A receita certa e sólida para um mercado pequeno como o português pode chegar demasiado tarde para salvar a informação de qualidade. E aí teremos um problema sério na democracia.
A morte dos jornais já foi anunciada no passado por várias vezes e sempre na sequência de inovações tecnológicas. Primeiro quando a rádio surgiu e se popularizou, depois quando apareceu a televisão e se tornou no meio de comunicação social de massas por excelência. E, sabemos isso hoje, esses anúncios da morte da imprensa foram manifestamente exagerados. Não só os jornais sobreviveram como se multiplicaram, aumentaram a sua influência e viveram a sua época dourada nas últimas décadas do século passado. Os três meios podiam concorrer em busca da notícia mas, sobretudo, complementavam-se. “A rádio conta, a televisão mostra e os jornais explicam”, era o que se dizia.
Mas agora tudo é diferente. As evidências existem há alguns anos, têm aumentado e estão a confirmar-se: a internet e as plataformas tecnológicas mudaram de tal forma as regras do jogo que torna impossível a sobrevivência de muitas marcas de informação. O anúncio, esta semana, da venda ou encerramento de quase todos os jornais e revistas do grupo Impresa — a excepção são o Expresso e a Caras — é apenas a confirmação desta tendência, que é global e não começou hoje nem vai acabar amanhã. Hoje é demolidora para a imprensa mas amanhã ameaça sê-lo também para a televisão tradicional.
Pode parecer paradoxal que isto esteja a acontecer numa época em que se consome informação como nunca. A generalidade dos públicos não se desinteressou, em menos de duas décadas, pela notícia escrita. Elas são agora mais lidas do que nunca. E também comentadas e partilhadas pelas funcionalidades que os recursos tecnológicos colocam à disposição de todos. Muita gente que, no passado, raramente comprava um jornal e que, por isso, não lia notícias, está hoje a fazê-lo através das redes sociais. Não iam à procura da informação, mas a informação passou a ir ter com elas.
E, ironicamente, as notícias de hoje são, na sua esmagadora maioria, obtidas, investigadas, escritas e publicadas pelas mesmas redacções e pelos mesmos jornalistas de há duas ou três décadas.
Então se temos uma oferta semelhante e uma procura crescente, porque é que as empresas que fazem informação estão a definhar e com prognóstico muito reservado?
Por duas razões principais.
- Uma foi o aparecimento de dois ou três protagonistas que se intrometeram no tradicional modelo de negócio dos media e rapidamente se tornaram globais e hegemónicos.
- A outra foram os erros de avaliação, de estratégia e de execução que a generalidade dos decisores das empresas de comunicação social cometeram, sejam eles de gestão ou editoriais.
Começando por estes, é hoje relativamente fácil olhar para trás e perceber o que devia ter sido feito e não foi, tal como é banal acertar no Euromilhões após o sorteio.
O pecado original foi, talvez, começar por oferecer um produto ou serviço que custa muito dinheiro e que tem elevado valor acrescentado, como é a produção de informação. Sabemos que o que começa por ser oferecido raramente será pago no futuro pelos consumidores – a rede Multibanco é, em Portugal, um desses exemplos; as sms, que começaram por ser oferecidas porque as empresas de telecomunicações sempre acharam erradamente que seriam um meio de comunicação pouco utilizado, são outro caso. E isto é tanto mais verdade quanto mais disperso for um mercado: as marcas de informação que começassem por cobrar o acesso às suas plataformas electrónicas seriam severamente penalizadas porque os leitores passarim a ler as notícias no jornal ou revista do lado, que continuaria a oferecê-las.
Esta estratégia de oferecer as notícias através dos sites poderia até fazer sentido com o que sabíamos há 15 ou 20 anos. Não nos esqueçamos que o modelo de negócio dos media é o mesmo há séculos e, mesmo depois de todas as revoluções, continua intacto: atrair a atenção de leitores, ouvintes ou telespectadores com informação e entretenimento e depois vender essa atenção para a publicidade dos anunciantes.
A lógica era então esta: vamos construir uma audiência robusta online e depois rentabilizá-la com publicidade, recuperando aqui o que vamos perdendo nas edições impressas. Os leitores não pagam para ler as notícias, mas pagam os anunciantes pela audiência que lhes entregamos. É assim, aliás, que a rádio e os canais abertos de televisão funcionam há décadas: os consumidores não pagam para as ouvir ou ver e são suportados, genericamente, pelas receitas de publicidade.
Podia ter funcionado? Podia, se alguns novos protagonistas não tivessem aparecido e não tivessem sido bem sucedidos. A partir do momento em que se tornaram plataformas electrónicas de referência, com as maiores audiências globais, Google e o Facebook transformaram-se nos maiores veículos de distribuição de conteúdos e de publicidade.
Ainda que não produzam uma notícia, é através destas duas empresas que milhares de milhões em todo o mundo hoje acedem à informação e entretenimento. E se as audiências estão lá, é lá que os anunciantes colocam o seu dinheiro. Como uma enorme vantagem em relação aos meios tradicionais. Os directores de marketing e comunicação das empresas sempre souberam que metade dos seus investimentos em publicidade era dinheiro deitado fora. O problema, diziam, é que nunca conseguiam saber qual era a metade boa e a metade má. Por isso, não podiam fazer o corte correspondente. As ferramentas tecnológicas, os famosos algoritmos e a criação de largas bases de dados com a informação da navegação de cada utilizador, permitem hoje desenhar campanhas publicitárias mais dirigidas a segmentos ou nichos concretos que são, por isso, mais eficazes e rentáveis. É potencialmente muito mais proveitoso mostrar um anúncio de um novo modelo automóvel a quem fez nas últimas semanas pesquisas de testes de automóveis ou visitou sites de marcas do que a um jovem de 15 anos que passa horas a ver vídeos de youtubers engraçados. O Google e o Facebook (entre muitos outros) sabem quem é um e quem é o outro e a segmentação das campanhas faz o resto.
Estas duas empresas americanas e a chinesa Alibaba atingiram em 2016 uma quota de mercado conjunta de quase 50% no mercado global da publicidade online, mercado que vale já mais do que a publicidade na televisão.
A facturação conjunta da Google – que é dona do Youtube, outra grande plataforma de conteúdos – e do Facebook soma já cerca de 100 mil milhões de euros por ano. É certo que uma parte desta receita é partilhada com os produtores de conteúdos a partir de um determinado volume de tráfego, mas a receita que daí resulta é claramente insuficiente para as empresas de media compensarem as perdas que sofrem nos canais de distribuição tradicionais.
Como é que se sai daqui? Com os dados que hoje conhecemos, há uma solução óbvia. Nenhuma empresa de comunicação social quererá deixar de oferecer as suas notícias aos gigantes mundiais, porque é daí que vem uma parte substancial do tráfego que entra no seu próprio site. E nenhuma quererá também avançar, isoladamente, para a cobrança do acesso ao seu site, já que isso será um convite para que os leitores vão ler as notícias à concorrência.
Num mercado minúsculo como o português – somos 10 milhões e isso do mercado de língua portuguesa de 230 milhões é uma ilusão. Quantas vezes nos últimos anos é que o leitor se interessou por jornais brasileiros, angolanos ou moçambicanos? Tornou-se leitor regular de algum? – as experiências que têm sido feitas são parciais e gradualistas. O Expresso criou o “Expresso Diário”, acessível por assinatura ou gratuito através de um código que semanalmente está na edição impressa. E o Público limita o acesso a um número finito de artigos por mês, convidando os leitores a fazer uma assinatura a partir daí.
Mas as receitas obtidas com estes modelos são demasiado escassas para cobrir os rombos com as perdas nos formatos tradicionais. E estamos a falar de estruturas que nunca são baratas. Fazer informação é caro. Fazer informação de qualidade é muito caro.
Este “caminho das pedras” tem sido trilhado com relativo sucesso por algumas marcas internacionais. Nuns casos, a receita é o carácter único e distintivo dos conteúdos, como é o caso da The Economist. Noutros, a qualidade global e exclusividade de algumas matérias, como acontece no New York Times – a quem, sem querer, Donald Trump deu uma preciosa ajuda no último ano ao eleger o jornal como inimigo.
Na generalidade dos casos de sucesso, as fontes de receitas que resultam de estratégias de “branded content” sólidas e criativas começam a ser fundamentais. E em todos o papel do suporte vídeo é central. Mais de metade do tráfego de dados é gasto para ver vídeos online, o que faz deste o suporte mais promissor para garantir audiências e receitas publicitárias. Estas são as pistas que há para a transformação dos jornais tradicionais em operações rentáveis nas plataformas electrónicas.
Mas pode acontecer que a receita certa e suficientemente sólida para um mercado pequeno como o português chegue demasiado tarde para salvar a informação de qualidade. E aí teremos um problema sério na qualidade da democracia que, na minha opinião, não se resolve com ajudas do Estado, sejam elas directas ou indirectas.
Nessa altura vamos certamente chorar pelo jornalismo que hoje muitos desprezam, achincalham e tentam desacreditar diariamente – não confundir com o escrutínio rigoroso e exigente e com a auto-crítica que deve ser reforçada dentro das redacções -, muitas vezes em nome de objectivos políticos e ideológicos, dos quais Donald Trump será o exemplo global mais evidente mas que medram um pouco por todo o lado.
A fragilidade do jornalismo e da informação de qualidade pode não servir os interesses de uma democracia que se quer de qualidade, mas interessa certamente a muitos políticos nesta era da desintermediação da comunicação. Mas isso poderá ficar para outro artigo, que este já vai longo.
Por opção do autor, este artigo é escrito segundo o antigo acordo ortográfico.
Fonte: Eco
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