A máxima é um truísmo, quase um lugar-comum, e pode servir para propalar
falácias e sofismas. Se não há democracia sem liberdade de imprensa, não há
liberdade de imprensa sem democracia. A democracia é a condição de existência da
liberdade de imprensa e não o contrário. Sem democracia pode não haver a própria
imprensa. A imprensa livre se instituiu onde a sociedade decidiu ser democrática;
não foi a imprensa que se libertou e instituiu a democracia. Não se nega a importância
da imprensa para a precipitação de processos históricos que culminariam com a
substituição de governos autoritários por democráticos, mas então a imprensa ainda
não era livre; pretendia ser livre e, em troca da liberdade, oferecer-se como guardiã
da democracia. Uma das guardiãs, pois a democracia não prescinde de outros protetores
– poderes independentes, como o Judiciário, que às vezes pode ser chamado
a proteger a democracia da imprensa, ao impedir, por exemplo, que esta exerça
influência exacerbada sobre o processo de eleição dos representantes, apoiando,
ainda que dissimuladamente, um candidato em detrimento de outro. Ao proteger a
democracia, a imprensa defende antes sua possibilidade de existência, inclusive
como negócio.
O termo liberdade de imprensa também é empregado indistintamente como
sinônimo de liberdade de pensamento, expressão ou informação. Entretanto, a
origem do termo demonstra que sua amplitude não contém em si aquelas outras liberdades,
de expressão ou informação, embora não se deprecie a capacidade da
imprensa de assegurá-las. Em sua origem, porém, o termo tem relação com a necessidade
de autorização prévia para imprimir, como ensina THOMAS PAINE, citado
por VENÍCIO A. DE LIMA:
Paine descreve as circunstâncias em que a expressão “liberdade de imprensa” passou
a ser usada quando a Revolução Inglesa de 1688 aboliu a exigência de autorização
prévia do Imprimateur do governo para a impressão de textos. Ele chama a
atenção para o fato de que a liberdade de imprimir nada tem a ver com o conteúdo
impresso:
(...)
“Na Revolução, o cargo de Imprimateur foi abolido e os textos podiam, então, ser
publicados sem primeiro obter permissão do oficial do governo. A imprensa era, em
consequência desta abolição, dita ser livre e foi dessa circunstancia que o termo liberdade de imprensa surgiu”.9
Liberdade de expressão é poder dizer o que se pensa, de informação é
poder saber o que os outros pensam, de imprensa é poder difundir o pensamento
dos outros. A redução pode ser simplista, pois essas liberdades mantêm uma relação de interdependência, pouco importando se liberdade de expressão é mais aplicável
ao indivíduo e liberdade de imprensa mais ao negócio. Superada, ou não, a
discussão semântica, cabe repetir o truísmo de que “sem liberdade de imprensa, de
informação e de expressão não há democracia”. Pressuposta como verdadeira, a
máxima dispensa maiores digressões. A história prova que essas liberdades são as
primeiras a sofrerem quando o autoritarismo se instaura.
A sociedade democrática considera as liberdades de expressão, informa-
ção e opinião imprescindíveis à manutenção da democracia, seria redundante expor
os fundamentos do teorema. A Constituição da República elegeu essas liberdades à
categoria de direitos individuais e coletivos no Art. 5º:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
(...)
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional;
As condições de exercício dessas liberdades podem ser extraídas da leitura
dos incisos acima e têm caráter positivo (é livre a manifestação, é livre a expressão),
negativo (vedado o anonimato e a vedação implícita da censura) ou ainda
de sujeição a outra condição (o sigilo da fonte é resguardado, quando necessário ao
exercício profissional). Se o que pode ser feito está conjugado ao que não pode ser
feito ou pode ser feito dependendo da condição, infere-se que essas liberdades não
são absolutas, como também não é o direito à intimidade ou ao sigilo das comunicações.
A Constituição e a legislação preveem situações em que a liberdade de
imprensa pode ser limitada. O estado de sítio, medida de defesa do Estado e das instituições democráticas, cabível em casos de comoção grave de repercussão nacional
ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante
o estado de defesa e declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada
estrangeira, é previsto na Constituição (Art. 137) e admite restrições à liberdade,
inclusive a de imprensa:
Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só
poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
(...)
III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão,
na forma da lei;
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 1990) contém
vedações que se referem diretamente à imprensa:
Art. 143. É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam
respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.
Parágrafo único. Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança
ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco,
residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.
Pode-se argumentar que ambas as situações são específicas e, somente
durante sua ocorrência, é admissível a limitação da liberdade de imprensa. O argumento
é válido, mas não refuta a afirmação de que nem a imprensa é sempre livre.
Pode-se argumentar ainda que, mesmo durante aquelas situações, seria desejável
uma imprensa insubordinada, que denunciasse abusos ou prevenisse injustiças. Cairíamos,
então, na desobediência civil ou na revolução, em que vigora a lei do mais
apto, com todas suas consequências. São situações extremas em que a sociedade
atribuiu a um direito (o de autopreservação do Estado e o de dignidade da criança)
valor maior que a liberdade de imprensa. Contudo, haverá situações em que, a despeito
do status de aparente privilégio da liberdade de imprensa em relação a outros
direitos, a ausência de limites pode implicar violações incompatíveis com as faculdades
que a sociedade visa assegurar.
A cobertura “ampla, geral e irrestrita” de processos criminais e a divulga-
ção das medidas constritivas eventualmente adotadas, como a violação do sigilo das
comunicações telefônicas, é situação que suscita controvérsias. A publicação de
transcrições de conversas que deveriam permanecer sob sigilo torna perceptível a
fragilidade de direitos como à presunção de inocência e ao devido processo legal e, ainda, a que as conversas interceptadas sejam usadas apenas para as finalidades
previstas em lei. Não são raros os casos em que pessoas tiveram suas reputações
destruídas ou a persecução criminal não surtiu efeito por causa de divulgação inoportuna
de informações, sigilosas ou não, com resultados irreversíveis. O “Caso Escola
Base” é exemplo notório de execração pública e, pior, injusta. Os vazamentos
da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, levaram ao banco dos réus o próprio
delegado, o que, não é absurdo supor, pode comprometer o resultado final da investigação10.
A influência da imprensa sobre os julgamentos criminais e a possibilidade
de intervenção do Judiciário é tema de discussão nos Estados Unidos da América
(EUA) e na Europa. Nos EUA, relata SCHREIBER,
a única proteção efetiva concedida pela Suprema Corte aos réus em processos criminais
consiste na anulação de julgamentos em casos nos quais a publicidade massiva
possa ter influenciado os jurados, ou seja, a cobertura jornalística prejudicial
possa ter sacrificado o direito do réu a um julgamento justo e imparcial. Vê-se assim
que medidas que restrinjam a atuação dos jornalistas (restrição da publicidade do
julgamento, proibição de veiculação de notícias, imposição de penas aos veículos de
comunicação posteriores à publicação) não são prestigiadas pela Suprema Corte.
Mas na Europa,
a proteção quase absoluta conferida à liberdade de expressão nos Estados Unidos
da América não encontra guarida na jurisprudência da Corte Européia dos Direitos
Humanos. Nos julgados examinados, verificou-se que a reconhecida importância da
liberdade de expressão, inclusive em face de sua imprescindibilidade para a democracia,
não impede eventual imposição de medidas restritivas pelos Estados contratantes
à atividade jornalística, quando há colisão daquele direito com outros direitos
ou valores igualmente protegidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos.
O Artigo 10º da Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 1950, admite restrições à liberdade
de imprensa:
Artigo 10º
Liberdade de expressão
Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade
de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais
sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações
de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as
empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização
prévia.
O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode
ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para
a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da
ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra
ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais,
ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
Um estudo científico não pode recorrer à falácia eurocêntrica e se render
ao discurso do europeu só porque é europeu, mas não pode omitir a circunstância
de que a convenção foi assinada cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.
O continente ainda estava sendo reconstruído, sob as lembranças de uma ditadura
inominável, em que a liberdade de imprensa foi a menor das liberdades suprimidas.
Não obstante, a convenção houve por bem não considerar nenhum direito absoluto
– talvez porque de absoluto, para os europeus, tenha bastado o nazismo. Bem mais
ao oeste e ao sul do mapa, a mera tentativa de discutir o assunto é rechaçada como
se fosse uma ignomínia comparada à revisão do Holocausto.
Nada é absoluto no Estado Democrático de Direito, nem o próprio Estado,
cujo poder – que emana do povo, não da imprensa... – é tripartido. A imprensa não
pode ser um espaço de indisciplina anárquica, sujeita apenas ao dever de pagar indenização
por dano moral, material ou à imagem, como se esses danos pudessem
facilmente ser medidos em dinheiro. Indenização, no mais das vezes, compensa
mas não repara. A imagem desfeita por notícia não se refaz por sentença. E, até
prova em contrário, todos são inocentes mesmo que seus telefones tenham sido
grampeados.
A reação da imprensa à proposta de discussão da possibilidade de haver
limites, ainda que denote a cautela de não ceder os anéis para não perder os dedos,
é ilustrada com uma frase que se transformou em outro lugar-comum, revelando a
conveniência do poder de edição e disseminação de parte como se fosse todo. LIMA
conta uma história:
Sempre que os proprietários da mídia impressa se sentem ameaçados em seus interesses
recorrem a Thomas Jefferson (1743-1826). Uma de suas frases, inserida em
longo parágrafo de carta escrita de Paris para Edward Carrington, em 1787, é recorrentemente
citada:
“A base de nossos governos sendo a opinião do povo, o primeiro objetivo deve ser
mantê-la exata; fosse deixado a mim decidir se deveriam ter um governo sem jornais
ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir este último”.
A preferência de Jefferson pelos jornais em relação ao governo é inequívoca. No entanto,
há vários aspectos que precisam ser esclarecidos. Vamos a eles.
Em primeiro lugar, a carta de Jefferson continua e a próxima frase do mesmo pará-
grafo é a seguinte:
“Mas insistiria em que todo homem recebesse esses jornais e os soubesse ler”.
Vale dizer que existe uma condição para a preferência pelos jornais: eles devem
chegar a todos e, mais importante, todos devem saber ler. Há aí um inequívoco
compromisso com o caráter universal da opinião do povo e com a necessidade de
que todos sejam educados para que possam ler o que está escrito nos jornais.
Escrevendo no século 18, a provável preocupação de THOMAS JEFFERSON
seria a alfabetização e não a capacidade de apreender conteúdos subliminares ou
mesmo não publicados. A atual propagação da Internet permite aos incluídos digitalmente
o curioso, mas não tão lúdico, exercício de ler os jornais, ouvir as rádios e
assistir às tevês para captar o que não foi dito. BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS é autor
de outra citação, com 31 mil indicações no Google, que resume o poder do não
discurso: “quem tem poder para difundir notícias, tem poder para manter segredos e
difundir silêncios. Tem poder para decidir se o seu interesse é mais bem servido por
notícias ou por silêncios”.
Se a frase de JEFFERSON é repetida automaticamente pelos donos da mí-
dia ao menor indício de qualquer coisa que não lhes agrade, a de SANTOS é o amuleto
dos arautos da subjetividade – da sua própria em substituição a dos outros, inclusive.
Nem JEFFERSON nem SANTOS têm culpa do uso que fizeram de seus excertos e
nem as citações têm o objetivo de aderir a um ou outro, mas demonstrar que, no
âmbito da ética, qualquer discurso é adaptável às conveniências de quem discursa.
A evolução deste estudo apresentará opiniões que poderiam responder às questões
éticas a serem propostas, ainda que antagônicas.
Em Sobre ética e imprensa, EUGÊNIO BUCCI assevera que “a liberdade
de imprensa é inegociável. Mas, como poder que são, os meios de comunicação
requerem de seus controladores uma subordinação a valores éticos que construam
– e não corrompam – a democracia em nome da qual a liberdade lhes é conferida”13.
Que valores? O primeiro poderia ser o respeito à lei, mas não à letra da lei e aos
virtuosismos hermenêuticos que convertem em verdade sagrada a interpretação
mais útil, e sim ao espírito da lei, ou, para não apelar à metafísica, à finalidade da lei.
Se a Constituição e a lei protegem a intimidade e o sigilo das comunicações telefônicas,
porque a finalidade é protegê-las; se a Constituição e a lei admitem que ambos
não são absolutos, porque a finalidade é não criar absolutismos; não contraria a lógica admitir que a liberdade de imprensa possa ter limitações – como tem – para
evitar a supremacia de um direito sobre o outro. Entretanto, BUCCI conclui o raciocí-
nio, no mesmo parágrafo, com uma resposta categórica:
Não é a veiculação de conteúdos que precisa ser monitorada pela autoridade, mas o
poder que precisa ser limitado – e isso significa limitar a propriedade dos meios eletrônicos
de comunicação. É disso que se trata.
A propriedade pode ser limitada, ainda que restrinja a livre iniciativa. “Os
meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio
ou oligopólio”, está no § 5º do Art. 220 da Constituição. A concentração de
veículos em famílias ou grupos em nada favorece a liberdade de imprensa, que se
reduz à liberdade de expressão dos proprietários. Mas não é disso que se trata. O
dilema ético está na possibilidade de limitação dos conteúdos, que, lembre-se, não é
incompatível com a Constituição, em que pesem as opiniões divergentes.
Outro direito fundamental está descrito no inciso LVII do Art. 5º: “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenató-
ria”. É a presunção de inocência, esta sim transmudada em dogma por recente decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) – bastante criticada, aliás. Vale dizer: ninguém
irá para a cadeia tão cedo enquanto houver advogados dispostos (leia-se pagos)
a discutir a última vírgula do último despacho. Mas subsiste a última vírgula incontroversa
e, um dia, a população carcerária aumentará, para resignação dos cré-
dulos e agonia dos aflitos sem defensores virtuosos (e bem pagos).
Se a igualdade de acesso à Justiça não é absoluta, ainda que por fatores
alheios à harmonia do sistema, por que a presunção de inocência seria? Sem mais
ironias, todos têm direito a não serem inscritos no rol dos culpados enquanto houver
recursos à disposição, o que nem sempre ou quase nunca significa a existência de
dúvida sobre o mérito. É direito básico não ser privado da liberdade sem que estejam
cumpridos todos os requisitos de execução da pena. Todavia, a própria legisla-
ção prevê hipóteses de prisões temporárias e preventivas, por considerá-las instrumentos
úteis à efetividade do direito do Estado de perseguir e punir. Acerca dos excessos
cada vez mais condenados e que podem induzir a opinião pública a uma
convicção unilateral, discorre o ex-ministro do STF SEPÚLVEDA PERTENCE:
‘O apelo à exemplariedade, como critério de decretação da custódia preventiva’ –
acentua, entre nós, por exemplo, Magalhães Gomes Filho – ‘constitui seguramente a mais patente violação do princípio da presunção de inocência, porquanto parte justamente
da admissão inicial da culpabilidade, e termina por atribuir ao processo uma
função meramente formal de legitimação de uma decisão tomada a priori’. ‘Essa incompatibilidade’
– aduz – ‘se revela ainda mais grave quando se tem em conta a referência
à função de pronta reação do delito [sic] como forma de aplacar o alarme
social; aqui se parte de um dado emotivo, instável e sujeito a manipulações, para
impor à consciência do juiz uma medida muito próxima à idéia da justiça sumária.’
A constrição da liberdade do indivíduo pode ser tolerada, mitigando o direito
à presunção de inocência. A liberdade de imprensa, esta “é inegociável”.
O compromisso da imprensa é com a sociedade, com o direito à informação do cidadão.
De posse de uma informação de interesse público, o dever da imprensa é
publicá-la. Da maneira mais correta, mais serena, mais precisa, mais respeitosa
possível, mas publicá-la. É falta de razoabilidade supor que, a partir de agora, o
compromisso da imprensa seria com os sigilos de Estado. Existem investigações sigilosas
de diversas naturezas, e o compromisso com a preservação desse sigilo é
dos agentes envolvidos no seu processamento. A imprensa existe justamente para
publicar o que outros consideram segredos, segredos atrás dos quais podem se esconder
ações que conspiram contra o interesse público. Imagine o que seria do jornalista,
se ele não pudesse mais investigar e publicar segredos. O que é uma notícia
senão um segredo revelado?
O complemento do significado prático de dizer que, para a imprensa, o compromisso
com a democracia está acima do compromisso com os humores do público é que
muitas vezes a imprensa deve remar contra a opinião popular. Só assim ela pode
servir de vigilante do poder.
Acima do mercado, o jornalismo deve trabalhar para a democracia. (...) O compromisso
do jornalismo, agora, deve ser um compromisso com a observância e o aperfeiçoamento
das regras democráticas – e isso está acima dos humores do público.
BUCCI:
Essa é uma regra sagrada da democracia americana. Lá, o argumento mais recorrente
que se dá a essa matéria é a seguinte situação hipotética: se o presidente da
República mente para a própria mulher, o público tem o direito de saber, pois a atitude
de enganar a esposa denota o caráter do homem que exerce o cargo máximo
do país, e seu caráter é assunto de interesse do eleitor, que leva isso em conta na
hora de decidir o voto.
Pode-se discutir, do ponto de vista da ética do ofício, se a imprensa deve divulgar
documentos sigilosos como aqueles – ainda que não os tenha surrupiado, mas recebido
na bandeja. Talvez não haja uma resposta única, e cada caso seja cada caso.
Mas, deva ou não deva, uma coisa é certa: pode.
Pode porque jornais, revistas e emissoras não são responsáveis pela guarda de informações
reservadas por ato judicial. Responsáveis são os servidores públicos que
deviam protegê-las por que isso faz parte de suas funções.
Alguns exemplos estrangeiros, sem comentários redundantes, começando
pelos Cânones do Jornalismo, adotados pelo Comitê de Ética da American Society
of Newspaper Editors (ASNE), em 1922.
Liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa deve ser protegida como um direito
vital da humanidade. Ela é o direito inquestionável de discutir qualquer coisa que
não seja explicitamente proibida por lei, inclusive a sabedoria de qualquer estatuto
restritivo.
Um jornal não deve invadir direitos ou sentimentos privados sem garantia segura de
direitos públicos, distinto da curiosidade pública.
Declaração de Princípios da ASNE, que reviu e renomeou, em 1975, os
Cânones do Jornalismo:
O objetivo principal de coletar e distribuir notícias e opinião é atender o bem-estar
público informando as pessoas e capacitando-as a fazer julgamentos sobre as questões
do momento. (...) A imprensa americana nasceu livre não apenas para informar
ou para servir de fórum de debates, mas também para trazer um escrutínio independente
sobre as forças do poder na sociedade, inclusive sobre a conduta do poder oficial
em todos os níveis de governo.
Os jornalistas devem estar constantemente alertas para garantir que os assuntos do
público sejam conduzidos em público.
Os jornalistas devem respeitar os direitos envolvidos nas notícias, observar os padrões
conhecidos de decência e permanecer responsáveis perante o público pela
imparcialidade e exatidão de suas reportagens noticiosas. Pessoas acusadas publicamente
devem receber a mais pronta oportunidade de resposta. As promessas de
confidencialidade para com as fontes de notícias devem ser honradas a todo custo
e, por isso, não devem ser feitas levianamente. A menos que haja necessidade clara
e premente de manter o sigilo, as fontes de informação devem ser identificadas.
Código de Ética da Sociedade dos Jornalistas Profissionais Sigma Delta
Chi, com versão de 1996:
Identificar as fontes sempre que viável. O público tem direito ao máximo de informa-
ções possível sobre a confiabilidade das fontes.
Sempre indagar as motivações das fontes antes de prometer anonimato. Esclarecer
as condições vinculadas a qualquer promessa feita em troca de informações. Cumprir
as promessas.
Evitar espionagem ou outros métodos sub-reptícios.
Reconhecer como obrigação especial garantir que os negócios públicos sejam conduzidos
às claras e que os registros governamentais sejam abertos à inspeção.
Ser judiciosos quanto a nomear suspeitos de crimes antes do registro formal de acusações.
Estabelecer um equilíbrio entre os direitos de um suspeito de crime a um julgamento
imparcial e o direito do público de ser informado.
Desconfiar de fontes que ofereçam informações em troca de favores ou dinheiro,
evitar ofertas de notícias.
Código de Ética dos Editores-Chefes da Associated Press, revisto e adotado
em 1995:
O direito do público de saber sobre questões de importância é supremo. O jornal
possui uma responsabilidade especial como delegado de seus leitores para ser um
zelador vigilante de seus interesses públicos legítimos.
Nenhuma declaração de princípios pode prescrever decisões concernentes a todas
as situações. O senso comum e o bom discernimento são necessários na aplicação
de princípios éticos às realidades jornalísticas.
As fontes de notícias devem ser reveladas, a menos que haja uma razão clara para
não fazer isso. Quando é necessário proteger a confidencialidade de uma fonte, deve-se
explicar o motivo.
O jornal deve defender o direito de livre discurso e a liberdade de imprensa, e deve
respeitar o direito do indivíduo à privacidade. O jornal deve combater vigorosamente
em favor do acesso público às notícias do governo por meio de reuniões e registros
abertos.
A Folha de
S.Paulo, em editorial:
Apesar da origem desses documentos, frutos da escuta clandestina e ilegal de conversas
telefônicas, este jornal mais uma vez se sente na obrigação de publicar o que
deles considera essencial para o interesse público. A Folha deliberadamente omitiu
os diálogos de natureza pessoal, que em nada esclareceriam uma questão de Estado.
A ANJ não fez concessões:
Obrigar o jornalista, em qualquer circunstância, a revelar a fonte de sua informação
é, na prática, impedir o pleno exercício profissional e cercear o direito dos cidadãos
de serem livremente informados. O sigilo da fonte tem sido, historicamente, base da
transparência nas sociedades verdadeiramente democráticas.
A relativização desse princípio maior da democracia, a propósito de facilitar investigações
policiais, seria um grave e irreparável equívoco. Sem a garantia do sigilo da
fonte, os maiores beneficiários seriam aqueles que atentam contra os valores da sociedade
e que veriam dificultadas as denúncias de seus atos criminosos.
O dilema ético por excelência não é aquele que opõe o lícito ao ilícito: é aquele que
abre uma escolha entre o certo e o certo, isto é, entre dois valores que se apresentam
como igualmente justos e bons. Por isso, também, a ética está presente em toda
decisão que busque qualidade de informação. Debater abertamente as questões
éticas, à luz de episódios reais, é um serviço de utilidade pública: educa o espírito
crítico dos cidadãos e ajuda a melhorar a imprensa.
Os limites à liberdade de imprensa e ao sigilo da fonte precisarão, sim, ser
discutidos, assim como a espiral de impunidade de agentes públicos voluntariosos e
de mal disfarçado autoritarismo. Se o desafio da ética é escolher entre o bom e o
bom, a sociedade terá um dilema a menos a resolver: o círculo vicioso não é bom,
como nenhum vício pode ser.
Jairo Cardoso
Livro: Análise dos aspectos éticos e jurídicos da publicação jornalística
de comunicações telefônicas interceptadas por decisão judicial
Florianópolis
2009
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