sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Macroscópio – Até onde pode ir a crítica ao uso da burka? Até onde pode ir a liberdade de expressão?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Boris Johnson fotografado por mim numa sua recente passagem por Lisboa

Quando estava a escrever as primeiras palavras desta newsletter – a última antes de ir de férias, que creio bem merecidas – ouvi na Rádio Renascença uma notícia que me deixou ainda mais boquiaberto do que o tema que tinha escolhido para hoje. A notícia de que os socialistas suecos se propõem fechar todas as escolas religiosas existentes no país se ganharem as próximas eleições, o que é – felizmente – pouco provável que aconteça. A notícia está aqui e ela só reforçou a minha convicção de que, na Europa, mesmo algumas referências básicas, referências de liberdade, parecem perdidas. A notícia deixou-me tão perplexo como a polémica que é o tema do dia na imprensa britânica: o chamado “burkagate” que envolve o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Boris Johnson. 

Tudo começou na passada segunda-feira quando o sempre imprevisível Boris defendeu, na sua coluna no Telegraph, que a Dinamarca tinha feito mal em aprovar uma lei que proíbe a utilização da burka ou de outros trajes que escondam o rosto em locais públicos: Denmark has got it wrong. Yes, the burka is oppressive and ridiculous – but that's still no reason to ban it. O antigo jornalista, conhecido pela sua verve e talento literário (se puderem não deixem de ler o seu interessante ensaio sobre Churchill, O Fator Churchill, felizmente já com tradução portuguesa), começava por elogiar a Dinamarca – “Ah Denmark, what a country. If any society breathes the spirit of liberty, this is it.” – para depois defender que esse país estava a trair as suas tradições liberais pois o Estado não deve dizer a qualquer “free-born adult woman what she may or may not wear, in a public place, when she is simply minding her own business”. Mais: fazê-lo é “play[ing] into the hands of those who want to politicise and dramatise the so-called clash of civilisations”. Esta opinião, em linha com a prática britânica, não levantaria qualquer controvérsia. A polémica nasceu da forma como se referiu às “opressivas” e “ridículas” burkas e niqabs: comparou-as a um poste dos correios e considerou que usá-las lembrava a forma como os assaltantes de bancos se disfarçam.

Digamos que o paralelo visual é inegável, só que as alegorias tiveram o efeito de um pontapé num vespeiro. E se se poderia esperar uma reacção mais virulenta da esquerda britânica e dos que veem islamofobia por todo o lado, a verdade é que os verdadeiros sarilhos começaram quando foram os próprios conservadores a atacarem o seu companheiro de partido, abrindo um inquérito, gesto indissociável das guerras que dilaceram os tories, como se sintetiza no Telegraph em Tory chairman accused of trying to 'kneecap' Boris Johnson as party investigates burka comments.



Mas antes de irmos a este “burkagate” recordemos que o debate sobre a admissibilidade de usar aquele tipo de vestes em público tem cruzado a Europa nos últimos anos – e não apenas a França do burkini. A BBC, em Why do some Muslim women wear the veil?, explica que existem diferentes tipos de véus e que o Corão não impõe modalidades tão radicais como as que cobrem o rosto todo (burkas) ou apenas deixam uma fenda para os olhos (niqabs). Nesse texto também se recorda o que tem vindo a acontecer em diferentes países europeus: “France was the first European country to ban full-face veils - ie burkas and niqabs - in public places in April 2011, seven years after it introduced a law prohibiting conspicuous religious symbols in state schools. It was followed a few months later by Belgium, which banned the wearing of partial or total face veils in public on the grounds of security. Full or partial bans on full-face veils have since been in place in Austria, Bulgaria, the southern German state of Bavaria and, since 1 August, Denmark.”

A americana The Atlantic, num texto centrado na recente decisão dinamarquesa, também se interroga sobre a eficácia dessas políticas: Banning Muslim Veils Tends to Backfire—Why Do Countries Keep Doing It? No caso dinamarquês sublinha-se o aparente paradoxo de a decisão ter tido o apoio quer dos populistas anti-imigração, quer da esquerda progressista: “This legislation has been supported by the Conservatives, the Liberal party, and the Social Democrats,” said Stig Hjarvard, a professor at the University of Copenhagen who researches the role of religion in Scandinavian societies. “There’s both a populist anti-immigrant or Islamophobic position and a secular Enlightenment discourse.” The latter argues that banning veils is vital to emancipating “oppressed” women.” Recordava-se também que dificilmente estas políticas serão revertidas nos países que já as adoptaram, pois “The European Court of Human Rights has consistently backed these bans, upholding France’s in 2014 and Belgium’s in 2017, and choosing to give each country significant leeway in determining what it needs to do to ensure public safety and social cohesion. The life cycle of the burqa ban probably won’t change anytime soon.



O texto de Boris Johnson deu assim origem as dois debates: um sobre a substância da sua posição, outro sobre a linguagem usada para descrever as burkas, algo que é interessante seguir em Telegraph readers react to Boris Johnson's comments on the burka, até porque a qualidade dos textos dos leitores do jornal britânico de referência com maior circulação tem pouco a ver com o habitual nas caixas de comentários de boa parte da nossa imprensa. E mesmo na revista de Boris foi em tempos director, a Spectator, não houve uma posição unânime. Rod Liddle, por exemplo, escreveu um texto significativamente intitulado Why Boris is wrong about burkas, sendo que a sua divergência não é sobre a linguagem, mas sobre a essência: “Boris was against a ban. I used to be but I am no longer so sure, even if it would be an infraction of human rights. Maybe I need to watch a BBC film about how lovely the burka really is, just to get my mind straight.”

Muito interessante é ler o editorial da edição desta semana da revista, Boris wars, cujo argumento central é que “There’s something inherently illiberal about trying to gag him”. Ou seja, “freedom also means freedom to mock this peculiar Arab fashion and point out that there is no scriptural basis for it in the Koran.” Mais adiante desenvolve-se melhor este ponto de vista liberal: “It is fundamental to liberalism to defend the right of people to hold views with which you disagree. This is a concept which increasingly seems to be lost in modern politics. (...) Liberty also means letting our elected representatives feel free to speak their minds, as long as they stay broadly behind the manifesto on which they stood for election. Boris’s joke was not statesmanlike, but his wider point, in defence of freedom, was brilliant and timely. This should be seen as a test case for anyone calling themselves a liberal. It might seem in bad taste; you might disagree, but in a free society we tolerate disagreement.”

Brendan O'Neill desenvolve um pouco mais esta argumentação também na Spectator, em Boris Johnson and the liberal criticism of Islam, um texto em que considera que “The attacks on Boris are a reactionary, illiberal assault on his right to be critical of certain aspects of religious ideology.” Mais: “He’s been slammed everywhere as a racist, a borderline fascist, a poundshop Mussolini who if he ever gets to No10 will declare war on Muslims and other minorities. What is the basis to these shrill and wilful misinterpretations of what he said? Because alongside defending women’s freedom to wear the niqab and burqa, he expressed distaste for these garments. And, as we now know, you’re not allowed to say anything even remotely critical about Islam or its practices these days.” Este ponto é bastante importante, pois toca naquilo que podemos definir como uma posição quase referencial relativamente ao Islão, bem diferente daquela que se tem, por exemplo, com o Cristianismo: “The rash reaction to Boris’s comments, the depiction of him as a hard-right tyrant, confirms that it is now tantamount to thoughtcrime to say anything critical about Islam. To make any kind of moral judgement about Islamic practices, to question its beliefs or its prophets or its garments, is to run the risk of being branded an ‘Islamophobe’, a racist, a fascist. We’re witnessing the return of blasphemy laws by the backdoor. Only now it isn’t the Christian God and Christian beliefs that are protected from ‘contemptuous, reviling, scurrilous or ludicrous’ commentary, as was the case under the old blasphemy laws; it is Islam.”



E o que pensam os interessados, isto é, os que professam a fé islâmica? Naturalmente que as opiniões se dividem, mas as que quero destacar são as daqueles que procuram integrar o Islão na modernidade e que nos explicam que nada no Corão impõe o uso daquele tipo de vestes. Neste artigo doThe Times refere-se uma carta publicada nesse mesmo diário pelo  Dr Taj Hargey, imã da Oxford Islamic Congregation, onde se defendeu que “the former Mayor of London should “not apologise for telling the truth” and argued he did not go far enough. The theologian said there is “no Koranic legitimacy” for female facial masking, adding instead that it is “a nefarious component of a trendy gateway theology for religious extremism and militant Islam.” Dr Hargey said: “The retrogressive Islamic clergy has succeeded in persuading ill-informed Muslims through suspect secondary sources that God wants women to cover their faces, when in reality it is a toxic patriarchy controlling women. Is it any wonder that many younger women have internalised this poisonous chauvinism by asserting that it is their human right to hide their faces? “Johnson did not go far enough. If Britain is to become a fully integrated society then it is incumbent that cultural practices, personal preferences and communal customs that aggravate social division should be firmly resisted. For this reason Britain must emulate France, Belgium, Austria, Bulgaria and Denmark in banning the burka.”

Estamos perante aquilo que podemos classificar como um apelo de um muçulmano moderado para que não se aceite como normal o que não é normal no Islão, um argumento que uma mulher muçulmana, Qanta Ahmed, também desenvolveu na Spectator num texto importante: As a Muslim woman, I’d like to thank Boris Johnson for calling out the niqab. Depois de notar um paradoxo – no Ocidente parece haver mais tolerância com o Islão radical que nos países islâmicos, sendo que “while Saudi Arabia is itself liberalizing, the niqab is increasingly adopted by Muslim women living in the West, often as an anti-Western pro-Islamist political statement opposing secularism.” –, defende o direito de crítica usado pelo político conservador: “When Boris Johnson mocks the niqab, he is emphatically not mocking Muslim women because – and this is a point that we Muslims seem to be unable to get across to non-Muslims – there is no basis in Islam for the niqab. Claiming otherwise is a profound distortion of Islamic belief. That’s why Muslim nations are themselves regulating and banning the niqab and burqa – as in both Morocco and Turkey where these coverings are seen as an invasion of Salafist affinities and a risk to national security and societal integrity.” Mais: “Today the adoption of the full-face veil, particularly in the modern secular world is far worse than looking like a letterbox. It’s both a symbol of cultural misogyny and a political marker for Islamist sympathies. The detractors of Mr Johnson would do better to consider their own role in marginalizing true, civil, pluralist Islam in favor of its anti-secular anti-democratic variant, Islamism.”



Há, parece-me, mais clareza nas palavras destes dois muçulmanos do que na cabeça de muitos políticos europeus, pelo que termino o Macroscópio de hoje regressando à Suécia para vos recomendar a leitura de Fraser Nelson, um jornalista do Telegraph casado com uma sueca e que passou as suas férias naquele país, fazendo um relato preocupante do que ali se passa em As liberal Sweden broods on Boris Johnson, its populist Right is rising. E está a subir porque percebeu que a política de imigração sueca, porventura um dos países da Europa com uma percentagem mais elevada de imigrantes muçulmanos, estava a criar um enorme desconforto entre o eleitorado. Por isso, referindo-se ao líder do partido populista, ele sublinha que “Åkesson pulled off a simple trick: raising important issues that others had left off the agenda and reaching out to voters who felt forgotten. Of course, any party, anywhere, can do so – you don’t have to wait for populists to get there first. Call it the new Swedish lesson.” E quem tiver dúvidas sobre que problemas são esses é só olhar para o gráfico acima.

E por hoje é tudo. Como já referi na abertura desta newsletter, o Macroscópio vai de férias, mas só até ao final do mês de Agosto. No início de Setembro reencontrar-nos-emos, para mais reflexões e sugestões de leituras. Descansem, relaxem, mas não deixem de reflectir sobre o complicado que este nosso mundo se nos apresenta. Por mim é só um “até já”.

 
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