia, porque fiquei feliz. Surgiram depois aquelas questões: mas como é que tu escreveste sobre a época do Estado Novo se não viveste e sentiste o Estado Novo? E aí tem a ver com o filtro que colocas nas coisas, que é a tua capacidade de escrita, de pensar sobre as coisas.

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(biografia
Filipa Martins nasceu em Lisboa, em 1983. É jornalista desde 2004, tendo colaborado em publicações como o Diário de Notícias, Notícias Magazine, Evasões e Jornal i. Recebeu o Prémio Revelação em 2004, na categoria de ficção, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores (APE), com Elogio do Passeio Público, o seu primeiro romance publicado em 2008. Recebeu ainda o prémio Jovens Criadores do Clube Português de Artes e Ideias, com o conto Esteira. O seu segundo romance, Quanta Terra, foi publicado em 2009.)

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