O BUDA
Milénios antes dos europeus colonizarem o Sul da Ásia, a região era composta por centenas de reinos ou repúblicas independentes. Uma destas repúblicas ficava no que hoje é fronteira entre Índia e Nepal.
O nome dessa república “Shakya”, é uma palavra sânscrita que significa “aquele que é capaz”. Cerca de 500 a.C. era governada por Sudodana, um rei considerado justo pela população. Sudodana era casado com a Rainha Maya, e o nascimento do primogénito do casal foi uma ocorrência rodeada de auspícios.
Na noite da concepção ela sonhou que um elefante de seis presas entrou no seu ventre pelo lado direito do abdómen, e dez meses depois nasceu Sidarta. Como era costume naquela região, o filho deveria nascer na terra do avô materno, mas Maya deu à luz no meio do caminho, em Lumbini, e veio a falecer 7 dias depois.
Um eremita vidente chamado de Asita, após analisar sinais no corpo do bebé, anunciou que seria um grande líder para os homens, fosse num aspecto mundano, na forma de um Rei como o pai desejava, ou num aspecto espiritual, como um guru que ensinaria moksha – libertação.
Sidarta cresceu na cidade de Kapilavastu, capital do Reino dos Shakyas, cidade que hoje não temos certeza se corresponde a Tilaurakot, no Nepal ou a Pibrahwa, na Índia. Ele recebeu toda a educação usual que um príncipe costumava receber, o que incluía o estudo dos textos clássicos e treinamento físico e no uso das armas como o arco-e-flecha, demostrando excelência em todas as actividades.
Chegando a idade de 16 anos, Sidarta casou com a prima, Yasodara, além de manter milhares de outras esposas, como era costumeiro à elite naquele tempo e lugar. Com Yasodara teve um filho que foi chamado Rahula.
Porém a vida de luxo nos seus três palácios sazonais, com todas as facilidades e prazeres disponíveis para um príncipe numa região pacífica e próspera, não impediam que Sidarta sentisse certas inquietações. Seu pai, com medo que ele se tornasse um religioso e abandonasse as responsabilidades quanto à herança de líder no reino dos Shakyas, protegera de receber muitos ensinamentos religiosos, e em particular, de entrar em contacto com o sofrimento dos seres.
Mesmo levando uma vida tão resguardada na superficialidade dos divertimentos mundanos, ou talvez por isso mesmo, Sidarta desenvolveu uma grande sensibilidade, e até mesmo curiosidade, por aquilo de que era protegido. Consta que um dia viu flores murchas que algum criado havia se esquecido de trocar, e logo perguntou ao criado do que se tratava aquele fenómeno tão estranho. Após algum questionamento o criado foi obrigado a dizer que as coisas eram assim mesmo: as flores, como tudo mais, estão sujeitas à decadência.
Agora certo de que algo importante havia lhe sido ocultado, Sidarta pede ao pai para visitar a cidade – sua primeira vez fora do palácio. O pai, preocupado, buscando criar uma ilusão de riqueza e glória contínua para o filho, coloca multidões de pessoas a trabalhar para esconder a pobreza e decadência do caminho por que Sidarta passaria.
Mesmo assim, este trabalho de ocultação do sofrimento, como tinha de ser, foi imperfeito. Sidarta acabou observando quatro coisas que o deixaram muito inquieto: um velho, um doente, um cadáver e um mendingo religioso vestido com mantos.
Ao perguntar aos criados sobre aquelas coisas, ficou sabendo que velhice, doença e morte eram inevitáveis, e que ele, seu filho, sua mulher e todos que conhecia passariam por pelo menos uma dessas experiências, provavelmente as três. Mas o que significava o mendigo religioso? Ele, segundo os criados, era alguém que não estava satisfeito com essa situação, e que, portanto, buscava uma saída.
Sidarta ficou realmente impressionado, e a partir dessa experiência nada mais dentro do palácio era capaz de lhe dar contentamento. Logo começou a planear uma fuga para tornar-se num religioso, e, como aquele homem santo, também buscar uma solução para tão evidente e grave problema – um problema perante o qual quase todos parecem estar cegos, ou, pior que isso, que deliberadamente preferem ignorar. Realizando os piores medos do pai, Sidarta estava decidido a encontrar uma solução. E não apenas em seu próprio nome, mas em nome de todos também sujeitos a essa terrível realidade de decadência inexorável.
As instruções religiosas que Sidarta encontrou ao sair do palácio o levaram a praticar ascetismo extremo por seis anos. Ele vivia ao relento, quase nu e a maior parte do tempo sentado imóvel – comendo uns poucos grãos por dia e bebendo gotas de orvalho. Essa disciplina buscava fazer cessar os impulsos do corpo, de forma que alguma verdade espiritual fosse revelada e concedesse liberdade perante o sofrimento vasto desse mundo transitório, que ao ser comparado com aquele mero incómodo físico, o reduz à irrelevância. No final desse período de mortificação do corpo, prestes a morrer de fome, ele ouviu a voz longínqua de um professor de música passando num barco, dizendo ao aluno que “para o instrumento tocar bem as cordas não podem estar muito apertadas – e nem muito frouxas”. Abandonando os exageros de seus colegas do ascetismo – e até mesmo sendo considerado um traidor –, ele decidiu alimentar-se, e logo se deparou com uma moça que lhe ofereceu uma tigela de arroz doce.
Após a refeição, ele sentou sob uma árvore, e com a mente muito serena e lúcida, ele analisou o processo de causalidade. Examinou como um elemento está ligado com outro até a origem, que é uma espécie de cegueira perante as possibilidades – uma forma de encarar as coisas que nos impede de reconhecer o que realmente são – nos dificultando reconhecer todas as outras formas possíveis de encará-las. A partir dessa ignorância básica, passando por nove outros passos em que ela se arma e solidifica cada vez mais, chegamos ao momento da concepção, então nossa vida acontece e enfim sofremos e morremos.
Através de uma reflexão minuciosa sobre os 12 Elos da Originação Dependente, Sidarta reconheceu que o único modo de desfazer essa confusão era repousando na visão que havia sido ofuscada por essa ignorância básica. Ele então decidiu não levantar daquele lugar até obter esse reconhecimento.
Durante a madrugada Sidarta passou por todo tipo de experiências visionárias e tentações. De prazeres sensoriais e medo profundo a estados meditativos enganadores, e até a reificação da megalomania na forma de alguém que achou que atingiu alguma coisa especial. Sidarta permaneceu imóvel e não cedeu a nenhum impulso de desistência, autoglorificação ou ressentimento.
No amanhecer daquele mesmo dia, quando a última estrela ainda brilhava no céu, príncipe Sidarta acordou para a realidade além de nascimento, doença e morte. A partir desse momento, aos 35 anos de idade, ele foi chamado de Buda, isto é, “o desperto”. Ele então passou quatro semanas sob a árvore, simplesmente usufruindo o resultado de muitas vidas completamente focadas em esforços altruístas e aprendizado espiritual.
Mas ainda faltava um detalhe. Buda teve uma pequena dúvida quanto a possibilidade de ensinar algo assim aos outros. Foi aí que o poderoso Deus Brahma (um dos deuses que mantém a crença de ser o criador desse mundo), veio em pessoa pedir ao Buda que ensinasse aos seres o que descobriu, porque, segundo ele, há muitos que possuem apenas uma leve camada de poeira sobre os olhos, e facilmente podem ser levados a reconhecer o que está além de vida e morte.
Buda então reencontrou os cinco ascetas que o haviam abandonado. Reconhecendo prontamente a realização que desabrochara naqueles últimos dias, eles voltaram atrás no seu julgamento, e assim Buda lhes concedeu o primeiro ensinamento, as Quatro Nobres Verdades.
Segundo esse ensinamento, tudo que é composto é insatisfatório (a 1ª NV) – mas a causa da insatisfatoriedade não está propriamente nas coisas, mas em não reconhecer sua natureza (composta, insatisfatória, impermanente) e buscar satisfação através delas (a 2ª NV). Quando paramos de depositar confiança nas coisas compostas, de dar a elas o poder – que elas não tem – de produzir nossa felicidade, atingimos uma grande liberdade (a 3ª NV).
Para efectivar o reconhecimento das três outras verdades, a quarta nobre verdade prevê um Caminho de Oito Passos. Ele inclui desenvolver uma perspectiva autêntica perante a vida e comprometer-de com o caminho espiritual que leva ao estado desperto de um Buda (1), praticar a ética de forma autêntica em corpo (2), fala (3) e mente (4), viver e ganhar a vida de forma honesta e autêntica (5), praticar meditação de forma também autêntica, até desenvolver uma estabilidade lúcida e calma (6), examinar de forma igualmente autêntica as coisas com base nessa estabilidade refinada (7), e enfim repousar de forma não menos autêntica no resultado que é o estado desperto (8).
Após esse primeiro ensinamento, o Buda ensinou incansavelmente, mendigando alimento e caminhando por todo subcontinente indiano, por 45 anos. Ele fundou a comunidade monástica, que se reunia todo ano por três meses, durante a estação das chuvas, para receber ensinamentos e fazer práticas em grupo. Após esse período os monges dispersavam-se e ensinavam o que haviam aprendido por onde passavam, onde quer que fossem requisitados.
Aos oitenta anos de idade Buda recebeu um alimento estragado como oferenda, e para mais uma vez ensinar sobre a impermanência, manifestou uma morte bem humana, causada por disenteria.
A PRESERVAÇÃO DO ENSINAMENTO
Após a morte do Buda, a comunidade monástica reuniu-se em quatro grandes concílios, que decidiram o futuro do budismo.
O primeiro concílio ocorreu um ano depois da morte do Buda. Após um monge em particular ansiar pelo relaxamento de regras monásticas, já que o sábio não estava mais presente, outros monges decidiram que seria necessário planear a preservação cuidadosa dos ensinamentos. Até os dias de hoje, embora seja bastante claro que o Vinaya (conjunto de regras monásticas) foi estabelecido pelo Buda circunstancialmente, de acordo com costumes locais e ocorrências particulares – e o próprio Buda ter dito ser necessário adaptar o Vinaya as circunstâncias de tempo e local – para eliminar regras (apenas as menores são passíveis de revogação) é necessário unanimidade na comunidade monástica, algo que nunca foi atingido.
Aproximadamente 100 anos depois, os monges reuniram-se novamente. Desta vez, possivelmente também por questões ligadas ao Vinaya, houve uma diferença irreconciliável, e dois grupos formaram-se. Segundo as fontes primárias mais antigas, a maioria (que doravante foram conhecidos como Mahasamghika) se recusou a aceitar certas regras adicionadas pelo grupo minoritário (Sthavira). Segundo a tradição Theravada, que ainda existe, e é uma derivada de escolas que derivaram do ramo dos Sthaviras, este concílio foi necessário por que certos monges recusaram-se a obedecer a uma lista de 10 preceitos controversos. Alguns deles eram aparentemente inócuos, como não armazenar sal num chifre, ou não beber iogurte após o almoço – mas pelo menos um era bastante importante, “não usar ouro ou prata”, o que é interpretado como não receber oferendas em espécie ou mesmo tocar ou lidar com dinheiro.
250 anos a. C., um terceiro concílio foi realizado. O budismo havia encontrado um patrono excelente na forma de Rei Ashoka, mas todo aquele dinheiro e poder temporal aparentemente começaram a corromper a comunidade, que começou a se preocupar com professores falsos e doutrinas heréticas. Enquanto os dois outros concílios se focaram em regras próprias da comunidade monástica, neste concílio pela primeira vez se reconhece que é preciso chegar a um consenso quanto aos ensinamentos do Buda de forma geral. Era preciso determinar a intenção por trás de suas palavras, e estudar como evitar que a doutrina se corrompa com a distorção terminológica ou a adição de ideias espúrias – mesmo porque enquanto o budismo se espalha, começa a ser necessário traduzir as ideias de uma cultura para a outra. Uma determinação importante desse concílio foi enviar monges missionários para várias regiões, algo que teve muito sucesso em vários reinos na chamada “Rota da Seda” e que na época tinham boa parte de suas regiões controladas por gregos (no Afeganistão, por exemplo) – mas monges foram enviados até Atenas. É com a influência helénica, que de facto começa a representação da figura do Buda na arte budista, melhor representada pelo estatuário descoberto em escavações arqueológicas na cidade de Gandhara.
Não há um quarto concílio, mas dois. Um deles ocorre no Sri Lanka, e outro em Kashmir – representando uma divisão que os eruditos costumam fazer entre budismo do “norte” e do “sul”. Esta divisão, ao longo dos séculos, redundou, grosseiramente falando, na separação entre Theravada e Mahayana (ainda que nessa altura, no primeiro século d. C., não se pudesse usar o segundo termo).
O concílio do Sri Lanka decide pela primeira vez registar todos os ensinamentos do Buda em papel, já que os monges estavam encontrando dificuldade de memorizá-los (a quantidade de palavras seria maior do que uma dúzia de Bíblias católicas).
Embora existam alguns registros budistas mais antigos, eles não são tão sistemáticos, e nem um pouco tão completos quanto os que a tradição Theravada começa a empreender já nesse concílio. E por isso a tradição Theravada hoje detém o cânone budista mais reverenciado por todas as tradições budistas e pelos historiadores. Ainda que as fontes primárias mais antigas desse cânone restantes hoje nos remetam a quase mil anos depois das determinações do quarto concílio, a preservação sistemática empreendida pelo Theravada, e a precisão histórica dos relatos, levam todos a crer que os ensinamentos ali preservados são os mais próximos do que o Buda ensinou – mesmo em termos da língua, o Páli, que é um dialeto razoavelmente próximo do que historicamente se acredita o Buda falava.
A tradição Theravada seguiu promovendo concílios próprios, e pelas bênçãos do Buda existe intacta e gloriosa até os dias de hoje – podemos encontrar monges em países no sul da Ásia que não aceitam dinheiro como oferenda, e que vivem de uma forma muito semelhante – senão virtualmente igual – a que o Buda vivia com seus alunos, 2600 anos atrás.
A COMUNIDADE DE NOBRES AMIGOS ESPIRITUAIS
Mas enquanto a história do “budismo do sul” viva quase 2000 anos sem grandes contratempos, a história do “budismo do norte” acaba sendo uma tapeçaria vasta de adaptação e sincretismo com as várias culturas da Ásia.
Em certo sentido podemos encarar essas disputas nos concílios e cisões na comunidade como encaramos as disputas entre as seitas de religiões monoteístas. Acaba parecendo uma disputa em torno da determinação da “verdade”, ou do que é mais genuíno e puro, em torno do que o fundador de uma tradição teria expresso.
Porém, no budismo a problemática é, em certo sentido, bem menor. Todas as formas de budismo concordam que o Buda falava de forma “expediente” – isto é, ele não impunha ao interlocutor uma visão particular, mas se colocava na posição de falar aquilo que seria mais benéfico numa dada circunstância. Em outras palavras, o que o Buda ensinava era ensinado em reacção às questões trazidas pelas pessoas, e ao que elas eram capazes de aprender, sem tentar impor uma “fórmula” ou explicação da realidade supostamente baseada no resultado que ele obteve.
Assim, em alguns casos o Buda falava na existência de um “eu”. E, embora o budismo seja conhecido como uma tradição que nega a existência do eu, de facto existe uma escola budista (a Pudgalavada), que aceita a existência do “eu”. Porém, em muitas outras instâncias o Buda claramente negava qualquer base para a existência de um eu. Teria o Buda entrado em contradição? Como a Pudgalavada pode ser considerada uma tradição budista autêntica, mesmo tendo um ponto doutrinário central em tão direta contradição com absolutamente todas as outras tradições budistas?
Sua Santidade o Dalai Lama diz que, embora o budismo refute através da inferência lógica a existência de um criador, se há, em algum lugar, uma senhora idosa que pratica a virtude porque acredita em Deus, talvez seja melhor não ensiná-la como refutar a ideia de um criador. Se lhe retiramos a sua ideia de criador, sua prática de moralidade pode ficar afectada, sem muito ganho – nesse caso seria uma desvirtude explicar a essa senhora por que um criador é impossível. Caso a pessoa manifeste interesse em aprender uma coisa desse tipo, então pode ser bom ensinar. De outra forma, talvez o melhor seja não agitar os ânimos.
Dessa forma, quando algumas vezes “especialistas” em budismo encontram professores contemporâneos falando em Deus, “eu supremo” ou noções de alma, eles podem ficar desconfiados da qualificação do mestre. Porém é bem possível que ele esteja apenas usando os mesmos “expedientes” que o Buda ensinava para ensinar – isto é, falar de acordo com a expectativa, a capacidade e a necessidade do interlocutor.
No segundo século d. C. o “budismo do norte” produz o primeiro de uma grande lista de professores em várias culturas e países, que, pela vastidão e impacto dos ensinamentos – no contexto dos ensinamentos de Buda e com amplo e irrestrito respeito pelo sábio do Clã dos Sakias –, seria comparado com ele próprio. O “Segundo Buda” é um título que recai primeiro sob Nagarjuna – mas depois vai recair sobre Guru Rinpoche no Tibete, sobre Bodidarma na China, e sobre Dogen e Nichiren no Japão.
Porém Nagarjuna é o único dessa lista que é amplamente respeitado por todas as formas de budismo existentes hoje. Embora ele seja o maior luminar do Mahayana, o Theravada também o reconhece como grande professor.
Para Nagarjuna, a realidade da inexistência do “eu”, ou inexistência de uma essência independente, vai de cada objeto apreensível por uma consciência até a base ou fonte das palavras do Buda. Ser um Buda, para Nagarjuna, não é ter chegado a uma conclusão dentro de si e então impor ideias aos outros – a realização do Buda não pode ser pregada, ou mesmo ensinada no sentido de alguém que passa uma receita de bolo para outra pessoa.
O que o Buda fazia, e que redundou nessa riqueza e diversidade de tradições, era reagir de acordo com as necessidades do interlocutor enquanto incessantemente seguia repousando na liberdade reconhecida naquela ocasião sob a árvore. Da combinação dessas duas dimensões acontece a reação em cadeia da liberação dos seres através dos ensinamentos. O que o Buda não faz é passar uma “mensagem” ou “verdade” interna que ele detém e que então supostamente passaríamos a deter através do entendimento dos sentidos dos termos expressos. Não é uma revelação, ou algo que alguém pode encontrar e então estampar a ferro na mente da outra pessoa.
O contraponto de Nagarjuna foi Asanga – que não frisava tanto o aspecto de ausência de uma violência interna (de impor visões, de manter uma noção de “eu”) e a visão de liberdade radical que isso acarreta. Asanga enfatizava a presença calorosa do Buda – o facto de que ele só consegue falar connosco na sua esquisita língua de Buda porque já temos “outro” Buda potencial presente dentro de nós. Os ensinamentos operam por ressonância com o que temos em comum. Sem isso, como seria possível entender o Buda? Aqueles que enfatizaram o ensinamento de Nagarjuna foram chamados de Madhyamikas (seguidores do Caminho do Meio), e os que enfatizaram Asanga foram chamados de Yogachara (praticantes de yoga, ou meditação).
O que acabou acontecendo no quarto concílio na sua segunda versão, em Kashmir, foi o começo de uma longa doxografia de escolas – isto é, uma compilação e comparação de visões diferentes sobre o budismo – reconhecendo sempre alguma riqueza em cada uma, e os potenciais defeitos. Este rosário de visões é a base do Mahayana, o “grande veículo” – que é chamado de grande porque frisa a compaixão, mas que também é grande porque comporta miríades de visões sobre o budismo.
E não só de visões budistas: na medida em que o budismo dialogou com as outras tradições indianas, ele se sofisticou. E também se sofisticaram as escolas (particularmente as hindus) com que debateu. E os budistas, especialmente os do norte, sempre foram considerados a tradição mais aberta ao diálogo – tanto que fundaram, no séc. V, a primeira universidade do mundo – que chegou a comportar, segundo relatos, 10 mil alunos e 2 mil professores. É considerada uma universidade por que não só várias disciplinas budistas e técnicas eram ensinadas, mas professores não budistas eram convidados a vir e debater com os alunos.
Além disso, o budismo começou a adaptar-se para outras realidades e circunstâncias que nem sempre eram abertas ao monasticismo – e várias modalidades de instituições sociais, e formas de prática peculiares surgiram no encontro com mudanças culturais. A comunidade laica sempre teve um papel importante no budismo, principalmente como sustentadora da comunidade monástica – mas com o passar do tempo surgem muitos grandes praticantes e professores bastante respeitados que não necessariamente assumem a disciplina monástica.
As tradições de Asanga e Nagarjuna – e boas misturas delas – foram exportadas antes do ano 1000 para vários países, inclusive Tibete, China, Japão, Coreia e Mongólia – onde vastas quantidades de textos foram traduzidas em esforços colectivos que duraram séculos, e que sofisticaram a técnica de tradução, sem falar nas técnicas de reprodução de texto. O mais antigo livro impresso existente hoje é uma cópia do Sutra Lapidador de Diamantes em Chinês, do ano 868, cerca de 600 anos antes da Bíblia de Gutemberg ser impressa.
Ao mesmo tempo, o budismo tão diverso da Índia clássica era destruído por invasões muçulmanas, só retornando à Índia com o colonialismo Britânico, no séc. XVIII.
Seria possível encher tomos apenas com os nomes de grandes professores e seres realizados, só considerando países onde o budismo era central, tais como o Tibete ou o Japão, e os últimos 1000 anos. Que dirá então contar suas histórias e descrever os seus contextos sociais… E agora o budismo aos poucos vem chegando no ocidente: dos primeiros contactos com os gregos, até um período de 1500 anos em que nos ignoramos mutuamente, chegamos ao presente momento de globalização da cultura.
A tradução de textos-raiz para línguas ocidentais vai ser completada provavelmente neste século, já temos óptimos professores ocidentais, e aos poucos vemos praticantes sérios despontando aqui e ali. Nessa adaptação há grandes desafios, e, claro, grandes oportunidades.
Formas de budismo que na Ásia não se encontraram por mais de mil anos, agora são vizinhas numa mesma cidade na América do Sul – práticas são redescobertas, ênfases mudam – preconceitos são descobertos, e, algumas vezes, superados. São novos ares para uma tradição que está em constante renascimento, sempre tomando o cuidado de não cair em distorções e manter algo da pureza inefável da experiência de Sidarta sob aquela árvore.
Algumas pessoas dizem que o budismo não é uma religião, que é uma filosofia, ou até uma ciência. Mas o budismo é possivelmente, mais do que tudo, uma força civilizatória. Considerando os desafios ambientais que o mundo vive hoje, e cuja fonte real está na barbárie de mentes aleatórias que buscam satisfação em coisas externas – pode muito bem ser que a reverberação de um plácido sussurro de estado desperto seja o perfeito remédio para curar o mundo de suas mazelas.
Fonte: PB
Nenhum comentário:
Postar um comentário